quarta-feira, setembro 04, 2013

Notas ao Tricórnio ficcionado



Já em tempos aflorámos a questão do traje Tricórnio, quando dedicámos um artigo ao traje Traje Académico e ao Traje de Tuna, e têm sido recorrente os debates sobre a validade de certos trajes académicos no que diz respeito à sua fundamentação histórica e/ou etnográfica.

Não é tanto o direito dos alunos de cada instituição poderem optar por ter um traje próprio que aqui questionamos (nem sequer é essa a questão de fundo), mas sim (sublinhamos) as razões que alegaram, na altura, para tal e, pior ainda, as justificações estéticas que deram para os referidos uniformes.

Muito provavelmente, a quase totalidade dos novos trajes assenta em premissas ficcionadas e motivações erróneas (como pensar-se que a capa e batina é traje de Coimbra ou exclusivo dos seus estudantes e, por isso, sendo necessário “criar diferença identitária), cujos resultados foram, na sua esmagadora maioria, gorados (com tanta diversidade continua o mesmo problema: não se consegue distinguir a proveniência; como se fosse assim tão importante um traje só para sinalizar a geografia e reclamarem o ridículo paradoxo de “novas tradições”).

Se um traje académico se baseia na etnografia regional, e depois se diz estudantil, entra logo em contradição com o ser "académico", pois ou bem que é estudantil ou bem que é civil (popular). Se o traje existe para distinguir a corporação estudantil (o "foro" académico, precisamente para identifica ro mester de estudante), por que razão se vão buscar origens folclóricas e etnográficas aos trajes de peixeiros, de lavadeiras, trajes domingueiros, traje de lavoura ou de pastor (entre outros)????
Estranho, no mínimo, que se opte por importar o folclore regional, no qual não existe sequer a figura do estudante como ostentando vestes próprias de tal condição.
Se a própria etnografia faz questão em distinguir os vários trajes entre si (trajes de trabalho, de romaria, de passeio.....) por que carga de água o estudante haveria de querer fazer o oposto?
Ficam estas dúvidas no ar.
Para além disso, uma outra enorme falácia existe no facto de se ter achado que o traje esdtudantil existiria, também, para identificar o local (cidade) e/ou instituição de ensino, quando nunca o traje académico teve essa função ou propósito, mas apenas o de identificar a condição de estudante, não a sua proveniência ou residência.

Vamos hoje aqui analisar um dos trajes mais conhecidos do nosso país, esse sim, porventura, aquele que realmente criou uma identificação inequívoca do estudante minhoto (e que não se baseia na etnografia/folclore regional), em contraponto aos restantes, contudo erradamente apelidado de “Traje da UM” (quando, na verdade, é apenas o traje dos seus estudantes, pois Traje da UM é o traje professoral, note-se, reconhecido formalmente por diploma), nas suas justificações históricas, e no dito “estudo” feito por Luís Novais, que daria origem ao actual uniforme dos seus estudantes.

Para o efeito, foi solicitada a ajuda preciosa do historiador, Professor António M. Nunes, especialista em trajes e protocolo académicos, cujo teor da informação que nos enviou por mail, autorizou que fosse, aqui, integralmente reproduzida.
Desde já o nosso agradecimento por mais esta colaboração preciosa.


“Traje Tricórnio


1-Vários são os signatários de estudos publicados desde ca. 1990 que referenciam a existência de uns “estudos gerais” na cidade de Braga, governados pela Companhia de Jesus até ao tempo da expulsão desta congregação, no século XVIII (1756).


1.1-Ilustram o caso referenciado em 1:

 José Viriato Capela, professor de História na UM, que sinalizou no Arquivo Distrital de Braga e leu documentos manuscritos assinados por José Ignácio Peixoto, informa que nesse autor constam afirmações relativas ao funcionamento de uns “estudos gerais” em Braga. Não consegui aceder aos trabalhos de José Viriato Capela, estando referidos pelo menos: «Os jesuítas bracarenses e o seu papel no ensino e nas reformas morais e espirituais do século XVIII», In Cadernos do Noroeste, Volume 3, n.º 1, 1990, pp. 245 e ss.;

Margarida Miranda, «O humanismo no Colégio de São Paulo (Séc. XVI) e a tradição humanística europeia», In Humanitas 62 (2010), 243-263, http://www.uc.pt/fluc/eclassicos/publicacoes/ficheiros/humanitas62/13_humanismo.pdf, nada acrescenta de substancial que nos permita perceber com rigor se o colégio de S. Paulo tinha recebido privilégios, quem os possa ter atribuído, em que data foram atribuídos, e qual seria o teor desses privilégios num registo de comparação com o estatuto jurídico das duas universidades existentes em Portugal, que eram a de Coimbra e a do Espírito Santo de Évora (Companhia de Jesus);

Aurélio de Oliveira, «A Universidade Bracarense. Duas notícias históricas inéditas sobre os Estudos Gerais Bracarenses», In Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, http://lerletras.up.pt/uploads/ficheiros/2013.pdf, é mais concreto e pormenoriza que os dados sobre o Colégio de São Paulo da Companhia de Jesus em Braga visto como uns “estudos gerais” foram retirados das “Memórias particulares de Ignácio José Peixoto», que se encontram depositadas no Arquivo Distrital de Braga. Em anexo ao seu artigo, Aurélio de Oliveira transcreve a “Memória 1” apresentada por Ignácio José Peixoto ao arcebispo de Braga em 1.08.1805.  

O documento não é muito confiável. Trata-se de um parecer encomendado pelo arcebispo ao desembargador Ignácio José Peixoto com o objectivo de canalizar para o Seminário de Braga rendas que a Mitra de Braga reclamava para si mas que o governo central mandava entregar à Fazenda da Universidade de Coimbra. Percebe-se que havia um ambiente muito tenso entre o arcebispo de Braga e a Reitoria da Universidade de Coimbra. O desembargador eclesiástico e procurador geral da Mitra de Braga Ignácio José Peixoto advoga a causa do arcebispo de Braga, apresentando argumentos cuja credibilidade nos parece francamente discutível:(…) Pode dizer-se que era Braga como hua Universidade a ella concorriam estudantes de todo o arcebispado (…). Todos trajavam como os da Universidade (…)” [refere-se a Coimbra]. Só na "Memória 2" se percebe as entrelinhas desta retórica. O arcebispo não quer entregar à Universidade de Coimbra determinadas rendas, que deseja canalizar para o seu Seminário (de São Pedro), pelo que encomenda a um dos seus jurisconsultos um discurso onde sustenta que Braga não é menos do que Coimbra porque ao tempo da Companhia de Jesus teve uma espécie de universidade frequentada por centenas de estudantes. Contudo não se consegue provar que o Colégio de São Paulo, que funcionou entre 1531 e 1756 tenha em algum momento da sua existência conseguido ter estatuto universitário.

No site institucional da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica/Pólo de Braga, também se invoca este antigo colégio, acrescentando-se que teve traje corporativo e que concedeu atos académicos segundo certas regalias próprias das universidades. Admitamos que seja historicamente verdade o que se tem escrito. O problema é que as afirmações devem ser provadas e até ao momento nem a Universidade do Minho nem a Universidade Católica de Braga apresentaram qualquer documento que prove que a argumentação apresentada por Ignácio José Peixoto em 1805 tem por base um documento assinado por uma autoridade legítima (papa, rei de Portugal, Geral da Companhia de Jesus) onde se autorize que possa conceder graus académicos, em que disciplinas poderá conceder esses graus, a partir de que datas pode conceder esses graus e quem é a autoridade religiosa que fará as funções de cancelário com precedência sobre o reitor/director do colégio (arcebispo de Braga?).

Ignácio José Peixoto diz uma coisa completamente diferente do que foi descodificado, constrói um discurso no estilo dos juristas que arengavam nos tribunais, com o qual pretende convencer que a Mitra de Braga quer usar em proveito do Seminário as rendas que devia entregar à Universidade de Coimbra, tanto mais que Braga é uma cidade com grande tradição em escolas públicas, pois teve durante três séculos um colégio tão concorrido e prestigiado que mais parecia uns “estudos gerais”. Ora estes estudos eram por natureza estatutária, e por semelhante com todos os colégios geridos pelos jesuítas em Portugal, ilhas e Brasil, escolas menores ou de nível médio/secundário.


Concluindo a apreciação deste ponto, enquanto não for(em) apresentado(s) o(s) documento(s) que prova(m) que a Companhia de Jesus teve, em Braga, uma universidade com estatuto semelhante à Universidade [católica] de Évora, devemos considerar que não estão reunidas provas seguras e irrefutáveis para sustentar esta retórica.


Quanto a todos trajarem como os da Universidade de Coimbra, Peixoto estava muito mal informado pois o traje oficial generalizado entre os estudantes da mesma instituição não era nessa época o traje de mantéu e abatina mais sim o de loba talar de dois corpos e abatina. Não quer dizer que não houvesse em Coimbra alunos a trajar abatina no século XVIII, o que acontecia certamente, mas mais como traje de passeio campestre e de viagem (viatório), e não como traje diário predominante nem como veste de cerimónia.



2-Fontes de suporte à criação do “traje do tricórnio”


Teresa Augusto Ruão Correia Pinto, A comunicação organizacional e os fenómenos de identidade. A aventura comunicativa da formação da Universidade do Minho, 1974-2006. Braga: UM/ISC, 2008, p. 320 e ss., (tese de doutoramento) http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/88417/1/tese%20final.pdf, refere os processos de criação do traje professoral e do traje estudantil. Relativamente ao último (p. 324) reproduz a narrativa vulgarizada, que existiram uns Estudos Gerais em Braga (sic) cujos alunos usavam um traje “imortalizado nos painéis de azulejo localizados no edifício da Reitoria (…)”. Esta informação foi mediatizada pelo estudante de História da UM e então Presidente da Associação Académica Luís Novais nos manuscritos de Ignácio José Peixoto (1732-1808). Ou seja, os dados apresentados por Teresa Ruão são informação em segunda mão que reproduz o discurso vulgarizado na Academia Minhota e na internet.
Em 2001 foi publicada a obra de testemunhos colectivos e artigos de vários autores intitulada Tradições Académicas de Braga (Braga: AAUM, 2001), coordenada por Henrique Barreto Nunes e outros. Na capa desta obra reproduzem-se 3 figuras dos painéis de azulejo da Reitoria da UM que não correspondem à figura masculina existente no mesmo edifício a partir da qual foi redesenhado em 1989-1990 o traje do tricórnio. O livro é na generalidade dedicado às antigas tradições do Liceu de Braga e à sua recuperação e reinvenção pela UM.
Nesta mesma obra consta uma longa entrevista de Luís Novais (pp. 97-116) na qual recorda o processo de invenção do traje do tricórnio (1989), mas é mais adiante que Luís Tarroso assina o artigo “O traje académico. Perspectiva histórica” (pp. 129-131), texto que permite perceber o que Ignácio José Peixoto escreveu sobre o modo de trajar dos alunos matriculados no Colégio de São Paulo de Braga.
Percebe-se de imediato que o texto foi descodificado com desconhecimento dos preceitos básicos da história da indumentária nos meios católicos congrecionistas, universidades e seminários episcopais. Peixoto enuncia e descreve não um traje masculino uniformizado em feitio e em cor, mas um enxoval de estudante do século XVIII.
NOTA: Enxoval era o conjunto indumentário usado pelos eclesiásticos, professores e alunos de determinadas escolas menores e maiores, tanto externos como internos (regime de internato). Um enxoval completo tinha obrigatoriamente peças para verão e para o inverno, vestes de gala, de passeio (viatórios) e de câmara/domésticas. Trata-se de uma situação que ainda se mantém nos colégios internatos e que também foi praticada em Portugal, na Universidade de Coimbra, na antiga Universidade de Évora, no Real Colégio dos Nobres e na Escola Agrária de Coimbra.
A descrição legada por Peixoto não coincide em nenhum aspeto com a morfologia do traje desenhado em 1989 sob orientação de Luís Novais.
·      Os alunos do Colégio de São Paulo trajavam em geral abatina, traje perfeitamente datado na Europa (remonta à década de 1660) que foi um dos trajes corporativos dos estudantes do Real Colégio dos Nobres. Quando iam passear aos campos e arredores da cidade, os estudantes punham sobre as abatinas uns capotes de lã; para cobrir punham na cabeça o tricórnio preto. Peixoto acrescenta que os estudantes no geral não usavam a capinha curta plissada à francesa e à italiana, mas a capa talar. Ou seja usavam o traje de abatina com capa comprida, como no Colégio dos Nobres e como o vinham a fazer alguns estudantes da Universidade de Coimbra desde 1718. Acrescenta ainda que os estudantes que se preparavam para seculares, ou seja que não pretendiam seguir vida religiosa, usavam vestia (casaca escura debruada), tricórnio e capote que podia ter capuz nas costas. O que se retira desta descrição, sem contar com as peças próprias para uso doméstico (camisas, camisas de dormir, gorras, sandálias, socas de madeira, bragas), é a coexistência de dois trajes masculinos, o de abatina com capa talar e o de casaca e capote. Falta acrescentar um terceiro traje que era o dos alunos da Companhia de Jesus, composto por capa e roupeta talar, o qual estranhamente não chega a ser referido por Peixoto.
O problema seguinte é tentar perceber como é que Luís Novais estabeleceu um nexo entre os textos de Peixoto e os azulejos setecentistas da Reitoria da UM. O actual edifício da Reitoria da UC é o antigo paço episcopal de Braga. Mas ainda existe em Braga e bem conservado o edifício do Colégio de São Paulo da Companhia de Jesus. Por que motivo teria o arcebispo de Braga encomendado azulejos com estudantes do extinto Colégio da Companhia de Jesus, uma congregação expulsa de Portugal e muito mal vista junto da casa real? Seriam azulejos aplicados nalguma parte do Colégio de São Paulo que o arcebispo de Braga mandou transferir para o paço episcopal em 1805 para reforçar a sua posição quando pretendeu canalizar as rendas da Mitra de Braga para o Seminário?
Não há nenhum elemento seguro que nos permita estabelecer uma conexão entre os textos de Peixoto e o painel de azulejos das escadarias do antigo paço episcopal de Braga. Se os figurantes de casaca nobiliárquica são efectivamente estudantes laicos matriculados no Colégio de São Paulo, porque não apresentam tricórnio e capote conforme descreve o documento? Se os figurantes de abatina, capa comprida e tricórnio são efectivamente alunos do Colégio de São Paulo (e aqui a descrição de Peixoto coincide com o desenho), porque estão de cabeleiras compridas quando o privilégio de peruca era exclusivo dos estudantes da Universidade de Coimbra, regalia que Peixoto conhece e anota?
Em sede de primeira conclusão, no Colégio de São Paulo de Braga usavam-se três trajes, conforme a categoria e estatuto dos alunos. Luís Novais seleccionou em 1989 apenas um e o que seleccionou não coincide nem com os textos de Peixoto nem com as figuras presentes no painel de azulejos da Reitoria. Corresponde sim a um figurante masculino que enverga um traje civil à base de calções, jaquetão curto e tricórnio, sem capa nem capote. Segundo o código vestimentário da época, este tipo de jaquetão não era admitido a estudantes nem a clérigos. Era próprio de almocreves, criados de servir, boleeiros, camponeses de certa abastança.
Tudo parece indicar que Luís Novais fixou a sua atenção no traje de abatina, que é o antecedente do traje de capa e batina usado pelos estudantes do sexo masculino nas universidades de Coimbra, Évora, Porto, entre outras, mas ao escolher o modelo para redesenhar acabou por seleccionar outro figurante também presente nos azulejos. 
(...)"

António M. Nunes (Julho de 2013)






Painel de azulejos existente no largo do Paço (Episcopal) de Braga, hoje ocupado pela Reitoria da UM. 

 

Cardeal romano com traje de abatina avivado em escarlate (meias, orlas). Portugal é o único país onde se regista este traje de passeio, viagem e audiência usado simultaneamente com capa comprida.
 

Traje de abatina com capa curta e tricórnio, Roma, 1860

Moda, política e indumentária eclesiástica: dois padres franceses fotografados em 1864. Um com a batina à francesa, de confecção simples, o velho tricórnio de feltro, o plastron e a capa no braço. O outro trajando as novidades introduzidas pelo clero francês nos anos da descristianização que se seguiram à Revolução de 1789: o novo chapéu que nas décadas seguintes ficará com a aba plana de anel de saturno e o famoso casacão.  

O acual traje dos estudante da UM, apelidado de "Tricórnio", tomando o nome do característico chapéu que é parte da indumentária.

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