Sempre me intrigou o "súbito" desaparecimento da capa e batina dos estabelecimentos de ensino secundário - os antigos liceus.
Mais estranheza causa quando a adopção do traje académico resultou, na maioria dos casos, da persistência e de esforços continuados por parte da comunidade estudantil junto das autoridades educativas - e que redundaram na publicação de um decreto que autorizava (não obrigava) os alunos dos liceus a envergar capa e batina.
Na obra "Tuna Académica do Liceu de Évora" (Adília Zacarias e Isilda Mendes), lê-se, a pp. 34, o seguinte:
"No entanto, a política também não foi estranha a alguma quebra no uso do traje. Estão neste caso momentos como a implantação da República, o Estado Novo e o pós 25 de abril.
A principal interferência no uso do traje académico, durante o Estado Novo, teve, sobretudo, a ver com o espírito da M. P. [Mocidade Portuguesa] que se traduz, por exemplo (...) na perseguição caricata ao uso da "capa e batina" (...) o que levou o deputado António Gromicho (que era também o Reitor do Liceu de Évora) a declarar na Assembleia Nacional:
com o aparecimento da M.P. e com a expansão desta organização, estabeleceu-se uma certa confusão e equívoco, pois formou-se o mito, na minha opinião erradíssimo, de que o uso da capa e batina é um obstáculo à actuação da M.P. Dizia-se, e creio que continua a dizer-se, que o trajo (sic) académico representa ideias e costumes contrários às doutrinas daquela organização. (Labor, N.º 157, abril de 1956, p. 478)"
e, na p. 65, referindo-se ao lento processo de "passagem" da Associação Académica para a Mocidade Portuguesa:
"Ostensiva ou subreticiamente, a M.P. opunha-se às tradições [democráticas] que tão orgulhosamente os académicos [do Liceu de Évora] respeitavam e preservavam."
Será que o caso do Liceu de Évora pode ser extrapolado para todos os liceus nacionais da época?
Estamos em crer que sim, muito embora não disponhamos de dados tangíveis que nos levem a dar uma inequívoca resposta afirmativa.
No entanto, e tendo em conta que o processo de adopção é semelhante em todos os liceus (também nas antigas "províncias ultramarinas"), não vemos razão pela qual o processo, "filosofia" e sobretudo o agente da extinção do traje possa ou deva ser diferente caso a caso. O Liceu de Évora nem era o único a usar capa e batina nem o único a possuir estruturas estudantis democráticas. Temos, assim, que a Mocidade Portuguesa procurou (e conseguiu) insinuar-se como estrutura organizativa centralizada (e centralizadora) das actividades recreativas juvenis.
Por outro lado, cai por terra a argumentação dos que vêem na capa e batina um símbolo do regime fascista do Estado Novo - uma vez que o próprio regime via no traje académico um "obstáculo" e a representação de "ideias e costumes contrários às [suas] doutrinas".
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ZACARIAS, Adília, e MENDES, Isilda M. Tuna Académica do Liceu de Évora (100 Anos de História e Tradições), [s.n.], Évora, 2012
As autoras escreveram de acordo com as normas do AO90, que respeitámos na transcrição dos excertos.
5 comentários:
Viva!
Perfeitamente de acordo que é um disparate dizer que a capa e batina era um símbolo do Estado Novo. Essa citação do reitor do Liceu de Évora é um excelente dado (por acaso já a conhecia, se não me falha a memória do capítulo sobre o Liceu de Évora do livro "Liceus de Portugal" http://www.wook.pt/ficha/liceus-de-portugal/a/id/39193).
No entanto, não posso concordar com a conclusão de que o regime estava contra o traje académico. O regime do Estado Novo não era monolítico. Incluía fascistas, católicos conservadores, nacionalistas empenhados sobretudo na defesa do império ultramarino, certos tecnocratas que se dão bem em qualquer regime estável, etc. A M.P., que era uma organização para-fascista, tenderia a opor-se à capa e batina, imagino que sim (nalgumas cidades, não em todas, devido à associação da capa e batina e uma vida livre e boémia; mais geralmente, por a vida académica lhe escapar ao controlo). Mas muita gente do regime, principalmente entre os (inúmeros) que tinham estudado em Coimbra, olhava favoravelmente o traje académico. Aliás, repara que esse reitor do Liceu de Évora, que aparece a discordar da M.P., era "deputado da nação" - do regime, portanto.
Resumindo: o regime, como um todo, não era favorável nem desfavorável à capa e batina; havia quem fosse favorável, quem fosse desfavorável e quem fosse indiferente. Da mesma forma que entre os oposicionistas havia quem fosse indiferente, quem usasse capa e batina diariamente e quem fosse desfavorável (e, nos últimos tempos do regime, quem se lhe opusesse militantemente como símbolo, não simplesmente do regime, mas de uma estrutura social burguesa - refiro-me aos grupos maoístas).
Também não posso concordar com a conclusão de que o fim da capa e batina nos liceus se deveu à oposição do regime (claro!) ou sequer à oposição da M.P. A capa e batina deixou de se usar no final dos anos 60, início dos 70, quando a M.P. estava em franca decadência.
(continua)
(continuando)
Então a que se deveu o desaparecimento da capa e batina nos liceus?
Na minha opinião, devem ter-se em conta essencialmente os seguintes dois factores:
1 - Pelo que percebo, entre os anos 30 e os anos 60 a capa e batina nos liceus foi tendo uma utiilização cada vez menos frequente e cada vez mais concentrada nos anos finais do liceu. No início do séc. XX é notório que alunos de qualquer ano do liceu usavam capa e batina (como a foto acima do 2.º ano do Liceu Central do Porto exemplifica); e há testemunhos de alguns alunos de liceu a usarem a capa e batina diariamente. Quanto aos anos 50 e 60, o testemunho de pessoas que estudaram nessa altura indica que a capa e batina era usada apenas por alunos do 6.º e 7.º anos, ou mesmo apenas do 7.º (tradução: alunos dos dois últimos anos do liceu, ou mesmo apenas do último); as únicas fotografias que conheço dos anos 60 com alunos mais novos de capa e batina são de Évora e podem estar associadas à sobrevivência da Tuna. Além disso, a capa e batina nos liceus dos anos 60 parece estar muito ligada a festas de finalistas, ou em que os finalistas tinham papel preponderante/dirigente (Festas Nicolinas em Guimarães, Enterro da Gata em Braga, 1.º de Dezembro em variadas cidades - incluindo Évora - ou simplesmente saraus/récitas de finalistas).
2 - Como é bem sabido, a crise académica de 1969 levou ao fim da Queima das Fitas de Coimbra. Por arrasto, algumas festas de finalistas de liceu (quase todas?) desapareceram também (há um relato escrito dessa associação directa entre o fim da Queima de Coimbra e o fim do Enterro da Gata no livro Tradições Académicas de Braga [Henrique Barreto Nunes et al, AAUM, 2001]). A maior diferença entre o caso de Coimbra ou Porto e o caso dos liceus é que o uso da capa e batina não foi retomado nas escolas secundárias depois dos anos 70.
(Como também é sabido, há pequenas excepções a este ponto 2: em Guimarães ainda se fazem as Festas Nicolinas e os membros da respectiva Comissão ainda usam capa e batina; em Évora os tunos do liceu ainda usam capa e batina.)
Poderás contrapor, caro Eduardo, que o meu ponto 1, o recuo no seu uso, se pode dever precisamente à oposição do regime, ou de sectores do regime (leia-se M.P.), à capa e batina. Não nego que possa ter sido um factor. Mas duvido que tenha sido determinante.
(continua?)
Caríssimo João, é sempre um prazer "ver-te" por aqui.
É algo temerário fazer-se as afirmações que fiz. Naturalmente, um qualquer processo histórico é sempre multifacetado e complexo.
Concordo: tentar dar uma explicação em forma de túnel é sempre um exercício perigoso.
No entanto, permito-me tecer algumas considerações.
Não considero que a M. P. tenha sido o único agente causador da extinção. Teríamos de juntar, por exemplo, o fim da obrigatoriedade do porte diário, o custo de uma capa e batina - ainda para mais em idades em que o utilizador está sempre a crescer... Uma coisa é uma bata, outra um traje tão complexo. Junte-se a isto a escassez de tecido que se seguiu à II Guerra Mundial, e que fez disparar o preço das peças... e já teremos motivos que mais do que justificativos o abandono do mesmo.
Registo que se a estas parcelas viermos somar a da M.P., a conta fica completa.
Atrevo-me, no entanto, a dizer que a influência da M.P. e a pressão que terá feito em todos os liceus do país para acabar com estes "costumes" contrários à sua ideologia e intenção totalitária terão sido o sopro que derrubou algumas árvores que, a bem dizer, mal se mantinham de pé.
Importa reconhecer que se é certo que em Évora o uso de capa e batina era continuado (com diferentes graus de generalização a partir de 1910), em muitos outros (quase todos os outros?) liceus a "tradição academica" não teria, de forma nenhuma a mesma penetração na camada estudantil.
(continuação)
De facto, poderá ser como dizes: cada caso é único nos seus contornos, mas o "modus operandi" da M.P. foi igual em todo o país, tendo encontrado mais ou menos resistência por parte de alunos e professores em diferentes liceus.
Importa lembrar ainda que a M.P. agiu, neste como noutros casos, com ordens emanadas do poder central. Dizes bem: o Estado Novo não era (nenhum sistema político o é) monolítico. E se havia quem gostasse de paradas e camisas negras, havia também muito boa gente (a começar pelo próprio Salazar) que não ia à missa com imitações serôdias dos comícios de Nuremberga.
Não me parece por outro lado arriscado dizer o seguinte: a M.P. conseguiu, pelo menos durante o seu período de fulgor, interromper o uso da capa e batina nos liceus. Se a vontade (€...) já era pouca, se já ão era obrigatório por lei, se ainda por cima era "arriscado" usar... se o uso se perdeu... dificilmente se voltaria a instalar "de moto proprio". Évora e a sua larguíssima tradição terá sido caso à parte - até porque, a fazer fé nas autoras, o uso nunca se interrompeu verdadeiramente.
Não digo que seja verdade inquestionável o que afirmo, mas que não é arriscado supor que...
(Espero que continue!)
Caro João, aqui deixo este dado, mais "recente", confirmando o quão avesso era o regime para com a capa e batina, especialmente no círculo da MP.
http://notasemelodias.blogspot.pt/2013/06/notas-sobre-mocidade-portuguesa-e-praxe_4.html
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