Capas rasgadas são hoje tidas como expressão
máxima da veterania e vivência académicas, pejadas, dessa forma, de
significâncias, testemunho de amores, amizades, beijos…….. “and so on”.
Bem
sabemos que, ainda hoje, existe essa ideia e tendência, nos mais jovens, de
aparentar mais idade, maturidade e experiência, como que para conferir um
qualquer status quo, um ascendente social ou apenas impressionar as caloiras.
Aliás, nem é preciso ir mais longe que basta
atentarmos no que nos diz a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira:
Esse saudosismo pela “res antiqua” não foi um
exclusivo dos praxistas dos anos 80 e 90. Ainda na esteira do romantismo do
séc. XIX, desse gosto pela história, temos os estudantes de início do séc. XX,
em plena 1ª República (muito avessa às praxes, diga-se) que pretendem reabilitar as
velhas tradições entretanto interrompidas com a greve académica de 1907 e, depois, fortemente
cerceadas pelas autoridades, pouco dadas àquilo que, em muitos círculos, era tido
como prova de retrocesso civilizacional.
Contudo, a aurea em torno do imaginário do
estudante boémio e aventureiro, herdeiro dos antigos goliardos, a irreverência
característica de quem está sempre, de alguma forma, contra o status quo
social, dita o ensejo de recuperar a mística de outrora, reclamar para si a
defesa de uma cultura própria, secular tradição, inalienável direito de
governarem os seus destinos:
Pensávamos, inicialmente, que o costume teria
origem pelos anos 50, pois, segundo os dados colhidos e a falta de testemunhos
e documentos anteriores a essa década, apontavam para tal.
O amigo Zé
Veloso, no blogue “Penedo d@ Saudade”, dizia a esse respeito o seguinte:Na Coimbra universitária de hoje, onde a mulher está agora em maioria, é natural que o significado seja já outro.
Tendo feito a pergunta a algumas raparigas estudantes, apurei que os rasgos podem ter significados vários, ou mesmo nenhuns, mas há um detalhe interessante, uma vez mais ligado às lides amorosas: quando se namora, faz-se um grande rasgo pela capa adentro e, se o namoro acaba, coze-se o rasgo com linha da cor da Faculdade!
Estranho costume este! Parece querer mostrar que para os males de amor sempre haverá remendo. Mas que das cicatrizes ninguém se livra…”. [4]
Não é fácil encontrar a origem exacta da prática
dos rasgões, mas podemos balizar com recurso a testemunhos e documentos que
vamos retirando do anonimato.
Não confundamos, é preciso sublinhar, com as referências existentes a rasgões feitos como resultado de agressões (onde os caloiros erram sovados e suas roupas saíam muito mal tratadas das caçoadas mais ferozes. Existem relatos de capas e batinas rasgadas em resultado dos "encontros" com as trupes, mas não podemso mistura ro rasgão feito de livre e espontânea vontade com os que são consequência de agressões sobre o indivíduo e sua indumentária ou do desgaste natural do traje (e alguma traça, diga-se também).
Não confundamos, é preciso sublinhar, com as referências existentes a rasgões feitos como resultado de agressões (onde os caloiros erram sovados e suas roupas saíam muito mal tratadas das caçoadas mais ferozes. Existem relatos de capas e batinas rasgadas em resultado dos "encontros" com as trupes, mas não podemso mistura ro rasgão feito de livre e espontânea vontade com os que são consequência de agressões sobre o indivíduo e sua indumentária ou do desgaste natural do traje (e alguma traça, diga-se também).
Atentemos, por exemplo, no que a propósito deste
assunto (que colocámos na facebookiana “Tertúlia do Penedo d@ Saudade”) que
respondeu João Portugal Vieira:
O que sabemos é que esse costume é citado no
Código da Praxe de 1957, cujo art.º 73 refere, a certa altura "(...)
capa preta, com ou sem cortes na parte inferior...", conferindo-lhe lugar
como sendo da Praxe, ou seja da Tradição.
Mas podemos regressar mais (e fá-lo-emos até ao
séc. XIX) no tempo.
Como inicialmente disséramos, julgávamos serem os
anos 50 o alfobre desse costume, mas afinal não é bem assim.
Segundo o que escreveu José Anjos Carvalho,
transcrito por Octávio Sérgio, no seu blogue “Guitarra de Coimbra”, sobre os costumes estudantis do Liceu de
Évora:
Seguindo o que acima se lê, o costume existiria
nos anos 40, embora sem sabermos ainda qual o significado na época.
Ainda no que concerne o Liceu de Évora,
deparámo-nos com um documento que nos faz recuar para os anos 30, mediante uma
foto publicada no blogue “Virtual Memories”, do ilustre historiador António M.
Nunes, a qual retrata um grupo de estudantes do Liceu de Évora. Nesse cliché, o
rapazinho da esquerda parece apresentar uma capa com muitos cortes.
Não negamos a surpresa, pois anteriores
investigações nossas nos tinham levado a observar dezenas de clichés de
estudantes de capa e batina (muitos deles como membros de tunas) onde ainda não
se vira qualquer capa com rasgões (o que indica que a prática não era um
costume massificado, bem pelo contrário).
Escarafunchando mais um pouco, e com recurso ao
já citado blogue “Virtual Memories”, encontrámos uma curiosa referência, que
veio deitar por terra as nossas iniciais “certezas", quanto à antiguidade da
tradição dos rasgões na capa.
Sobre o denominado “pequeno uniforme académico”,
instituído na UC (embora sem obrigatoriedade de uso) a partir de 1870, quando
descreve como é composto, diz-nos António Nunes, a certa altura que:
O facto é que se temos indícios do costume já
existir em finais do séc. XIX e, depois, a reencontrarmos na década de 30 em
diante, outros tantos temos que demonstram a sua ausência, por vezes de forma
concomitente, o que nos diz que, e mais uma vez se sublinha tal, a prática não
era adoptada por todos. Por outro lado, e citando o amigo Zé Veloso, “Um costume pode
sempre ser descontinuado e retomado décadas mais tarde; e tal pode muito bem
ter acontecido nas conturbadas décadas do início do século XX.”
"Estudantada" (Pintura/desenho de Faustino Rosa Mendes - artista de Santarém),
Illustração Portugueza, II Série, Nº 698, de 07 Julho de 1919, p. 15
(Hemeroteca Municipal de Lisboa)
Sabemos, por exemplo, que muitos costumes caem em desuso, ou cessam simplesmente em inícios do séc. XX. Notemos, por exemplo que o termo “Caloiro” era, ainda em 1899, a designação dada aos alunos de liceu que estavam no seu último ano (antes de ingressarem para a universidade) e que aos alunos do 1º ano se dava o nome de “novatos”. Ora, em 1905, ambos os termos eram sinónimos e atribuídos já ao estudante que frequentava pela primeira vez a faculdade (o 1º ano), segundo avança Manuel Prata.[9]
Certezas temos é que nos anos 60, e até ao luto
académico que começa em 1969, a prática dos rasgões era amplamente conhecida e
posta em prática, acabando retratado no
álbum do Michel Vaillant, "Rali em Portugal", cuja primeira edição é
de 1969, publicado em fascículos na revista Tintin e finalmente editado em álbum
em de 1971 (sob o título original de "Cinq filles dans la course"),
podemos observar, em várias tiras, as ditas capas rasgadas
A obra só chegaria a Portugal, como álbum em português, pela
mão da Bertrand, em 1981.
Sobre isso, refere o colega Eduardo Coelho o
seguinte:
Sabemos,
pois, que a recolha de dados e informações ocorre antes de 1969, data em que se
dá o luto académico e que o significado emprestado aos rasgões estava ligado a
desgostos amorosos (que outros testemunhos de antigos alunos dessa época
confirmam).
Veja-se a
diferença entre o que nos anos 50/60 se dizia (que eram conquistas), para o
que, anos depois, vigorava (amores frustrados).
Nos anos
70, o seguinte significado podemos observar:
Contudo é nos anos 80, com a reabilitação das tradições
académicas, que a moda se espalha pandemicamente e ganha N significados em simultâneo.
Com a
massificação do Ensino Superior, e a invenção (quase sempre sem nexo) de
pseudo-tradições e códigos, bastaram menos de 10 anos e já o significado dos
rasgões era atribuído às amizades especiais, aos grandes amigos de faculdade, e
vida académica, e vigorava já uma nova moda: o rasgão a meio da capa, destinado
ao namorado(a) “a sério” (prontamente cosido se a seriedade descambasse em
ruptura).
De onde virá tal determinação?
Será isso
uma inspiração na figura do João da Ega,
da famosa obra “Os Maias”, de Eça de
Queirós, que, como reacionário e contra as praxes, mostrava a sua
irreverência, em jeito de provocação, cosendo a branco os rasgões de que ia
padecendo, pelo uso, a sua batina?
Será essa a inspiração ou tratar-se-á de uma feliz coincidência?
Parece também estranho que em finais dos anos 80, inícios dos 90, as próprias estruturas da Praxe, na figura do Conselho de Veteranos (segundo testemunhou o João Portugal Vieira que cursou nessa altura), terem considerado essa prática como sem fundamento (chegando-se a distribuir um panfleto onde se dizia precisamente isso), apesar de já mencionada no código de 1957.
Parece também estranho que em finais dos anos 80, inícios dos 90, as próprias estruturas da Praxe, na figura do Conselho de Veteranos (segundo testemunhou o João Portugal Vieira que cursou nessa altura), terem considerado essa prática como sem fundamento (chegando-se a distribuir um panfleto onde se dizia precisamente isso), apesar de já mencionada no código de 1957.
Poderemos
dizer, se confessos defensores da sobriedade do trajar, que os rasgões não são
algo propriamente estético e que não dão boa imagem de aprumo, dado que o Traje
Nacional é, antes de mais, um uniforme, mas nem sempre as tradições ocorrem
dentro da etiqueta e daquilo que é secundum
praxis, havendo muitas vezes contributos que chegam por “via popular” - em
oposição a uma “via erudita”, se permitem a analogia da área da linguística.
Mas a
prática reiterada, pese embora os significados da mesma mutarem ciclicamente,
cristalizou-se e enraizou-se, sendo que conquistou o seu lugar como tradição
académica (e muitos códigos mais recentes já contemplam isso, regrando o
tamanho e a forma de se fazerem os rasgões).
Obviamente
que é um costume ele próprio sujeito a desvios, como são disso exemplo os nós
dados com as franjas/tiras resultantes desses cortes, como se observa em
algumas latitudes, cujo significado se inventa na exacta medida daquilo que se
desvirtua.
Pior então são as tranças que vemos em algumas geografias, e que são um prova fidedigna da tonteria, da ignorância e do desrespeito total pela tradição.
Pior então são as tranças que vemos em algumas geografias, e que são um prova fidedigna da tonteria, da ignorância e do desrespeito total pela tradição.
Notemos, por exemplo, que nos anos 90, entre os significados dados aos rasgões, aparece um totalmente novo e divergente do até aí entendido, ou seja que os cortes corresponderiam aos fracassos escolares, aos chumbos:
"É composto desde finais do século passado por calça
comprida, colete e sobrecasaca, denominada batina por advir da primitiva ... A
capa tem mais uma peculiaridade pois, a cada exame passado, corresponde um
rasgão feito na extremidade, apresentando no fim do curso numerosos rasgões.
Desta figura ressalta um apego ao valor do estatuto universitário e às praxes
seculares da Academia."[13]
A capa é,
pois, guardiã de memórias, representando os tempos de mocidade universitária,
cujos rasgões testemunham momentos singulares do exercício da cidadania
académica:
"Capa pretas onde revejo
toda a minha mocidade,cada nódoa é um beijo
cada rasgão uma saudade."[14]
Uma tradição, uma convenção, que perpassou a mera esfera da etiqueta e do protocolo ligados ao traje, chegando a capa rasgada a ser cantada pela própria canção coimbrã:
<
Procuraram-se respostas, encontraram-se, simultaneamente, outras tantas questões.
Esperamos, ainda assim, que seja este artigo útil e um pontapé de saída para novas descobertas e actualizações.
Nota: a 1ª e última fotos são adaptações feitas a partir dos originais patentes em http://lm-sunshine.blogspot.pt/
"A minha capa rasgada,
Espelho do coração,
Por te pedir p'ra seres minha
E dizeres sempre que não.
Lá no alto junto a Deus
Ouvi os anjos rezar
Cá na Terra junto a ti
Passei a vida a penar."
Sobre este vídeo disse o Eduardo Coelho, a 3 de Novembro 2012, no anterior artigo (inexistente, já) dedicado aos rasgões na capa:
“Grandes amigos a tocar e cantar. Adelino Miguel, um dos virtuosos portuenses (nacionais, diria eu) da guitarra, aqui a dar os seus primeiros passos... É vê-lo actualmente num projecto interessantíssimo -os "Fado em si bemol".
O Pacheco, o veteraníssimo Pacheco - um dos leões da Praxe e das tradições académicas cá do Douro... o Adalberto, na viola... a voz do Mário... Gente boa, gente boa.
Talvez não leiam esta mensagem, mas aqui lhes deixo um sentido abraço.
Fica este primeiro apontamento, a merecer mais aturada pesquisa, contudo já elucidativo para percebermos um pouco das nossas tradições, as curiosidades da mesma e suas nuances.”
Muito haverá ainda para dizer, pois se algumas questões puderam ser já respondidas, muitas outras carecem de novos dados e descobertas, desde se mantendo a mesma com que se iniciou este artigo: de onde vem essa tradição dos pequenos rasgões na capa?
Esperamos, ainda assim, que seja este artigo útil e um pontapé de saída para novas descobertas e actualizações.
[1] Ministério da Educação e Cultura - Anuário do Museu imperial, Volume 36. do
Brasil. Petrópolis, 1982, p.60.
[2] EDITORIAL ENCICLOPÉDIA - Grande
Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Vol. XXIII. Editorial Enciclopédia
Lda, Lisboa - Rio de Janeiro,1936-1960, pp. 67-67.
[3] Revista - Illustração Portugueza,
II Série, nº 558,de 30 Outubro 1916, p. 341.
[4] VELOSO, José - TRICANAS, XAILES E CAPAS. TRANSFORMA-SE O
AMADOR NA COUSA AMADA…, in blogue Penedo
d@ Saudade, artigo de 7 Abril 2010, [em linha] http://penedosaudade.blogspot.pt/2010/04/tricanas-xailes-e-capas-transforma-se-o.html
[5] Post de 1 de Outubro de 2012, in https://www.facebook.com/#!/groups/penedodasaudade.tertulia/
[6] [em linha] http://guitarradecoimbra.blogspot.pt/2005_09_25_archive.html , artigo de 01 Outubro de 2005.
[7] NUNES, António M. - Património
vestimentário... (cont.) Do “talar” ao “casacar”, in blogue Virtual Memories,
artigo de 4 de Setembro de 2009 [em linha] http://virtualandmemories.blogspot.pt/search?q=rasg%C3%B5es
[9] PRATA, Manuel Alberto C. - Rituais e Cerimónias, A Praxe na Academia de Coimbra. Revista da
História das Ideias 15. Instituto de História e Teoria das Ideias, Faculdade de
Letras. Coimbra, 1993,p. 170, em nota de rodapé nº 37.
[10] Post de 31 Outubro in https://www.facebook.com/#!/groups/penedodasaudade.tertulia/
[11] ALMADA, João - Biblioteca da
História 33, Salazar, 1889-1970. Editora Três, Brasil, 1974.Cap. III - Em
Coimbra, p. 61.
[12] LAGO, Sylvio - Eça de Queirós,
Ensaios e Estudos 1. Biblioteca 24 horas.SP Brasil, 2010, p. 237.
[13] TEIXEIRA, Madalena B. - Trajes míticos da cultura regional portuguesa. Sociedade Lisboa,
Lisboa, 1994, p.105.
[14] PEREIRA, B., Joacil - A Vida e o
Tempo. Memórias, Vol. I. União Superintendência de Imprensa e Editora,
1996.
2 comentários:
Achei curiosa a referência na citação 6, e ao ir consultar o blogue confirmei o que me pareceu à primeira:
"Os rasgões na base da capa eram uma prática bastante habitual.
Talvez por não ter sido praxista, a ideia que tenho é que se tratava essencialmente de chacota, sem propriamente achincalhar os novos colegas"
Leva-me a crer, que por aqueles lados se faziam rasgões nas capas como caçoada... esta nunca tinha ouvido.
E apesar das novas informações (a citação no In Illo Tempore tenho-a eu escrita há muito por um colega numa fita), continuo a ser contra os rasgões na capa. Simplesmente acho que fica mal e grita uma imagem do estudante oposta à que este deveria querer mostrar.
Bom dia
Muito interessante e com conteúdo fundamentado. Como "salatina" 1936), "filhote" e AEUC, o meu obrigado. Continuo seguidor do seu blog
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