Um texto que merecia, há
muito, voltar à ribalta (e ao qual acrescentámos algumas imagens). Inicialmente publicado no blogue do amigo Octávio
Sérgio[1],
cremos merecer a maior atenção, nomeadamente para desmistificar um pouco a
confusão instalada entre Praxe e Tradição (que são coisas distintas), e
especialmente para dar a perceber que muito daquilo que é tido como Praxe não o
é (Queima das Fitas, Serenata, Benção das Pastas, Latadas…).
Com efeito, confunde-se
demasiadas vezes aquilo que é a regulamentação de certas tradições com as
próprias tradições. E o maior erro terá sido cometido pelo próprio código da
Praxe de Coimbra de 1957 ao definir Praxe como conjunto de usos e costumes,
quando, na verdade, é um conjunto de normas sobre esses mesmos (alguns,
note-se) costumes – o que é um pormaior que faz toda a diferença. O erro foi
querer fundir o sentido estrito e factual com um ideário genérico e sinedocal
do termo.
O resultado não podia ser
mais pernicioso: confunde-se lei que regula o acto com o próprio acto, que é
como confundir sintaxe com morfologia (a beira da estrada com a estrada da
Beira).
Sem mais delongas:
As Praxes Académicas de Coimbra
Uma interpelação
histórico-antropológica
Por António Manuel Nunes[2]
Resumo: Que leituras para as “praxes estudantis” produzidas
na Universidade de Coimbra? Fenómeno “militarista”, “medieval”, “reaccionário”,
“fascista”, como pretenderam as leituras militantes ligadas à herança do
iluminismo e das esquerdas? “Essência” do ser-se estudante, como propuseram as
direitas e os tradicionalistas não alinhados politicamente? Ou talvez outra
coisa, com os seus praticantes a reinvindicarem uma necessidade/utilidade capaz
de sobreviver aos diversos regimes políticos e ideologias?
Até à década de 1970 os etnólogos portugueses
passaram completamente ao lado da cultura tradicional estudantil[3]. Nenhum estudo, nenhuma
recolha, nenhuma curiosidade. Alguns deles, como Teófilo Braga, longe de
compreenderem a Praxe, foram dela violentos detractores[4].
O primeiro estudo de fundo
produzido no âmbito de uma licenciatura em Ciências Antropológicas e
Etnológicas foi realizado por António Rodrigues Lopes[5]. O autor cruza a
observação participante (morou na Alta coimbrã até aos 24 anos) com a pesquisa
documental e a análise interpretativa. Rodrigues Lopes caracteriza com grande
rigor as instituições fundamentais da Sociedade Tradicional Académica, as
praxes, os orgãos jurídico-políticos, a antropologia económica, a captura e
extinção da praxe na sequência dos movimentos estudantis da década de 1960. As
sugestões de abordagem teórico-conceptual são estimulantes. Em nossa opinião o
ponto fraco desta obra reside numa visão excessivamente essencialista e
acrítica do fenómeno coimbrão, decerto tributária do paradigma funcionalista. O
autor exclui a teoria da conflitualidade social e a coexistência de paradigmas
ideológicos díspares no mesmo tecido sócio-cultural e cronológico.
![]() |
COIMBRA - Costumes académicos - as troças à Porta Ferrea Ediçao de P Borges, Novato (sic) levando às costas um veterano, bom calção. ca. 1910 |
Maria Eduarda Cruzeiro, docente
do Gabinete de Investigações Sociais da Universidade de Lisboa, publicou em
1979 um ensaio sociológico sobre as praxes coimbrãs, assumido como trabalho
preparatório da sua tese de doutoramento (“Costumes estudantis de Coimbra no
século XIX: tradição e conservação institucional”, Análise Social, volume XV,
1979, págs. 795-838). Com ligeiras diferenças, este trabalho foi republicado
com o título de “Folclore estudantil e cerimonial académico: práticas de
produção e reprodução institucional”, Vértice, nº 28, Julho de 1990, págs.
47-56. No caso vertente, a autora sufraga uma postura antipraxista, criticando
a restauração das praxes no após 1974, e empregando ao nível da investigação um
modelo bebido em Pierre Bourdieu, que pretende reduzir a Praxe a práticas de
produção e de reprodução da Universidade de Coimbra[6]. Isto é, a praxização dos costumes estudantis, observada a partir do
século XIX, funcionaria como um mecanismo de defesa e preservação da excelência
coimbrã face às arremetidas das escolas médico-cirúrgicas, escolas politécnicas
e Curso Superior de Letras. Revela-se profundamente discutível reduzir os
fenómenos praxísticos oitocentistas a uma operação de defesa da UC, dado que a adopção do termo “praxe” não
espelha a consciência defensiva invocada, e os costumes estudantis surgem como
fenómeno cultural autónomo e até contracultural em relação ao modelo de
saber/cultura produzido pela UC. Arriscamos afirmar, sem lesar a realidade
histórica, que a par das faculdades de Direito, Medicina, Teologia, Matemática
e Filosofia, os estudantes criaram e geriram uma “5ª Faculdade”, como aliás
gostavam de escrever nas suas crónicas, com vivências e práticas muito
específicas. Sendo verdade que a Praxe comporta(va) uma componente de
preservação da tradição/identidade diferenciada, ela é muito mais do que isso.
Isso mesmo nos mostra a observação participante, traduzida na vivência quotidiana
destes fenómenos.
Se a interpelação tardo-marxista e
bourdieuanista intentada por Maria Eduarda Cruzeiro não foi inteiramente
compreensiva, já a leitura de Manuel Carvalho Prata, docente da Escola Superior
da Guarda, se nos assevera bastante conseguida, por via das sugestões
descodificadoras bebidas em Mircea Eliade, Gilbert Durand e Roger Callois (Cf.
“A Praxe na Academia de Coimbra. Das práticas às representações”, Revista de
História das Ideias, Nº 15, Coimbra, 1993, págs. 161-176), configurando um bom
ponto de partida para a abordagem da temática.
Na gíria tradicionalmente usada
pelos estudantes da UC detectam-se vocábulos como “praxe”, “praxar”, “estar na
praxe”, “ser praxado”. Sendo certo que o termo Praxe não se vulgarizou nos
meios académicos conimbricenses antes de meados do século XIX, as normas,
práticas e rituais que sustentam tais instituições culturais remetem
directamente para elementos herdados da Idade Média e do Antigo Regime, a par
de outros que foram sendo transformados, inventados e acrescentados.
As referências escritas aos rituais estudantis para
trás de 1850 são rarefeitas, tendo em conta os processos dominantes de
transmissão oral, passados aos mais novos através dos veteranos, de antigos
estudantes para filhos e de futricas para caloiros, num processo onde
intervinham barbeiros, alfaiates, taberneiros, engomadeiras, criadas
domésticas, funcionários da UC e proprietárias de bordéis[7]. Aliás, até à emergência da primeira grande
codificação de 1957, as praxes e os
costumes estudantis transmitiam-se oralmente, radicando a sua coerência no mito
e na antiguidade.
Tendencialmente conservadores, os rituais praxísticos assentes na tradição
oral eram simultaneamente abertos e flutuantes, porquanto permeáveis à
incorporação do novo.
Citem-se
- a substituição da Palmatória pela Colher de Pau à roda de 1900;
- o rasganço das vestes dos quintanistas pela mesma época;
- a invenção das Cartolas e Bengalas por 1931;
- a prática da Pastada na década de 1920;
- a Imposição de Insígnias dos Quartanistas Grelados em 1946;
- a Queima das “Fitas” dos Quartanistas por volta de 1896;
- as latadas de abertura do ano escolar inventadas nos inícios da década de 1950;
- a institucionalização e regulamentação do Trajo Académico Feminino pelo Conselho de Veteranos em 1954;
- a adopção do ritual da compra do Grelo/Nabiça às vendedeiras do Mercado Municipal desde a Revolta do Grelo de 1903.
Até à Revolução Republicana de
1910, a UC pelo número diminuto de alunos e pela rarefacção de alunas foi uma
escola de elite, mais próxima dos extintos liceus, colégios particulares, e
seminários diocesanos, cujos estatutos propunham normas de conduta similares às
vigentes na caserna militar, nos seminários católicos, nas constituições
sinodais dos bispos diocesanos, orfanatos, mosteiros e casas de correcção[8]: recordemos o toque do
sino para a recolha vespertina e levantar, as regras atinentes ao uniforme de
porte diário, o respeito ao reitor e aos lentes, a expulsão temporária ou
definitiva. Por conseguinte, até às
modificações operadas na UC pela Revolução do 5 de Outubro de 1910, ainda a
Praxe não se tinha apoderado de certas regras disciplinares que constando dos
antigos Estatutos e do Regulamento da Polícia Académica eram sindicadas e
dirimidas pela própria Universidade.
Praxe pode definir-se em sentido restrito como o
conjunto de normas criadas e vivenciadas pelos estudantes que regulam as
relações entre os novatos/caloiros e os alunos dos anos mais avançados
(doutores) e ainda as relações entre os estudantes, lentes e futricas. Neste sentido,
a Praxe é sinónimo de estilos ou leis que instituem as diversas hierarquias
internas, os rituais de iniciação e de passagem, como usar o Trajo Académico,
os objectos e espaços interditos, e também o regime de sanções disciplinares e
de emancipações. Instaurando sanções físicas, psicológicas e
económicas, proibindo o uso de determinados bens simbólicos, sancionando tabus,
premiando e distribuindo reforços positivos, a Praxe comporta(va) uma dimensão axiológico-normativa que está(va)
longe de significar violência discricionária.
Em sentido mais alargado, o conceito de Praxe
aproxima-se daquele que foi positivado nos artigos de abertura dos códigos da
praxe de 1957 e 1993/2001: amplo e fluido, reporta-se a usos e costumes
tradicionalmente vigentes na Academia de Coimbra e aos que lhe possam vir a ser
acrescentados por via do poder legistativo/judicial cometido ao Conselho de
Veteranos. Compete, aliás, ao Conselho de
Veteranos, revogar determinadas práticas e legislar nos casos omissos,
funcionando como Poder Legislativo. Mas compete-lhe igualmente funcionar como
tribunal superior de apelação, informando periodicamente e sindicando da boa
aplicação da Praxe. Aqui, a definição de Praxe abarca conceitos como cultura
estudantil, tradições académicas e “decretus” positivados em sede de Conselho
de Veteranos.
Trata-se de uma tentativa de definição centrípta,
na medida em que dilui na esfera da Praxe instituições que sendo tradições
ou costumes não são Praxe.
Constituem exemplo deste esforço praxizador a
Queima das Fitas, a Récita dos Quintanistas, as Reuniões de Curso dos Antigos
Estudantes da UC, a Festa das Latas e Imposição de Insígnias, o “bom” uso da
Capa e Batina, a Serenata. Especificando melhor, são praxe as normas que
regulamentam a boa exercitação cíclica destas tradições, mas estas instituições
costumeiras não são praxe em sentido estrito[9].
Antes de meados do século XIX
estas práticas foram designadas por INVESTIDAS (até finais do século XVIII),
TROÇAS/ASSUADAS e CAÇOADAS (1ª metade do século XIX), comportando elevado grau
de violência física e psicológica.
Contrariamente ao que se possa
pensar, esta violência ritualizada, e veementemente condenada desde o
iluminismo, pouco ou nada se distinguia das troças com que os fidalgos
mimoseavam os vilões e as raparigas do povo, das penalidades infamantes
vigentes nos forais e Ordenações até ao advento do Liberalismo, da defesa da
honra entre rapazes de aldeias rivais, e da exercitação da vingança privada nas
comunidades rurais. São disso exemplo as latadas aos recém-casados e nubentes
viúvos, as cornetadas à porta das adúlteras, os chocarreiros testamentos da
Serração da Velha e Queima do Judas, o deitar pulhas, os entrudos porcos com
arremesso de cinzas, ovos podres e tripas, as pancadarias dos habilidosos
manejadores de paus em feiras e romarias, os insultos acompanhados de murros,
taponas, escarros, sinais obscenos, palmadas nas nádegas, a coroação e
sermonário dos maridos cucos/cornos[10].
O elevado grau de violência
registado na exercitação dos rituais de entrada dos caloiros até ao 5 de
Outubro de 1910 não se distingue nem distancia da violência detectada pelos
etnólogos nas comunidades rurais portuguesas e europeias[11].
Só passa a distinguir-se
gradativamente a partir do Liberalismo, quando as normas de civilidade e boas
maneiras impostas pela cultura urbana e pela escola se conseguem sobrepor à
cultura popular[12].
Contrariando tudo quanto se acha
escrito, as fontes documentais dizem-nos que até bem entrados no século XX não
havia em Coimbra uma distinção marcante entre tradições e rituais estudantis e
a cultura popular.
O que havia era demarcação identitária por via de
territórios, de ocupações profissionais e do grau de cultura.
Comparando a Queima do Judas,
realizada pela Sociedade Tradicional Futrica anualmente, na Praça Velha, com a
Queima das Fitas, levada a cabo pelos quartanistas de Direito e de Teologia
entre a Porta Férrea da UC e o Largo da Feira, ambas as festividades coincidem
nos pontos nevrálgicos:
a) fim da Penitência Quaresmal/Fim
do Ano Escolar e dos Exames;
b) Esconjuro do Inverno/ Esconjuro
dos caloiros e do ano escolar;
c) Imolação de Judas pelo
fogo/Incineração das fitas dos quartanistas;
d) Renovação Pascal/Emancipação dos Caloiros e Renovação das gerações
estudantis,
e) Sermonário satírico de denúncia
dos males da sociedade/Cartaz chocarreiro com versos em tom de crítica
grotesca;
f) fertilização do solo com as
cinzas de Judas/Enterramento das cinzas das fitas velhas ao portão da
Universidade.
É perante o irreversível declínio da cultura
popular e rural[13],
por um lado, e a afirmação da nova cultura cívica urbana, por outro, que as
praxes académicas coimbrãs nos seus aspectos mais violentos passam a ser
condenadas e ameaçadas de extinção, como sucedeu no rescaldo da Revolução
Republicana de 1910 e nos anos que antecederam a Revolução de 1974.
Que práticas
mais ancestrais nos é dado conhecer?
Nenhuma festa de acolhimento que
nos possa lembrar as semanas culturais que começaram a fazer época desde os
movimentos restauracionistas de 1979-1980. O novato é um ser estranho à
comunidade, e logo uma ameaça, começando por ser desbestializado. À semelhança
do noviço conventual que entrega os bens materiais e sofre a tonsura
sujeitando-se à regra monástica, e ao mancebo que é rapado no quartel[14], o caloiro é considerado
juridicamente res nullius, animal,
besta, João Fernandes (=João Toleirão).
As descrições caricaturais
repetidas nos textos memorialísticos permitem-nos desenhar um ser antropomórfico,
guarnecido de crinas, patas, cascos, ferraduras (sapatos), cornos, cheiro
pestilento, descerebrado. Ser híbrido, ora é referido como touro, ora como
burro, ou mais frequentemente misto de touro e burro[15]. Nos cortejos alegóricos
profusamente referidos nas fontes memorialísticas, repetem-se as alusões a
cornos que ornamentam cabeças e pescoços e a chocalhos de gado.
Sujeito à mais completa
despersonalização, ao cabo e ao resto autêntica morte simbólica, o caloiro não
passava a ser membro da comunidade porque se matriculava oficialmente na UC,
mas sim porque a Sociedade Tradicional Académica dele se apropriava.
Situemo-nos por agora entre o
século XVI e a inauguração do caminho de ferro Lisboa/Coimbra/Porto em 1864.
Primeiramente reconhecidos no Largo da Portagem, os caloiros são alvo de
investidas, troças e manganices, rituais intensificados ao longo do mês de Outubro
e praticados até final do ano escolar.
No Largo da
Portagem:
-Picaria
– os caloiros são enfreiados e albardados, montados por diversos veteranos,
esporeados nos flancos, chicoteados, devendo zurrar, atirar pinotes, trotar;
-Tourada – os caloiros são pintados com bigodaças, ornados com chifres e toureados
com farpas (mocas, palmatórias), passes de capas, devendo raspar as mãos no
chão, mugir ruidosamente e mastigar palha ou erva;
-Insultos
– o caloiro é alvo de troças chocarreiras, insultos alusivos a familiares,
traços fisionómicos, vestuário, penteado, eventuais defeitos físicos, sendo no
fim mimoseado com uma alcunha que o passava a identificar ao longo de todo o
seu percurso académico;
-Baptismo
– conduzido a um chafariz/fonte por uma matilha de veteranos, o caloiro era
baptizado com água despejada sobre a cabeça;
Primeiros dias de aulas:
-Canelão/Pega de Caras – no primeiro dia de aulas os alunos eram
esperados à Porta Férrea pelos quintanistas que se agrupavam em duas alas,
simulando a descida aos Infernos e as margens do Rio Estígio. À medida que
entravam eram sovados com palmadas, empurrões e pontapés nas canelas. Podiam no
entanto ser protegidos pelos quintanistas fitados, designados por Barcas de
Caronte. Este ritual já se praticava antes de 1640 e durou até 1908;
-O Grau – paródia à cerimónia de doutoramento, o caloiro era fechado numa sala tal
qual acontecia nas provas doutorais ocorridas na Sala do Exame Privado,
competindo-lhe defender uma tese burlesca perante um júri. Após os discursos do
padrinho era investido com um penico na cabeça;
-O Julgamento/Tribunal – ritual iniciático-punitivo realizado em cenários
macabros, a que não são alheios procedimentos transpostos das lojas maçónicas.
Ambiente escurecido, códigos, objectos de tortura, castiçais armados sobre
caveiras, juízes, jurados, advogados, carrasco, réu, rostos embuçados. Servia
de banco dos réus um penico. Para o século XIX há referências explícitas a
penalidades temíveis como o encarceramento em ataúde, sovas, tonsura ad
libitum, “salto mortal” com os olhos vendados, “fuzilamento” com batatas,
“degolação”, “sangria”, suplício da gota, depilação, selagem com cera quente.
-A Patente – sanção pecuniária, comum em universidades
espanholas, consistia no pagamento de doces conventuais, lautas ceias e bebidas
aos veteranos;
-A Trupe – no caso de ser apanhado fora de casa após o
toque vespertino da Cabra, o caloiro podia ser caçado por grupos de estudantes
mais velhos, armados de mocas, tesourões, palmatórias, pistolas. Nestes casos
sofria tonsura parcial ou completa e palmatoadas (bôlas) nas mãos. Podia
defender-se em duelo com o chefe da trupe e caso vencesse não sofreria as
sanções. Épocas houve em que as trupes se confundiram com bandos juvenis
delinquentes, ou em alternativa, praticaram um policiamento nocturno
morigerador, fazendo regressar ao estudo caloiros encontrados em casa de
meretrizes, casas de jogo a dinheiro e tabernas;
-Serviços
domésticos – os veteranos tutores e apadrinhadores tinham o direito de mobilizar
os seus caloiros para compras, limpezas domésticas, serviço de mesa, recados,
idas à caça nos arredores da cidade, escovagem de cavalos, transporte de
bagagens;
-Discursos – improvisação de um discurso sobre um tema
burlesco, do tipo “qual nasceu primeiro, o ovo ou a galinha”;
-As Soiças/Pega de Rabo – cortejos burlescos de passagem ligados à
celebração do fim do ano escolar e à emancipação ritual dos caloiros. Estas
festividades arcaicas, muito próximas das festas dos burros, festas dos loucos,
festa dos rapazes, charivaris de carnaval, enterro do bacalhau, queimas dos
judas, serrações da velha, passam a designar-se no século XIX por latadas,
festa das latas e festa do ponto. Com a Pega de Rabo, último grande ritual de
celebração do fim do ano escolar, suspendia-se momentaneamente o tempo,
exorcizando a morte do ano velho (fustigado com latas ruidosas, mais tarde
incinerado), parodiando professores, políticos e graves autoridades[16].
Mas era também esse ser híbrido, o Novato, que
perdendo cornos, cascos, crinas, patas, mau hálito, se metamorfoseava em homem
novo e ascendia à categoria de Semi-Puto.
Os Semi-Putos passavam a
Pés-de-Banco ou Ponte dos Asnos. Os Pés-de-Banco eram iniciados no estatuto de
Candeeiros ou Doutores de Merda. Por último, os Candeeiros personificavam o
derradeiro escalão da hierarquia, renovando o estrato dos Quintanistas,
Carontes ou Merda de Doutores. Completava-se mais um ciclo, sujeito a repetição
anual.
As praxes de fim de ano eram simultaneamente
rituais de passagem e rituais de integração-emancipação.
Os estudantes de todas as
categorias hierárquicas libertavam-se da frequência das aulas. Todos morriam
ritualmente para serem uma vez mais investidos num estrato sócio-cultural
superior. Os dos quinto ano morriam como estudantes-jovens, saindo de casa da
mãe (a Universidade), ingressando na adultez, na vida profissional. A Sociedade
Tradicional Académica renovava-se e florescia na Primavera.
A partir de finais do século XIX as antigas praxes sofrem evoluções
significativas:
·
Canelão tende a desaparecer, substituído pela Pastada na década de 1920;
·
A palmatória cai em desuso, sendo substituída pela colher de pau, objecto
simbólico que desde a Idade Média ornava o peito e os chapéus dos estudantes
tunos ibéricos.;
·
Grau é abandonado e substituído pelo Julgamento/Tribunal, ritual que glosa
o tribunal judicial, pese embora com alusões demasiado evidentes às cerimónias
iniciáticas de sociedades secretas;
·
Trajo Académico é abolido como uniforme obrigatório em 1910 e doravante não
são os Estatutos da UC a regulamentar o seu uso mas sim as normas praxísticas
(talho, cor, modo de trajar) legisladas pelo Conselho de Veteranos;
·
As hierarquias são mantidas, com alterações de nomenclatura. Continuam a
Patente, as troças, os discursos burlescos, os sistemas de protecção, a
alforria, o apadrinhamento, a imposição de alcunhas, as mobilizações para
serviço doméstico, as trupes, os rapanços, as unhadas;
·
A festa arcaica praticamente desaparece, progressivamente substituída pela
nova Queima das Fitas. Esta revela poderosa capacidade congregadora, na medida
em que incorpora todas as Faculdades e ainda o ritual de despedida dos
quintanistas.
Nascida no seio de uma comunidade
masculina, a Praxe manteve sempre o princípio da separação dos sexos, mesmo
quando em 1954 foi instituído o trajo feminino.
II – O burlesco, o riso e a
chacota
As praxes conimbricenses comportam desde tempos
imemoriais uma forte componente ligada ao riso, à sátira e ao burlesco. Caçoar, troçar, gozar, mangar, deitar pulhas[17], esturdiar, são termos
herdados do Antigo Regime, vazados em práticas longamente recenseadas nas
fontes escritas. Os veteranos riam, ridicularizando os estudantes do secundário
e os alunos do primeiro ano.
A exercitação do riso era
alimentada por alcunhas, dixotes, discursos burlescos, declarações de amor a
mulheres idosas, charivaris, investidas físicas. Mas, o riso estendia-se a
outras esferas sociais. Comerciantes citadinos e camponeses dos arrabaldes da
cidade eram também alvo de gozações e de partidas imaginosas.
Os lentes sofriam todo o tipo de
verrinas, a começar pela Tourada e a acabar nas serenatas de escárnio e
maldizer.
Repare-se que a propósito da
cerimónia doutoral de Imposição de Insígnias se designa o barrete (borla) por
apagador do senso comum e o capelo por albarda (tomar albarda). Da mesma forma
que competia à Academia dizer se aceitava ou não integrar o aluno do primeiro
ano, também competia à Academia aceitar ou não o novo lente (professor).
E este só era aceite após a
Tourada ao Lente, com ingestão de feno/ ramagens, pinotes e discursos
estrambóticos. O reconhecimento e a consagração só passavam a ter efeito a
partir do momento em que o quintanista-padrinho colocava a pasta com as fitas
sobre a cabeça do lente toureado (investidura, honra).
A Praxe
comporta uma dimensão corrosiva de inversão da ordem social, de crítica mordaz,
que ainda hoje se prolonga nos ditos e “bocas” das latadas e carros alegóricos
da Queima das Fitas, nas piadas e partidas mais ou menos imaginosas, no latim
macarrónico.
Evoquemos também os caloiros que
mobilizados para serviço de mesa nas repúblicas tinham de envergar fardas
burlescas, com peças do avesso e pijamas; os caloiros que faziam porta de armas
nas repúblicas, com vestes do avesso, penico na cabeça e vassoura na mão,
gritando “às armas” sempre que ali passasse mulher jovem; o estrondoso
charivari que eram as latadas do século XIX; a risota causada pelos discursos
estrambóticos e declarações amorosas; as caricaturas dos livros de quartanistas
e de quintanistas, apelando aos vícios, às taras, ao burlesco físico e
psicológico.

São os cortejos que atravessam as
ruas e atroam a cidade; são os estudantes que invadem o mercado municipal num
jogo de compra/furta a nabiça (grelo); são as repúblicas que entre os alvores
do século XX e a década de 1960 povoam as fachadas com bonecos enforcados,
cadeiras, cangirões, cestas de vime, garrafões, tampos de sanita, violões; são
os caloiros que vestem pijamas e desfilam pelas ruas; são os quartanistas que
sacrificam os grelos em honra de Minerva, transformando o penico em altar
sagrado.
Gritos desregrados, vómitos na
via pública, urinadelas, garrafas e vidros pelo chão às toneladas, lautos
jantares, ingestão descontrolada de vinho e de cerveja, arraiais que entram
pela madrugada e proíbem o tranquilo sono dos moradores. O riso e o choro, a
morte e a vida, o Amor (Eros) e a embriaguês (Dioniso), a dança triunfal de
Flora sobre os despojos do Inverno.
III – Civilizar/Extirpar
As queixas contra certas práticas
estudantis consideradas desordeiras, perturbadoras, excessivas, remontam à
Idade Média. As mais antigas, remetem-nos para os reinados de D. Dinis e Dom
João III, fazendo eco da frequência de bordéis, do jogo a dinheiro, da
perturbação da ordem nocturna citadina (gritos, toques de tambor, cantorias,
assaltos, porte de armas, charivaris, pateadas). Os ataques à Praxe sobem de
tom no século XVIII, coincidindo com a afirmação da cultura letrada iluminista.
D. João V, Luís António Verney e António Ribeiro Sanches condenam severamente
tudo quanto se relacione directamente com troças, palmatoadas, tonsura,
chibatadas, escarradelas, tourada, trupes, patentes.
No fundo o que se condena é a
vida ociosa e boémia, o perigo da malformação do carácter, o culto das
aparências, a distinção social, os prazeres nocturnos desregrados, o excesso
das palavras e dos gestos corporais (insultar, escarrar, urinar na rua,
vomitar, gargalhar).
A ociosidade pública deixa de ser tolerada
pelos manuais de boas maneiras, e bem assim o consumo não produtivo do tempo
académico. Combate-se oficialmente a mentalidade fidalga a partir da reforma
pombalina, apelando à limpeza do uniforme e do corpo, ao estudo, à
obrigatoriedade dos exames, às ocupações diárias honestas. Mas a Praxe continua
a rejeitar os códigos de civilidade.
No século XIX, após a implantação
da Monarquia Constitucional, redobram os ataques, nas vozes de José Ramalho
Ortigão, Joaquim Teófilo Braga e do prestigiado director do jornal local O Conimbricense,
Joaquim Martins de Carvalho. É na segunda metade do século XIX que se assiste à
construção da figura do antripraxista, via de regra associada a causas
humanitaristas, proletárias, socialistas, republicanas e anarquistas. Nas
vésperas de 1910 recrudesce a denúncia das praxes iniciáticas “bárbaras”, desta
vez, sugerindo-se a sua substituição por eventos culturais e recreativos.
Entre 1910 e a eleição de Sidónio
Pais para chefe de Estado a Praxe sofre algum declínio.
Novo período de denúncia ocorre
de 1928 a 1936. A Praxe volta em força a partir de 1917-1918, para sofrer novo
crepúsculo entre 1962-1969, com extinção formal no período 1969-1979. Na fase
final do Estado Novo, a Praxe foi assimilada ao fascismo autoritário. A partir da década de 1920 define-se a
categoria do adepto de certas tradições, mas antipraxista.
Exemplificam esta situação
figuras conhecidas como os cantores António Menano e Edmundo de Bettencourt e o
futuro lente de Direito António Ferrer Correia. A partir dos inícios da década
de 1960, com a politização dos movimentos associativos, a Praxe passa a ser
conotada pelas esquerdas radicais e contestárias com reaccionarismo,
militarismo, autoritarismo fascista.
Como interpretar o conjunto de normas e
rituais de entrada e de passagem tradicionalmente designadas por Praxe
Académica?
1º - a
Praxe configura-se como uma ordem jurídica menor instituída e praticada num
determinado território pelos estudantes da UC. Ordem jurídica menor, quando
confrontada com o Estado de Direito e sua produção normativa centralizada.
Representa sobrevivências de práticas culturais e de penalidades infamantes que
lograram escapar a todas as ofensivas saídas ou herdadas da Revolução Francesa.
Daí que por diversas vezes tenha colidido com o demorado processo de
centralização/estatização da Justiça, evidenciando capacidade de resistência
pelo seu profundo enraizamento nas culturas académica e popular locais. Coimbra
não foi um caso único de sobrevivência de práticas culturais avessas à
civilização urbana e à cultura de massas, podendo citar-se o caso de Rio de
Onor (conhecido graças ao estudo levado a cabo por Jorge Dias) e as touradas de
morte em Barrancos.
![]() |
Costumes Académicos de Coimbra, Bilhete Postal, ca. 1960 |
![]() |
Costumes Académicos de Coimbra, Bilhete Postal, ca. 1960 |
3º - A praxe ritualizada celebrava a
sociabilidade, a integração, o convívio, as relações de vizinhança, a vida
grupal, a juventude, mas num registo social rigidamente estratificado,
hierarquizado, e até vicinalmente vigiado, onde cada estamento era igual entre
si, mas desigual em relação ao antecedente e ao procedente. Daí o choque
directo com o credo cívico e as virtudes pregadas pela Revolução Iluminista de
1789 a nível dos Direitos Humanos e dos princípios da Igualdade e Liberdade.
Aceitando o individualismo, a Praxe valorizava a vida comunitária, a
convivialidade familiar, a vizinhança, o contacto diário, o sistema de
alcunhas, a relação tutorial caloiro-veterano ou caloiro-padrinho, instituindo
um controlo social baseado em sanções, castigos, persuasões, recompensas,
hierarquias.
![]() |
Costumes Académicos de Coimbra, Bilhete Postal, ca. 1960 |
![]() |
Costumes Académicos de Coimbra, Bilhete Postal, ca. 1960 |
5º - Por detrás de uma cultura proclamada
máscula, nidificam práticas e representações claramente femininas. Femininas e
matriarcais são a Academia, a Alma Mater (Universidade), a Canção de Coimbra, a
Viola Toeira, a Guitarra de Coimbra, o culto da Noite, das Estrelas, da Lua.
Que representava simbolicamente o Canelão à Porta Férrea senão o incesto ritual
do noviço (caloiro) com a sua nova mãe (Universidade), o baptismo nos
fontanários e o ir beber água à Fonte do Castanheiro na noite de São João? Que
representavam as ancestrais Soiças, latadas, Queima das Fitas, que não seja a
morte ritual do homem velho, do ano escolar que termina incinerado, da
celebração da floração primaveril? Que representavam as serenatas, onde se
clamavam a noite, a lua, as estrelas, as fontes, a mulher amada, a mãe? A mãe,
mas nunca a figura paterna! O que significava esse velho ritual de rasgar as
vestes e ser violentamente sovado com palmadas no momento em que se acabava o
curso e se fugia em correria pela Porta Férrea? O sair da mãe, nu, adulto,
emancipado.
Pode afirmar-se que as “tradições académicas” eram
de índole maternal, apelando aos
afectos, à alegria juvenil, à adesão espontânea dos “filhos” que alegres
louvaminham a Mãe/Alma Mater, e despeitados lhe chamavam de quando em vez
Madrasta. Em contrapartida, as praxes
iniciático-punitivas eram vincadamente masculinas, castigadoras,
reproduzindo a imagem tradicional do pai português armado de palavra grossa,
cinto de couro e vara de marmeleiro.
6º - A Praxe, comportando um determinado grau
de violência simbólica, física, psicológica e económica, não se confundia com
delinquência juvenil. A sua exercitação era enquadrada por regras e numerosas
excepções, vazadas em institutos jurídicos designados Protecções, Salvus
Condutus, Carta de Alforria, Desmobilização, Emancipação. A Praxe consagrava o princípio do Objector de Consciência, reconhecendo
o direito a não ser praxado. Reservava aos elementos do sexo feminino ampla
esfera de acção. Permitia a circulação nocturna para efeitos de práticas
desportivas, participação em actividades musicais, corais, teatrais e outras,
mediante o expediente do Salvus Condutus. Proibia que os caloiros fossem
sujeitos a praxes, quando protegidos por pais, empregadas domésticas, irmãos,
namoradas/namorados, embriaguês, serenatas, vitória em duelo com chefe de
trupe, triunfo oral em discursos que retirassem a capacidade de resposta a
veteranos, afirmação de capacidades artísticas dignas de reconhecimento (bom
cantor, bom instrumentista). Embora a maioria das sanções praxísticas se
reporte a Bichos (ensino secundário) e Caloiros (alunos do primeiro ano), o
estudo das fontes revela que os estudantes de todas as hierarquias e os membros
do corpo docente também estavam sujeitos a práticas sancionatórias.
![]() |
Costumes de Coimbra, anos 80 |
7º - Os ritos de iniciação/passagem continuam
a desempenhar importante papel na vida humana. A iniciação ritualiza a passagem
da puberdade à adolescência e desta à adultez. Em cada passagem há morte
simbólica, nascimento e de novo morte. Cada passagem implica um conjunto de
mudanças codificadas e uma aceitação social. O caloiro iniciado separa-se do
seu meio familiar, geográfico e sócio-cultural. O ano de caloiro equivale a um
tempo de purgação e de gestação embrionária no ventre da Alma Mater, outrora
personificado pela entrada vaginal na Porta Férrea (Canelão) e pelo encerramento
temporário em ataúde durante os Julgamentos (morte, enterramento, descida aos
infernos através do rio Estígio). Quando renascia em Maio-Junho, na categoria
de estudante, o Caloiro-Monstro era um homem novo, via de regra identificado e
reconhecido por outro nome, a alcunha, dominando os mitos, lendas e segredos da
cultura tradicional estudantil, perpetuando costumes, conhecendo a gíria
académica. Conduzido por Caronte atravessara o Estígio, deambulara pelo Inferno
e conhecera Minos. Alfim, emergindo do humús fértil, ingressara na “sua”
comunidade. Findava o receio do caos primordial, regenerava-se e reafirmava-se
a ordem social.
Elemento privilegiado de uma
elite sócio-cultural, o estudante de Coimbra viveu até 1969 numa esfera dual.
Sem negar o devir histórico e o fluir da temporalidade do relógio, inventou e
propôs como modus vivendi peculiar uma autêntica cosmogonia. O espaço-tempo da
Praxe e das tradições académicas apelava incessantemente ao encantatório, ao
maravilhoso, à vivência ritualizada, à repetição cíclica de gestos considerados
ancestrais, à sublimação juvenil, à proclamação do direito a ser-se
adolescente, muito antes de a sociedade portuguesa ter reconhecido este
estatuto aos seus jovens.
![]() |
Primeira Serenata em Coimbra, depois do 25 Abril 1974 a 20 e 21 de Maio de 1978 |
Tais vivências ajudaram a tecer a
identidade cultural peculiar do estudante coimbrão e foram tomadas como
paradigma em muitos liceus, escolas agrárias, magistérios primários e
estabelecimentos de ensino superior. Após
1974, a Academia de Coimbra retomou muitas das suas antigas praxes e costumes,
não deixando de incorporar novas práticas. Seja como for, a Praxe
iniciático-punitiva continua a gerar adeptos e a suscitar violentas críticas.
Arcaísmo bárbaro para uns, património cultural a preservar para outros, bem
pode concluir-se dizendo que o fenómeno
de restauração das praxes coimbrãs pós 1974 revela um elevado índice de
adesões, apelando ao regresso do encantatório, seja a nível local, seja a nível
dos fenómenos de imitação/apropriação observados um pouco por todo o país.
Bibliografia
ANDRADE, Mário Saraiva de –
Mataram um espantalho. Em defesa da praxe, Coimbra, Coimbra Editora, 1959.
ANDRADE, Mário Saraiva ( e
outros) – Código da Praxe Académica de Coimbra, Coimbra, Coimbra Editora, 1957.
BASTOS, Teixeira – A vida do estudante de
Coimbra (antiga e moderna). Duas conferências na Associação Cristã de
Estudantes, nos dias 29 e 30 de Abril de 1920, Coimbra, Imprensa da
Universidade, 1920.
BRAGA, Joaquim Teófilo – História
da Universidade de Coimbra nas suas relações com a instrução pública, 4 tomos,
Lisboa, 1892, 1895, 1898, 1902.
BRITO, Alberto da Rocha – O primeiro dia
d’aula..., Coimbra, Coimbra Editora, 1935.
CALISTO, Diamantino – Costumes académicos de
antanho (1898-1950), Porto, Imprensa Moderna, 1950.
CARVALHO, Barbosa de - Leis
extravagantes da Academia de Coimbra ou código das muitas partidas, Coimbra,
1916.
CASTRO, Amílcar Ferreira de – A
gíria dos estudantes de Coimbra, Coimbra, Faculdade de Letras, 1947.
CORREIA, António –
“Caloiros-Novatos”, Rua Larga, de 15 de Abril a 25 de Novembro de 1958.
CRUZEIRO, Maria Eduarda –
“Costumes estudantis de Coimbra no século XIX: tradição e conservação
institucional”, Análise Social, Volume XV (60), 1979.
JESUS, João Luís (e outros) – Código da Praxe
da Universidade de Coimbra, Coimbra, Edição do Magum Consilium Veteranorum,
2001 (1ª edição de 1993).
LAMY – Alberto Sousa – A Academia de Coimbra
(1537-1990), Lisboa, Rei dos Livros, 1990.
LOPES, António Rodrigues – A Sociedade
Tradicional Académica Coimbrã. Introdução ao estudo etnoantropológico, Coimbra,
1982.
MADAHIL, António Gomes da Rocha (introdução e fixação do texto) – Palito
métrico e correlativa macarrónea latino-portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora,
1942.
MOULIN, Léo – A vida quotidiana dos estudantes
na Idade Média, Lisboa, Livros do Brasil, 1994.
MORAIS, Francisco da Silveira –
Estudantes e lentes. Das tradições e costumes universitários em Portugal e no
estrangeiro através dos tempos, Coimbra, Tipografia União, 1930.
PRATA, Manuel Alberto Carvalho – “A Praxe na
Academia de Coimbra. Das práticas às representações”, Revista de História das
Ideias, Nº 15, Coimbra, 1993, págs. 161-176.
PATRONI, Filipe Alberto –
Dissertação sobre o direito de caçoar, que compete aos veteranos das academias,
Lisboa, Na Imprensa Régia, 1818.
RIBEIRO, Dinis de Carvalho (e outro) – As
praxes académicas de Coimbra, Coimbra, 1925.
RIVERS, Julien Pitt –
Anthropologie de l’honneur. La mésanventure de Sichem, Paris, Le Sycomore,
1983.
VARA, Flávio – O espantalho da
praxe coimbrã, Lisboa, 1958.
[1] Publicado em http://guitarradecoimbra.blogspot.pt/2005/11/as-praxes-acadmicas-de-coimbra-uma.html [em linha], artigo de Sábado, 19
Novembro de 2005.
[2] Professor
de História e História da Arte. Comunicação proferida nas Primeiras Jornadas
“As Praxes Académicas. Sentido actual e perspectivas”, promovidas pelo
Instituto Piaget de Viseu nos dias 29 e 30 de Abril de 2003. Trabalho publicado
na revista Cadernos do Noroeste, Braga, Instituto de Ciências Sociais da
Universidade do Minho, Volume 22 (1-2), ano de 2004, págs. 133-149, por
gentileza do Prof. Doutor Albertino Marques
[3] Desinteresse
que em muitos casos vota o património documental estudantil a uma certa
clandestinidade, como acontece com o Museu Académico, destituído de quadro de
pessoal e de financiamento. No tocante à escassez de estudos sobre estas
matérias (em Coimbra) e aos perigos de degradação patrimonial veja-se João
Paulo Avelãs Nunes, “Em busca de memórias perdidas”, Vértice nº 38, Maio de
1991, págs. 89-91.
[4] Assim o
etnólogo Teófilo Braga, tão compreensivo face aos contos populares, rifonário,
cancioneiro, romanceiro, costumes locais, e tão virulentamente antipraxista,
confundindo desonestamente o pretenso atraso intelectual e científico da UC com
as chamadas praxes. Releia-se a sua História da Literatura Portuguesa. O
Ultra-Romantismo, Porto, 1870-1873, onde se estabelece uma correlação abusiva
entre Soares de Passos/poesia ultra-romântica e costumes académico-praxísticos
(Cf. Teófilo Braga, História da Literatura Portuguesa. O Ultra-Romantismo, Tomo
VI, Mem Martins, Europa América, 1986, págs. 132-137).
[5] António
Rodrigues Lopes, A Sociedade Tradicional Académica. Introdução ao estudo
etnoantropológico, Coimbra, s/e, 1982.
[6] “Questões
de uma tradição. Entrevista de V. L. à Dra. Eduarda Cruzeiro”, Via Latina,
1985/1986, págs. 23-27.
[7] Processo
ainda muito activo na década de 1980. Por 1986-1987 tivemos o ensejo de
verificar que na maioria das casas comerciais onde se vendiam “capas e
batinas”, os proprietários possuíam exemplar do Código da Praxe de 1957 e
aconselhavam os estudantes dos primeiros e segundos anos sobre “a maneira
correcta de trajar”.
[8] Isto
mesmo se pode demonstrar através do confronto entre os vários Estatutos da UC,
Constituições Sinodais dos Bispados portugueses, estatutos dos Seminários
Católicos, regulamentos disciplinares de colégios particulares e orfanatos. Por
exemplo, para o século XVI, as interdições académicas relativas às transgressão
do uniforme, proibição da prostituição, alcoolismo, jogos de azar, porte de
armas, vida escandalosa, repetem-se com poucas diferenças nas Constituições
Sinodais.
[9] Esta
leitura abusiva, faz escola na maioria dos estabelecimentos de ensino superior
públicos e privados. De tal forma que “latada”, “trajo académico”, “pasta com
fitas”, “tuna”, “orfeon”, “cartola e bengala”, “semana académica”, “festival de
tunas”, surgem designadas por “praxe”.
[10] O
material disponível sobre estas temáticas é abundante. Citemos apenas alguns:
Ernesto Veiga de Oliveira, Festividades cíclicas em Portugal, Lisboa, Dom
Quixote, 1984; James George Frazer, Le cycle du Rameau d’Or. Le Dieu Qui meurt,
Volume IV, Paris, 1931; Luís Chaves, “Os testamentos na tradição popular”, O Ocidente,
Volume XVIII, 1946, págs. 268 e ss.; Albertino Gonçalves, O sentido da
comunidade num mundo às avessas: o imaginário grotesco nas tradições académicas
de Braga, Braga, Biblioteca Pública de Braga, 2001; Henrique Barreto Nunes e
outros, Tradições académicas de Braga, Braga, Associação Académica da UM, 2001;
Rita Ribeiro, As lições dos aprendizes: as praxes académicas na Universidade do
Minho, Braga, UM, 2001; Teófilo Braga, O povo português nos seus costumes,
crenças e tradições, 2 tomos, Coimbra, 1885; Francisco Afonso Chaves, As festas
de São Marcos nas ilhas dos Açores, Lisboa, 1906; Manuel Dionísio, Costumes
açorianos, Horta, 1937; Jacques Heers, Festas de loucos e carnavais, Lisboa,
Dom Quixote, 1987.
[11] Cf. Julian Pitt-Rivers, Anthropologie de
l’honner. La mésaventure de Sichem, Paris, Le Sycomore, 1983.
[12] Comparativamente, veja-se o estimulante
estudo de Robert Muchembled, Culture populare e culture des élites dans la
France moderne (Xve-XVIIIe siècle), Paris, Champs/Flammarion, 1991.
[13] Relativamente
à cultura popular coimbrã, recordemos os desaparecidos Entrudo “porco”, a
Queima do Judas, o Deitar Pulhas (Cernache).
[14] O
“tempo de ir à tropa” (expressão de Boaventura Sousa Santos), apresenta algumas
similitudes com o ir para Coimbra. Relativamente aos processos de transformação
físicos e psicológicos sofridos pelos recrutas citemos esta trova cantada na
Ilha do Pico: “Quando eu assentei praça/Ó rapaz, não olhei para a
direita/Cortaram-me o meu cabelo/Mas olha, foi a primeira desfeita”.
[15] Por
detrás de aspectos que a civilização reputa de humilhantes formas de
rebaixamento, faz sentido precisar a sacralidade do Touro desde remota
antiguidade na cultura mediterrânica e a imagem do Burro como símbolo de
obscuridade, morte, forças maléficas, iniciação honorífica (nas festas
medievais dos loucos), potência sexual incontrolada que regenera a sociedade. O
burro liga-se directamente ao culto grego de Dioniso. Sobre a imagem positiva
do Burro na cultura estudantil veja-se o antiquíssimo conto popular do
estudante que finge transformar-se no burro do azeiteiro (Francisco Adolfo
Coelho, Contos populares portugueses, Lisboa, Dom Quixote, 2001, págs.
271-272).
[16] Elementos
interpretativos em Mircea Eliade, O sagrado e o profano. A essência das
religiões, Lisboa, Livros do Brasil, s/d; idem, O mito do eterno retorno,
Lisboa, Edições 70, 1985; Gilbert Durand, A imaginação simbólica, Lisboa,
Edições 70, 1995; Michel Maffesoli, O eterno instante. O retorno do trágico nas
sociedades pós-modernas, Lisboa, Instituto Piaget, 2001; Michel Maffessoli, Du
nomadisme, Paris, Le Livre de Poche, 1997; Michel Maffesoli, L’ombre de
Dionysos. Contribution à une
sociologie de l’orgie, Paris, Le Livre de Poche, 1991.
[17] O
ritual das pulhas era bem conhecido nas comunidades rurais do Concelho de
Coimbra. Em Vila Nova de Cernache foi recolhido da tradição oral e integra
reconstituições dinamizadas pelo Grupo Folclórico Os Camponeses de Vila Nova.
As pulhas reviravam as comunidades do avesso com pregões corrosivos, lançados
por rapazes e homens armados de funis de latão. Mas também podiam assumir a
forma de descantes nocturnos provocatórios, com vozes, quadras brejeiras,
instrumentos musicais.
[18] Relativamente
ao trajo académico, o primeiro liceu oitocentista a instituí-lo foi o Liceu de
Coimbra, logo em 1836, visto ter ficado na dependência administrativa da
reitoria da Universidade. Seguiu-se-lhe o Liceu de Évora, através de Portaria
de 27 de Outubro de 1860, na sequência de uma intervenção de D. Pedro V. Neste
Liceu e no Liceu Pedro Nunes (Lisboa) os estudantes usaram um barrete circular
de pano preto (O Tacho). Para a década de 1940, ainda falando o Liceu de Évora,
há notícia de serenatas, tonsura, baptismo em fontanário. No Liceu de Ponta
Delgada usou-se capa e batina e instituiram-se serenatas, baile de finalistas,
pontapés e pinturas, procissão do caloiro (com um rei instalado num andor),
baptismo em fonte e festejos de fim do ano escolar (Enterro da Bicha). No Liceu
do Funchal, também foco de práticas tradicionais inspiradas em Coimbra, o uso
da capa e batina remonta à publicação de uma portaria governamental de 1889.