Um dos mais
antigos preceitos da Tradição é que só está na/em Praxe (Lei Académica) quem
está devidamente trajado, ou seja a condição de "praxista"
(literalmente: aquele que observa a lei académica) implica, necessariamente,
quando está na/em Praxe, usar do Traje Académico.
Ora perguntamos: caloiros à futrica estão na/em Praxe?
Resposta: por princípio NÃO! (caiu um bomba!)
À luz da
Praxe(da lei académica), assente na Tradição, não é lícito praxar caloiros que
não se encontrem trajados.
Desde que me
lembra que os caloiros são praxados à futrica (eu fui-o e sempre os praxei
assim também), muitas vezes porque se pensava, e se lhes disse, a partir de
determinada altura, que não podiam trajar (ou, então, não se lhes disse, precisamente,
que DEVIAM trajar).
[se me dissessem isto há uns
largos anos atrás, era capaz de me dar uma coisa e espernear, embora não me
furtasse, depois, calmamente, a ponderar e reconhecer a validade do argumento]
Um conceito
erróneo já com várias décadas e que, contudo, nunca foi devidamente reflectido
e posto em causa.
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Caloiro sob trupe (foto diurna, pois era para publicar em Bilhete Postal Ilustrado)
in Illustração Portugueza, II Série, Nº 302, de 04 Dezembro 1911, pp.711
(Hemeroteca Municipal de Lisboa). |
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Uma trupe - Coimbra -P Borges, 1911 BNP, PI-5882-P |
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Tonsura a um caloiro, em desenho mural na Real República Rás-Teparta |
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Simulacro de um rapanço e de uma ida às unhas ao caloiro.
(os estudantes posando para Bilhete Postal Ilustrado) ca. 1911 |
Sabemos que já nos anos 60 se praxavam caloiros trajados ou não (os alunos de liceu, por exemplo, estavam sujeitos a praxe de trupe, como disso nos deu conta o Zé Veloso, estudante que lá fez o liceu, em finais dos anos 50, e cursou a universidade, nos anos 60), de forma
indiscriminada, o que revela uma fase de transição, em que o antigo preceito (praxe a caloiros trajados) convivia com um novo (praxes a caloiros à futrica), com uma clara "desobediência" pela tradição (pelo menos a que se registava até aos anos 50), quiçá movida, entre outras possíveis razões, pela irreverência de quem, até as suas próprias "leis", gosta de quebrar e, de certo modo, talvez (e sublinhamos o talvez), em razão das conotações que eram atribuídas ao porte da capa e batina, em certos círculos políticos e sociais.
Às vezes as práticas caem em desuso sem uma explicação muito clara, temos deconvir.
Ainda assim, convém dizer que, nesses tempos, e citando o informe do amigo Zé Veloso,
"...aderir à praxe não era facultativo: a praxe era imposta a todos os alunos liceais e universitários, quer gostassem quer não. Não eram obrigados a usar capa e batina, a praxar, a usar grelo ou fitas. Mas estavam sujeitos a praxe de trupe (se bichos ou caloiros) e a ser mobilizados e praxados (se caloiros). Por estranho que pareça, era assim, e tanto a academia como a cidade aceitavam que as coisas assim se passassem, incluindo as autoridades civis, a polícia e os tribunais. ".
Ainda bem, estamos em crer, que o cariz obrigatório das práticas de praxe aos caloiros e liceais se foi perdendo, em razão da mudança de contexto e mentalidades, embora com ele também se tenham, paulatinamente, desvanecidos alguns conceitos.
(Abrimos um 1º parêntesis para umas breves notas especulativas:
Muito se tem dito que usar capa e batina era ser conotado com o regime salazarista,, mas a verdade é que não era bem assim (como já disso demos conta AQUI).
Será que a perseguição aos caloiros sem traje era uma forma de "castigar", também, os que não pretendiam trajar, punindo aqueles que teriam aderido (ou simpatizado) às propostas "educativas" da Mocidade Portuguesa (para a qual a capa e batina era res subversiva), sendo, por isso, vistos como "inimigos internos da Academia" a precisarem de serem (re)educados; (re)doutrinados?
São conjecturas apenas.)
Mais tarde,
depois, com o reabilitar das tradições, nos anos 1980/90, e com o uso do traje ainda
quase reduzido a ilhas, era normal que as praxes ocorressem em pessoas que não
trajavam (lideradas pelos poucos que trajavam).
Era normal,
mas continuava a colidir com a noção basilar que acima sublinhámos.
(Abrimos um 2º parêntesis para deixar claro que a Praxe, é feita de cristalizações, avanços e rupturas. Muitos costumes foram caindo em desuso, normalmente por se ver neles algo que não era adequado à época e valores vigentes. Contudo, aquilo a que se tem vindo a assistir é ao desuso não por ser considerado inadequado, mas pelo hiato temporal que constituiu o luto académico, e que promoveu o desconhecimento da Tradição, quando esta foi "repescada")
Actualmente, o uso do traje está muito mais
universalizado e disseminado, contudo, desde os anos 80/90, registou-se, com o
crescimento da adesão ao traje, uma doença (mutação assente em estupidez e
ignorância) que foi minando os próprios alicerces da Praxe: proibir caloiros de
trajar (elevada a “lei” em muitos codigozinhos de treta), o que, desde logo,
também implica que esses trajes deixem de ser, de facto, “académicos”, pois
retiram-lhe, exactamente, a sua função histórica e primária: identificar o
estudante (e caloiro é estudante), como já neste blogue abordámos (ver AQUI).
Dir-me-ão
que, hoje em dia, o traje não é de porte obrigatório e que, por isso, os caloiros
se furtariam a usá-lo (logo de início) só para não serem praxados.
Pois é, é um
direito que lhes assiste, tal como aceitarem, ou não, serem praxados (sem que
isso possa ter consequências sequer). Mas creio ser argumento erróneo, pois se as praxes sempre existiram, tal nunca impediu os caloiros de trajarem (mesmo depois da abolição do porte obrigatório), até porque um dos maiores sonhos do caloiro, por princípio, é precisamente o de poder trajar (porque, ele sim - o traje, é o primeiro e mais forte elemento integrador, o principal elemento iconográfico expressivo de pertença e identificação da sua condição).
Voltamos a sublinhar que o porte obrigatório do traje já foi abolido há cerca de
100 anos, o que não impediu os caloiros (e liceais) de continuarem a trajar
durante décadas (ininterruptamente até à década de 1960), pelo que sempre houve
praxes a caloiros trajados, como era próprio, secundum praxis, como sempre tiveram gosto em fazê-lo, sem precisarem de dar provasde um qualquer merecimento praxístico (quando o merecimento resulta, apenas e só, do seu mérito académico, que os colocou na universidade).
Diamantino Calisto recorda o seu tempo de novato
(caloiro) dizendo:
“Em 1901 –
17 de Outubro, salvo erro - apresentei-me na Universidade com a
minha capa e batina “rota e velhinha” (…) atravessei a “Porta Férrea”
sem apanhar o “canelão” a que já me referi, isto é, sem apanhar como “caloiro”
que era, pastadas na cabeça e nas costas e pontapés ou caneladas acompanhadas
das respectivas assuadas, e sem, tão pouco, já dentro da Universidade, ser
troçado”
Já Alberto Costa (ex Pad-Zé) dizia do seu
tempo de novato:
“Já então
desfrutava de uma certa popularidade (…)
minha audácia de entrar a porta-férrea sem protecção, desafiando o coice
segundanista, a descarada resistência que opunha às troças, de que o veterano
saía por vezes com trombuda cara de caloiro (…)Para mais, eu era o preferido de
uma apetitosa tricaninha do Bêco dos Militares, a quem um lente de Direito
“fazia bem”, e que me cosia a capa e
batina nas ausências recatadas do catedrático.”
Por sua vez, Antão de Vasconcellos narra, nas suas
famosas memórias, o episódio de um famoso caloiro, de seu nome “Bica”, num desacato com alguns
veteranos:
“O Bica tirou a capa e com ella dobrada
a meio, como arma de combate, a única de que dispunha, rompeu o cerco e,
recuando, disputou palmo a palmo o terreno, até que pôde esgueirar-se com a capa em petição de
miséria…..não o apanharam!!”
Também em Barbosa de Carvalho,
encontramos a seguinte passagem, referente à exploração do caloiro por parte
dos veteranos, a quem se vendia um traje em mau estado ou má qualidade, ainda
que exigindo pagamento como se fosse pano de 1ª qualidade:
“Já o José
Vitorino se abrigou indevidamente á sombra deste principio, impingindo a um caloiro certa batina
de má fazenda, muito para lástimas e com
buracos, por preço exorbitante e desmedido.”
Por fim,
também em Trindade Coelho,
a referência a caloiros trajados:
“…porque nos apareceu no 1° ano um fedelhote e formou-se não tendo
ainda na cara sinais de barba! Era Além disso muito branquinho, muito
coradinho, muito tenrinho e um quase nada louro, e andava sempre com a sua capa e batina muito escovadas e a
risquinha do cabelo muito bem feita!”
(...)
“Eu,
por exemplo, enverguei uma batina no
dia em que cheguei a Coimbra, pus-lhe por cima uma capa – e capa e
batina foram elas, que me fizeram a formatura!”
R. Salinas
Carvalho refere, quanto a ele, enquanto caloiro (1991-12), o seguinte:
“Éramos
todos doutores, mesmo em caloiros [para a população]
(…)
O nosso
traje era a capa e batina, e a farda
de cavalaria para o Alvim , louro e garboso cadete, de bicha dourada, e duas
estrelas de metal amarelo, de segundanista e o pequeno barrete militar, “taxinho”,
sem pala com francelete de verniz prêto”
São apenas alguns
excertos que ilustram um facto que desmonta as muitas estórias, ficções e
invencionismos.
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Trupe praxando um caloiro
In Estudantes de Coimbra e a sua Boémia, Ilustração, Ano 6, Nº 141, de 01 Novembro de 1931, p.22
(Hemeroteca Municipal de Lisboa). |
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Tonsura de um caloiro por elementos de uma trupe.
Pintura mural de finais da década de 1950 que existiu na extinta República dos Paxás |
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Caloiro protegido pela pasta do veterano, escapando, assim, ao canelão.
In "Estudiantes de Coimbra", Revista Estampa Ano 9, nº 437, 30 Maio 1936,.Madrid. p3 |
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Caloiro alvo de praxe (no que parece ser um rapanço)
In "Estudiantes de Coimbra", Revista Estampa Ano 9, nº 437, 30 Maio 1936,.Madrid. p.3 |
Por outro
lado, não enjeitemos o facto do uso do traje ser, desde há décadas,
facultativo, o que nunca foi causa do abandono do traje, pelo que o argumento de que os caloiros só aderem ao traje porque esse gosto é miraculosamente incutido por "obra e graça" das praxes, não tem qualquer sentido.
Hoje em dia vestem a “fatiota” especialmente para poderem praxar? Fazem mal, enfermando
esse propósito um enorme erro atitudinal, pois o traje não tem por finalidade
praxar, pois praxar é apenas uma premissa decorrente do seu uso e do estatuto
de já ser "doutor".
Como muitos
estarão agora a pensar, exercer certos ritos em caloiros trajados iria, desde
logo, colocar reservas a certas práticas, muito por causa (e bem), do respeito
que nos deve um traje académico.
Assim, só
alguém verdadeiramente sem respeito e sem escrúpulos se atiraria a, por
exemplo, conspurcar um caloiro, envergando o uniforme estudantil, com aquelas
mistelas do "costume", a mandá-lo deslizar ou rebolar na lama,
rastejar em excrementos, etc.
E quão bom isso seria, para a dignificação da
Tradição, até porque essas "brincadeiras" estupidificantes não têm
registo na Tradição (excepto na acefalia pandémica que se iniciou a partir dos
anos 80 do séc. XX). Aliás, nenhuma obra de referência ou literatura
especializada cita, como próprias ou lícitas, praxes que incluam farinha, ovos,
molhos, perfumes, pinturas…………….. citam muitas outras práticas - algumas
verdadeiramente bárbaras, entretanto abandonadas,
mas não esses actuais preparos que passaram a ser as praxes em que muitos se
especializam e acham ser preciso fazer uma qualquer recruta para estar apto à
idiotice.
O caloiro
tem o direito inalienável a trajar desde que se matricula no Ensino Superior.
Faz, tal, parte do livre direito do exercício da sua cidadania académica ,conferido
por um estatuto que decorre exclusivamente da sua condição de aluno
universitário (condição essa que não é determinável por nenhum organismo praxístico, mas apenas pela instituição de ensino cursada e ministério da tutela, pois o acto de matrícula, e mesmo o reconhecimento de matrículas, não é da jurisdição da Praxe).
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Representação do caloiro sob domínio do doutor.
In Leis extravagantes da Academia de Coimbra ou código das muitas partidas
de Barbosa de Carvalho (1916), logo na 1ª página. |
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Quartanista Grelado de Direito(à esquerda) e Apadrinhamento de um Caloiro (à direita).
Pintura de Varela dos Reis, feita na República dos Paxás, anos 50. |
A Praxe
sempre consagrou a praxe aos caloiros sem nunca referir que pudessem estar “à
futrica”, precisamente porque ela parte de uma premissa básica: a lei aplica-se
a quem a ela adere, e isso começa exactamente por "vestir a
condição".
Ora a
condição primárias é a identificação do foro académico, tal só possível pelo
uso do traje – que existe exactamente para expressar esse status quo.
Não que quem
traje tenha obrigatoriamente de aceitar ser praxado ou tenha o dever de praxar
(praxar, ou ser praxado, é tão só um direito, nunca dever), mas é a condição sine qua non envergar o traje académico,
para poder (caso queira), também, exercer esse direito.
ADENDA - para os que acham,
nesciamente, que hoje em dia os caloiros não "saberiam" trajar e
precisariam aprender a fazé-lo, bem como ganhar o gosto pelo uso do traje (pelos vistos só
possível por “obra e graças das praxes”), sob o argumento tonto de que a única coisa que os caloiros sabem de
praxe é o que ouviram dos outros (supostamente as parte piores):
que dizer
dos jovens liceais que, desde os 16 anos trajavam (e ainda trajam em Évora e
Guimarães), sem que a sua tenra idade os impedisse de o fazer devidamente ou
ter gosto (e respeito) no seu uniforme?
E os pobres
finalistas do 12º ano que, para o baile de finalistas, vão de fato e gravata?
Tiveram de ir a uma escola de modelos, fazer um curso num alfaiate ou ler um qualquer tratado régio de "bem vestir em toda a sala"?
TAMBÉM nunca
ninguém ensinou um jovem mancebo a usar o uniforme militar (os vários que se
usavam durante o tempo de tropa), e certamente que também ouviu muitas
histórias sobre quem lá andou.
Precisou de fazer a recruta de jeans e t-shirt
para aprender a vestir umas calças, sapatos, camisa, gravata, casaco e boina?
Pois...........
In CALISTO, Diamantino – Costumes Académicos de Antanho, 1898/1950. 3º Milhar, Imprensa
Moderna. Porto, 1950, pp. 71-72
In Illo Tempore, Estudantes, lentes e
futricas. Livraria Aillaud & Cª. Paris-Lisboa,1902. Citações extraídas
das páginas 53 e189, respectivamente.
CALADO, R. Salinas – Memórias de um estudante de Direito, Coimbra Editora Ldª, 1942, p.140