Sabemos que falar de Tradições
Académicas e/ou de Praxe é muitas vezes tropeçarmos num conjunto apreciável de
ficções, mitos e de equívocos. Uns são facilmente desmontáveis com 2 dedos de
pesquisa e algum espírito crítico, já outros estão de tal forma enraizados, e
reiterados no tempo, que se lhes perdeu o rasto – assumindo-se como factos que
se repetem “ad nauseum” (mesmo se os replicadores não conseguem, igualmente,
justificá-los).
Um desses mitos prende-se, precisamente,
com a ideia de que o traje académico foi implementado para nivelar ou esbater
as diferenças sociais dos estudantes.
É um argumento recorrente que
encontramos impresso no discurso de muitos estudantes e até mesmo de códigos de
praxe; um argumento que se transformou em conceito e dogma.
Obviamente que, como já muitas vezes
referimos, a paridade resultante do uso de um uniforme transversal a uma
academia é um facto mais ou menos assente (não podemos, ainda assim, fazer
esquecer que a qualidade da confecção, por si só, já determina a bolsa do
estudante, a que acresce o gasto feito em “enfeites” e “apliques”, vulgo
emblemas, pins e apêndices carnavalescos como as madeirinhas, por exemplo).
Mas uma coisa é a consequência outra é o
propósito. Uma coisa é definir-se um uniforme para identificar a corporação
académica e outra é justificar a existência do mesmo por motivos de igualdade
social. Na verdade, qualquer uniforme serve para distinguir a identidade do
grupo, antes de mais, do que propriamente para nivelar os seus membros.
O que não podemos é cair no facilitismo
de pegar num argumento que não passa de uma evidência que ocorre a jusante e
transformar isso no motivo que justifica, a montante, a criação de um uniforme
estudantil.
Com efeito, em momento algum encontramos
como motivo da criação do traje estudantil (seja o talar, seja a “abatina” ou,
depois, a sua versão burguesa – que se fixará no actual modelo que conhecemos
por “capa e batina”) o argumento nivelador tendo por objectivo acabar
esteticamente com as diferenças e proveniências sociais dos estudantes. Encontramo-lo, sim, como argumento para enaltecer as suas virtudes (já disso tínhamos dado conta, até, na publicação de uma imagem de um artigo jornalístico: ver AQUI).
Como sabemos, a universidade recebeu os
seus primeiros estatutos em 1309, sem qualquer menção sobre os trajes docentes
e discentes. Com efeito, porque frequentada pelos membros do clero, cada aluno
se apresentava nas aulas com o vestuário próprio da sua condição, hierarquia e
ordem a que pertencia.
De todas as revisões estatutárias que se
foram seguindo, e no que concerne à indumentária, todas as recomendações visam,
acima de tudo, o apelo à sobriedade e ao evitar de excessos, nomeadamente em
sinais exteriores de riqueza ou estatuto, limitando-se algumas cores mais
exuberantes, os exageros de folhos, entre outros.
Como sabemos, com a abertura da
universidade à burguesia, os civis procuram vestir-se como era o costume, ou
seja como os seus colegas clérigos, pelo menos tentam fazê-lo de forma
aproximada. Naturalmente, isso veio trazer ainda maior diversidade, tendo em
conta que a Universidade nunca deixou de ser permeável ao mundo que a rodeava,
mormente a sua natureza ortodoxa quanto a costumes e modas. Subtil e
paulatinamente, a estética burguesa também será adoptada na indumentária
académica.
Assim, ao longo de séculos, o vestuário
que se podia ver na Universidade era, de certo modo, diversificado, conforme a
maior ou menor permissividade dos decretos reitorais ou estatutos ratificados
pelo rei, assim como pelo estatuto profissional ou tecido social a que pertenciam
os lentes e alunos.
Embora existisse um modelo mais ou menos
identificável (até porque na sociedade todos os demais tinham uma forma de
vestir totalmente distinta, ou mais pobre, no caso do povo, ou equiparada, ou
mesmo mais rica, no caso do alto clero e nobreza), nele se estampavam inúmeras
cambiantes e variantes, desde os berloques, aos adornos, tecidos, cores,
sapatos, chapéus, etc., que se operavam de forma mais ou menos discreta.
Disso nos dá conta Alberto Sousa Lamy,
naquele que é considerado, até á data, o maior e mais profundo estudo sobre as
Tradições Académicas e a Praxe na UC:
“ Primitivamente, os estudantes da Universidade de
Coimbra não eram obrigados a trajar um uniforme próprio, exclusivo.
Os antigos estatutos não impuseram o uso de qualquer
uniforme, mas somente regras rígidas respeitantes ao vestuário dos académicos,
procurando evitar certos luxos.
A Ordenança para os estudantes de Coimbra, de D. João
II, de 14 de Janeiro de 1539, determinou quanto ao trajos que os académicos não
podiam “trazer barras, nem debruns de
pano em vestido algum”; não podiam “trazer vestido algum de pano
frisado”; não podiam “trazer barretes doutra feição
senão redondos”; “os pelotes e aljubetas que
houveram de trazer, sejam de comprido três dedos abaixo do joelho ao menos”; não podiam
“trazer algumas de capelo”, mas somente “lobas abertas ou cerradas,
ou mantéus sem capelo”; não podiam trazer “golpes nem entralhos nas calças”; nem podiam
trazer “lavor branco, nem de cor alguma
em camisas, nem lenços”.
O estudante “que trouxer qualquer das cousas
acima defesas, pela primeira vez perderá ou vestido ou cousas que contra esta
defesa trouxer e com elas for achado. E por a segunda vez incorrerá na dita
perda de perdimento do vestido e mais cousas, e mais perderá seis meses de
curso do tempo que tiver cursado. E sendo outra vez compreendido em cada uma
das sobreditas cousas, haverá as mesmas penas, e além delas pagará dois mil
reais para a arca da Universidade”[1]
Os Estatutos Velhos ou Oitavos Estatutos, de 1598,
confirmados por D. João IV e que prevaleceram até á Reforma Pombalina (1772),
dispunham que “os estudantes andarão
honestamente vestidos, sem seda alguma: mas poderão trazer chapéus e barretes
forrados, e colares[2]
de mantéus e guarnições de sotainas por dentro: e nas camisas não trarão
abanos, senão colares chãos sem feitios de rendas, nem bicos, nem transinhas,
nem de outras guarnições semelhantes, sob pena de dois mil reis, pagos da
cadeia, a metade para a Confraria, e a outra para quem o acusar. E não trarão
em nenhum vestido de sotaina, calças ou pelote, as cores aqui declaradas:
amarelo, vermelho, encarnado, verde, laranjado, sob pena de perderem os ditos
vestidos, a metade para a Capela e outra para o meirinho, ou guarda das
Escolas, qual o primeiro a acusar. E porém debaixo das sotainas poderão
trazer gibões ou jaquetas de pano de cores, para sua saúde: contanto que os
colares não sejam mais altos que os das sotainas, nem as mangas mais compridas.
E poderão outros sim, debaixo de botas ou borzeguins, trazer meias calças de
cores bem cobertas: e em casa, ou pelas ruas, onde pousarem, poderão trazer
roupões de cores, contanto que não sejam acima proibidas”.
Mais determinavam os Estatutos Velhos que os
estudantes “não poderão trazer barretes de
outra feição, senão redondo ou de cantos: nem carapuças, senão os que trouxerem
dó, no tempo limitado, ou pelas pessoas, que o podem trazer” e que “os mantéus
que houverem de trazer serão compridos, ao menos até ao artelho[3]”.
Os académicos “não trarão capas de capelo cerrado, e
trarão mantéus de colar, ou de capelo abertos. Porém os criados dos
estudantes poderão ir ouvir missa às Escolas com pelotes e farragoulos, e
chapéus, e colares de abanos nas camisas, chãos, que não passem dois dedos. E os estudantes pobres poderão trazer o
mesmo trajo: tirando os colares das camisas de abanos (…)”[4]
Mais ainda quando podemos perfeitamente
observar a diferenciação clara e determinada estatutariamente, ao modo de
vestir dos estudantes pobres ou dos criados dos estudantes (muitos deles também
estudantes).
O nivelamento social de um
suposto uniforme transversal e que esbatesse quaisquer sinais exteriores de
pertença e riqueza social não existiam, muito pelo contrário se fazia
precisamente questão nessa diferenciação.
Se atentarmos à figura dos mantéistas e
capigorrones que encontramos na vizinha Espanha (extensível também a Portugal,
como acima acabámos de verificar), fica claro que o argumento igualizador não
encontra quaisquer fundamentos até em épocas mais recuadas (a partir de meados do
séc. XV).
Com efeito,
"Sendo o manteo o hábito mais comum do escolar,
ficava fora das possibilidades dos menos favorecidos, pelo elevado custo de
confecção. Por autorização dos reitores, estes alunos eram admitidos aos gerais
ou às aulas com um hábito ligeiramente diferente: o ferreruelo (em vez do
manteo), uma capa de tecido menos nobre e mais curta; e a gorra, em vez do
bonete: capa y gorra – capigorrista.
(...)
Como vimos, alguns manteístas, forçados pela
necessidade, entravam também ao serviço de outros estudantes. Contudo, não
estavam autorizados a exercer a mendicidade; além do mais, vestidos de manteo,
ninguém lhes «dava sopa»: a solução passou por adoptarem também a capa e a
gorra, para mais facilmente poderem mendigar nas ruas. Além disso, pôr o manteo
e o bonete no prego sempre rendia alguns cobres... Contudo, mesmo quando
deixavam de ter necessidade de mendigar, dificilmente voltavam a envergar o
manteo, dado que descobriam que capa y gorra eram muito mais práticas de usar
do que o comprido e pesado hábito escolar oficial. O número de alunos que se
apresentavam de capa y gorra nas aulas começou a crescer de tal forma que, em
algumas universidades, os reitores e/ou os juízes eclesiásticos começaram a
exigir atestados de indigência para concederem as autorizações e acabarem com a
«praga». Até mesmo os alunos que não tinham propriamente necessidade de mendigar
se deixavam seduzir pelo lado risonho e pelos atractivos de uma vida semi
marginal, semi poética, à margem dos convencionalismos sociais, folgazona,
despreocupada: libertos da necessidade de angariar a comida e o tecto, gozavam
dos aspectos positivos, sem sentirem os apertos da fome e do frio."[5]
Como se pode constatar, o que ocorria,
nesses casos, é que os estudantes mais abastados, os manteístas, procuravam
fugir à rigidez dos regulamentos disciplinares, disfarçando-se ou tornando-se
“gorrones” para, assim, gozarem de maior liberdade e poderem usufruir de mais
espaço de manobra.
Como facilmente se depreende, não existia igualdade
nas roupagens, as quais eram determinadas quer pelo estatuto social, quer pela
bolsa ou mesmo pelo desejo de aventura dos estudantes.
Como a obra
“QVID TVNAE?” no lo explica (p.49), o foro estudantil dividia-se em 2 grupos, os de
condição superior, que podiam usar manteo + loba ou sotaina; bonete
hábito da ordem ou uniforme militar e, ainda, a famosa beca, conforme a sua proveniência
(e eram apelidados de manteístas ou colegiales, conforme o tipo de habitação:
própria/arrendada ou em colégios), depois, os de estatuto inferior , cuja roupagem era o manteo + loba ou sotaina e bonete (se fossem serviçais de alunos colegiales – eram os chamados férmulos ou familiares), ou capa e gorro (se fossem serviçais de manteístas – e que eram conhecidos por sopistas, gorrones, capigorros, capigorrones ou capigorristas).
Assim:
“É sempre perigoso proceder‑se a uma
análise do passado, partindo dos pressupostos do presente.
No caso do traje, é
errado supor que desde sempre tenha existido, como hoje (em teoria, pelo
menos), uma espécie de uniforme nivelador das diferenças sociais entre alunos (mesmo quando as universidades passaram a legislar o uso e o modelo de vestuário, tais posturas destinavam‑se a distinguir aqueles que eram abrangidos pelo foro universitário da restante população). Ao contrário do que seríamos levados a pensar, em Espanha nem todos os alunos dos estudos gerais/universidades usavam o mesmo traje, pretensamente identificativo da corporação estudantil, e o mesmo se passava em Portugal.
E haveria uma classe estudantil homogénea? Ao que
tudo indica, não.
Para percebermos melhor o contexto de
como surgiu tal falácia do argumento igualizador, nada como aqui trazer o que
sobre isso disse o maior especialista que temos sobre trajes e protocolo
académicos:
“O estudante António Manuel da Cunha Belém, num
romance editado ao longo de 1858 em folhetins, dedicou um capítulo à chamada
“abatina” ou “batina” dos estudantes. Não se coibiu de elucidar que fora do
horário escolar os estudantes trocavam o hábito talar pelo traje civil de tipo
equitação, com jaleca “à espanhola”, atitude muito praticada pelos
militares portugueses. Discorrendo sobre o uniforme escolar, o literato confirma
o abandono espontâneo da antiga loba e a substituição generalizada pela “frock
coat”, uma sobrecasaca burguesa preta, integralmente fechada na frente com
carcela de botões de duraque.
C onvém aqui referir alguns aspectos que
António Nunes salienta em nota de rodapé:
Como é possível verificar, os
estudantes pró-abolicionistas do traje talar – e que reivindicavam um novo
traje mais “progressista” – em momento algum alegam que pretendem um novo traje
que seja igualizador. Aliás esse argumento nunca é utilizado. Ao invés,
fala-se, isso sim, de uma maior liberdade estética, movida por um claro
anti-clericalismo[12] e
um divórcio total entre a comunidade estudantil e sucessivas medidas
repressivas por parte da reitoria da UC, levando a posições extremadas.
Regressando à obra que nos serve de
referência para o artigo[13]:
“Conforme se tentou demonstrar na primeira parte deste estudo, na Coimbra do liberalismo,
Mesmo depois da transição da “abatina”
para o modelo burguês, os estudantes militares continuaram a poder usar a sua farda
à qual, muitas vezes, colocam, por cima, a capa negra.
Sendo
a equiparação entre capa e batina e uniforme militar um facto, podemos desde
logo perceber que a igualização não era, de todo, uma realidade possível, até
porque, quanto mais não fosse, no que concerne aos militares, estes continuavam
a usar, por exemplo, acessórios diferenciados conforme o seu posto
No virar do século (do XIX para o XX), as ambiguidades são enormes, e toda esta efervescência é ainda mais adensada pela inoperância das autoridades académicas, presas ainda à sua ortodoxia, ultrapassadas, de facto, pelos acontecimentos sociais da época e incapazes de promover o devido “upgrade” vestimentário (fosse para discentes ou para docentes).
Abandona-se a confecção à base de tecidos “nobres” como o cetim, a seda e o damasco. À luz do espírito de poupança, e contenção dos gestos, os amplos panejamentos, as linhas evasés, os bordados e os tecidos de luxo desaparecem. Impera um figurino vincadamente geométrico (rational dress), onde não há lugar para excessos de alfaiataria. Se dantes eram admitidos o preto, o pardo e o cinza, agora o preto é a única cor autorizada .
A máquina de costura torna-se um preciso auxiliar do processo de padronização.
A capa e batina da segunda metade de oitocentos afirma-se reservada à construção da identidade masculina, progressivamente marcada pelos mesmos critérios que permitem caracterizar a farda corporativa.
(…)
A indumentária masculina manteve-se relativamente estável até À sua abolição em 23 de outubro de 1910. Antes de 1912, não se registam ingressos femininos no claustro docente.
As primeiras alunas haviam chegado à UC em 1891, mas a reitoria optou por dispensar as estudantes do porte do uniforme escolar". [22]
Segundo Soror Águeda María Rodríguez Cruz[6];
Houve épocas, sobretudo nos primeiros
séculos, em que se matriculavam também pessoas alheias ao estudo, com vista
apenas a gozarem do foro académico, como os boticários, arrieiros, artesãos,
donos de pousadas e provedores de estudantes, etc., até a Coroa acabar com este
abuso”[7]
(…)
Na óptica dos estudantes abolicionistas, o hábito
talar não era vivido nem sentido como um traje “pitoresco” ou estruturante da
identidade académica que se reclamava defensora do livre arbítrio.
De acordo com o Regulamento da Polícia Académica, o
traje era definido como um instrumento de identificação imediata do corpo
estudantil, através do qual a Polícia Académica sinalizava os alunos nos
vários edifícios da UC, nas ruas da cidade e em espaços interditos (casas de
jogo, bordéis).
(…)
A construção mental
idealizada que atribui ao traje estudantil uma função igualitária no interior
da sociedade tradicional académica é bastante tardia. Será preciso aguardar
pela publicação das Memórias do Mata-Carochas, em 1906, da autoria do antigo
estudante de Direito Henrique António Antão de Vasconcellos (1842-1915), para
se assistir à primeira elaboração escrita do igualitarismo
Radicado no
Rio de Janeiro, e visivelmente emocionado pela leitura do livro do também
antigo estudante José Trindade Coelho, In Illo Tempore (1902), Antão de
Vasconcellos pronuncia-se a favor da manutenção do traje académico.
Informa que os
estudantes do ensino superior brasileiro não tinham uniformes, facto que
lamenta, e conclui com a tirada igualitarista que se encontrava amplamente
difundida entre as elites brasileiras a propósito dos uniformes escolares
(ensino primário e secundário)"[8]
Serve de base ao argumento nivelador o que escreveu Antão de Vasconcelos e que servirá de pedra angular
para os defensores do igualitarismo:
“Ali não se
distingue o pobre do rico, o fidalgo do plebeu; a capa e batina, feita do mesmo
molde, do mesmo pano, que é obrigatório, nivela-os a todos”[9]
1º. Que a obra “O Mata-Carochas” contém
inexactidões, cuja leitura requer confronto de factos;
2º. Que a partir da abolição da capa e
batina em Outubro de 1910, Antão de Vasconcellos será repetidamente invocado
em Coimbra, bem como noutros meios académicos portugueses, para legitimar a
necessidade e função cultural do traje académico que, à luz deste argumento
mitográfico, serviria para instaurar a igualdade entre os respectivos aderentes.
Como facilmente depreendemos, pegou-se num argumento que visava encontrar virtudes no uniforme estudantil, com vista à sua defesa e publicitação, o qual foi transformado e adoptado como a “verdadeira” razão da existência e legitimidade do traje académico.
Mas continuemos com o que nos diz
António Nunes:Como facilmente depreendemos, pegou-se num argumento que visava encontrar virtudes no uniforme estudantil, com vista à sua defesa e publicitação, o qual foi transformado e adoptado como a “verdadeira” razão da existência e legitimidade do traje académico.
“O hábito talar possibilitava aos archeiros da polícia académica a identificação imediata dos estudantes e sua condução à presença do Reitor, distinguindo sem ambiguidades os escolares dos lentes, dos funcionários e dos demais habitantes da cidade.
Os editais reitorais redigidos em tom paternalista e
moralizador funcionavam como mecanismo de controlo preventivo e repressivo.
Para que todo este dispositivo funcionasse, também os archeiros da polícia
académica envergavam diariamente um pequeno uniforme militar, actuando num
território demarcado (edifícios universitários, Bairro latino e espaços
intra-muralhas) que depois de 1910 passaria a ser controlado por bandos de
escolares ou trupes da praxe académica.
Bem elucidativa dos equívocos circulantes foi uma
multidunária assembleia magna realizada no Teatro Académico em 21 de novembro
de 1860, donde saiu um abaixo-assinado para entrega em mão ao Rei D. Pedro V.
Vindo do Porto, o chefe de estado entrou solenemente
em Coimbra no dia 2 de novembro de 1860, com o fito de presidir à abertura
solene da UC. Uma comissão estudantil entregou ao monarca um pedido de abolição
do porte obrigatório da “capa e batina, traje jesuístico e também
inquisitorial” e de supressão do “foro académico”.
Os estudantes continuavam a confundir o regulamento
disciplinar de 1839 com o antigo juízo privativo (conservatória) que fora
extinto em 1834[10].
Vendo no hábito talar um instrumento de manutenção da
ordem na sociedade académica, e devidamente inteirado da não existência do
antigo foro académico, o Rei não atendeu os pedidos exaltados dos estudantes.”[11]
A partir de 1863, dá-se, de facto, o
início da mudança. Vicente Ferrer Neto Paiva toma posse como reitor da UC (10 de
Agosto), sendo um lente da ala liberal progressista. Estava a par (pelos
contactos académicos que mantinha com instituições espanholas) da abolição do
traje estudantil em Espanha (1834) e adopção da toga judiciária como traje
nacional para bacharéis, doutores e reitores, operada em 1850.
Após auscultar várias comissões de
estudantes, que pediam abolição do traje talar, acabou por permitir, por edital
de 10 de Outubro de 1863, o uso de botas, calças compridas, colete e gravatas
pretas, e implicitamente das sobrecasacas aos docentes e discentes da UC e do
Liceu de Coimbra.
As antigas roupagens, essas, ficavam apenas para actos
solenes.
O reitor Vicente Ferrer não estava,
contudo, a chancelar a oficialização de um novo traje, porque formalmente
continuava a ser o traje talar o traje corporativo em vigor, contudo abria uma
porta que jamais se voltaria a fechar, criando o precedente para a transição da
indumentária académica, nomeadamente do corpo discente.
Era uma forma de acalmar a contestação,
de criar uma trégua na muita abalada ordem social que se vivia dentro da cidade
universitária, pois o reitor não confiava nos estudantes, muitos deles
conhecidos pelas suas posições extremistas.
“A 14 de Outubro a casa reitoral fazia sair novo
edital,
proibindo expressamente
os archeiros da polícia académica de continuarem a receber gratificações dos
estudantes para fecharem os olhos às transgressões vestimentárias.
Insatisfeitos, os estudantes pró-abolicionistas realizaram uma
assembleia-geral em 20 de outubro onde reclamavam a extinção da polícia
académica e do uniforme escolar. Manuel Chaves e Castro, José Falcão, José
da Cunha Sampaio e Fernando Rocha foram designados para felicitar o reitor
recém-empossado e entregar-lhe uma petição escrita.
Louvava-se o espírito liberal do prelado, pedia-se a
abolição das “informações de costumes de vida”, a abertura da Biblioteca
Joanina, o fim da polícia e a erradicação do “hábito tão escuro e opressor”.
Curiosamente, a petição não propugnava pela abolição
liminar do uniforme, mas pela sua substituição por outro que reflectisse as
conquistas do século.
A retórica cultivada pelos signatários do texto
limitava-se a continuar as assimilações anticlericais, laicistas e de
hostilidade ao absolutismo, requentadas nos anos mais recentes e radicalizadas
pelos membros da Sociedade do Raio na sua aproximação ao ideário carbonário.
O uniforme académico era condenado em bloco, sem que o
ultra-romantismo campeante deixasse escorregar uma palavra de apreço pela peça
mais considerada, a capa talar.”[14]
A. Nunes chama a nossa atenção para o
caricato da incongruência entre os argumentos anti-clericais, laicistas contra
o hábito talar e a polícia académica, reclamando modernidade e progresso, mas
contudo cultivando actos e práticas totalmente e opostas a tais ideias, como o
caso dos violentos rituais a caloiros, os roubos, espancamentos, e outros
variadíssimos distúrbios, protagonizados pelos estudantes, assim como outras
festividades arcaicas que em nada se distinguiam das que ocorriam nos meios
rurais, mostrando o lado boçal, primário e bárbaro que na verdade caracterizava
muitas das práticas estudantis. Lembra, e bem, que os periódicos da época davam
igual eco a tal paradoxo, pois que a “revivescência
do “chavari das latas” ou “caçoadas do ponto” nas noites após o encerramento
das aulas não traduziam o vanguardismo cultural propalado pelos estudantes”[15].
Acrescentamos,
ainda, um outro dado:
coabitaram facções estudantis que reclamaram a abolição do hábito talar, enquanto que outras pugnaram mais moderadamente pela sua simplificação ou até substituição por uma farda militar. A partir do Regulamento da Polícia Académica de 1839, os estudantes com estatuto militar conseguiram que as suas fardas fossem equiparadas ao hábito talar.
(...) Traduzia também o apreço do governo central pelos batalhões académicos que haviam combatido em prol da causa liberal e o reconhecimento público pela ordem e disciplina militares.” [16]
No virar do século (do XIX para o XX), as ambiguidades são enormes, e toda esta efervescência é ainda mais adensada pela inoperância das autoridades académicas, presas ainda à sua ortodoxia, ultrapassadas, de facto, pelos acontecimentos sociais da época e incapazes de promover o devido “upgrade” vestimentário (fosse para discentes ou para docentes).
É costume verem-se alguns estudantes de
cartola, embora a irreverência seja, até, andar em cabelo, e os coletes, por
exemplo, ostentam vários feitios e cores.
Em 15 de Outubro de 1898, o periódico
"O Conimbricense" informava que “a
calça nem sempre é preta. A gravata, umas vezes encarnada outras branca, e, só
por esquecimento, é que ela é preta… A capa é usada com frequência dobrada e
deitada sobre um dos ombros, trazendo-a muitas vezes na mão. E aqueles que
querem usar bengala fazem-no…”.
O traje estudantil (“abatina"[17])
é mal-amado pelos estudantes da época que olham para o mesmo como símbolo
retrógrado numa sociedade progressista e moderna.
Há, por isso, um relaxar dos costumes,
também movidos por ímpetos irreverentes de contestação.
Em Março de 1907, em pleno eclodir da
greve académica que viria a alastrar a todo o país, um lente propôs, no
Conselho de Decanos, “que
se tratasse de obter, no mais curto prazo possível, a abolição da capa e
batina, visto ser esse trajo uma das causas das irregularidades dos estudantes,
havendo tanto mais razão para a abolir, quanto já não é usada a rigor.
“
Olhemos, agora às peças comuns do
denominado “pequeno uniforme” académico[18]
para docentes e discentes[19],
a partir de 1863:
·
Sapatos pretos comuns ou botinas
pretas de couro (nos quais se viria a incluir como
sinónimo de maior solenidade o sapato masculino estilo Oxford, com biqueira e
abotoado sobre o peito do pé com cordão estreito. O calçado académico masculino
de porte corrente, adoptado após a revolução de 1820 era o sapato preto de
couro estilo império (ou de chinelo), abotoado sobre o peito do pé com uma fita
preta de seda);
·
Meias pretas (usando-se,
até á revolução de 1910, meias pretas até à altura do joelho, para se evitar
que a canela fosse avistada, quando as pernas se cruzassem na posição sentada);
·
Calças compridas pretas, de
abertura de alçapão na sua fase inicial, com ulterior consagração da braguilha
de carcela interna;
·
Colete preto de carcela alta,
munido de seis botões médios, forrados, e decotes em V
(já os estudantes clérigos usaram, até 1912, colete preto
subido até ao pescoço, rematado por volta branca);
·
Opção
facultativa pelo plastron ou laçarote preto, cujas pontas se deveriam usar pro
dentro da “frock-coat” (sobrecasaca);
·
Gorro
preto tubular, de porte facultativo, de uso comum aos lentes[20],
tendo caído em desuso no séc. XIX (o chapéu próprio desta veste era o tricórnio
de feltro preto);
·
“Batina”
preta de sarja, cintada, colarinho raso, com mangas e costas talhadas no feitio
da “frock-coat” vitoriana da época, e carcela dianteira integralmente fechada
com uma fileira de botõezinhos planos forrados de tecido. Bainha inferior quase
à meia perna, sendo ligeiramente mais descida para os lentes;
·
Capa
singela, em lã ou sarja, embainhada para os lentes, sem bainha para os
estudantes simpatizantes dos rasgões[21],
colarinho raso, dispondo a dos estudantes de alamares, e a dos docentes de
cordão de borlas ou de cordãozinho simples.
E voltamos a pegar ipsis verbis, ainda
situados na segunda metade do séc. XIX:
“Diferentemente do hábito talar histórico, o pequeno uniforme marca o
triunfo das virtudes burguesas oitocentistas: ordem, trabalho, poupança,
austeridade, laicização da instrução pública, normalização dos costumes de vida
e crescente estandardização da confecção têxtil.
(…) Abandona-se a confecção à base de tecidos “nobres” como o cetim, a seda e o damasco. À luz do espírito de poupança, e contenção dos gestos, os amplos panejamentos, as linhas evasés, os bordados e os tecidos de luxo desaparecem. Impera um figurino vincadamente geométrico (rational dress), onde não há lugar para excessos de alfaiataria. Se dantes eram admitidos o preto, o pardo e o cinza, agora o preto é a única cor autorizada .
A máquina de costura torna-se um preciso auxiliar do processo de padronização.
A capa e batina da segunda metade de oitocentos afirma-se reservada à construção da identidade masculina, progressivamente marcada pelos mesmos critérios que permitem caracterizar a farda corporativa.
(…)
A indumentária masculina manteve-se relativamente estável até À sua abolição em 23 de outubro de 1910. Antes de 1912, não se registam ingressos femininos no claustro docente.
As primeiras alunas haviam chegado à UC em 1891, mas a reitoria optou por dispensar as estudantes do porte do uniforme escolar". [22]
No que respeita à “batina/frock-coat”, na passagem
para a década de 1870 os estudantes abandonaram a carcela exterior de
botõezinhos, passando a usar quase até ao período do Ultimato Inglês de 1891
carcela interna e colarinho adornado de gola de orelhinhas, tipo gabardine. A
toda a volta das bainhas, sobressaía uma orla em voga na indumentária civil
masculina.
Entre o Ultimato e a Greve Académica de 1907, a
“batina” perde novamente a gola de orelhinhas, acentuando-se os actos provocatórios
tendentes a andar desabotoado. A Greve de 1907 hiperboliza a moda da abertura
frontal da “batina”, com lapelas a dobrar sobre o peito em V e o recurso aos
adornos de cetim, numa época em que as
golas e lapelas em cetim eram símbolo de distinção social dos novos-ricos.
A capa passa a usar-se enrolada no colarinho ou
deitada no braço, gesto provocatório que acentua a distância em relação à capa
dos clérigos e seminaristas. Signo visual da identidade dos estudantes
republicanos, livre-pensadores e intransigentes, a sobrecasaca desabotoada com
a capa no braço sujeitava os resíduos do traje corporativo a uma espécie de
acto de degradação final.
A população conimbricense e portuguesa não compreendia
o fundamento deste “malaise”, numa conjuntura marcada por forte reapropriação
da capa e batina nos liceus distritais e nas emergentes tunas dos liceus e
escolas politécnicas.
À luz do ideário romântico, tratava-se
de um ritual de exorcização dos últimos despojos de um traje considerado
opressor, reacionário e filho do Concílio de Trento. A lenda do
velho hábito talar era adensada pela leitura judicativa de Alexandre Herculano,
História das origens e estabelecimento da Inquisição em Portugal (1854-1859),
onde o historiador apontava o dedo a reitores, lentes e diplomados da UC, que
tinha exercitado cargos no Tribunal do Santo Ofício”.[23]
Liceu Alexandre Herculano, do Porto, no ano lectivo de 1905-1906. Foto de Padre Moreira das Neves, -o Cardeal Cerejeira, Lisboa, ProDomo, 1948 |
Como podemos concluir, a evolução das
vestes estudantis prendeu-se mais com motivos reaccionários ou estéticos (em
função da moda em voga) do que propriamente com abnegados desejos de caritativa
igualdade, tanto mais que, na prática, essa igualdade nunca foi conseguida ou
mesmo promovida, pelo menos até à definitiva padronização do traje que
actualmente conhecemos.
Assim, embora reconhecendo o óbvio, ou
seja que um grupo envergando um mesmo traje/uniforme acaba sempre por esbater
quaisquer diferenças vestimentárias individuais, a verdade é que o propósito de
um traje/uniforme é a identificação do grupo, do seu foro, natureza, âmbito.
[1] Cfr. B.M
Costa e Silva, Estudantes de Coimbra,
41-42, citado por Lamy.
[2] Colares
= colarinhos
[3]
Tornozelo, ou seja a feição talar (talar que vem do francês “talon”, que
significa calcanhar).
[4] LAMY,
Alberto Sousa, A Academia de Coimbra,
1537-1990, História, Praxe, Boémia e Estudo, Partidas e Piadas, Organismos
Académicos. Lisboa, Rei dos Livros, 2ª edição, 1990,pp. 649-650
[5] COELHO,
Eduardo, SILVA, Jean-Pierre, SOUSA, João Paulo e TAVARES, Ricardo – QVID TVNAE? A Tuna Estudantil em Portugal,
Euedito, 2011, pp.49-55
[7] In “QVID
TVNAE?”, op. cit., p. 48
[8] NUNES,
António - Identidade(s) e moda,
Percursos contemporâneos da capa e batina e da sinsígnias dos conimbricenses.
Bubok, 2013, p.83
[9] Cf. VASCONCELLOS,
Antão - Memória do Mata-Carochas, Prefácio de José Patrocínio, 2ª
edição, Porto, Empreza Literária e Typographica Editora, s/d, pp.415-416
[10] Um dos
resultados da abolição do foro académico foi que de 1834 até à implantação da
República, em 1910, a capa e batina era apenas obrigatória dentro do perímetro
da Universidade, quando anteriormente (de 1718 a 1834) essa obrigatoriedade se
estendia a toda a cidade.
[11] Op.
Cit. P.83
[12] Um antagonismo
que se inicia formalmente com o governo do Marquês de Pombal que quis acabar
com o traje, porventura demasiado “Jesuístico” para o seu gosto, aquando da
reforma que fez da Universidade, em 1772.
[13] Que
quando não citamos, parafraseamos, seguindo fielmente o discurso do autor.
[14] Nunes,
op. cit pp. 885-86
[15]
Referido por António Nunes, com base no jornal A Liberdade, de 17 de Maio de 1875.
[16] Idem,
p. 87
[17]
conjunto de capa e túnica (talar) dos abades seculares de França ou de Itália,
com vestido de seda negra, capa curta, volta singela e cabeleira pequena. É um traje perfeitamente datado na Europa
(remonta à década de 1660) que foi um dos trajes corporativos dos estudantes do
Real Colégio dos Nobres. A abatina é mais curta e barata que a loba e de cor
negra, significando essa cor o desapego ao mundo material e os seus votos
eclesiásticos.
A “abatina” estudantil, modelo talar, (que os estudantes
passam a designar apenas por “batina”)
não seria tão comprida como a dos lentes (até aos calcanhares =
”talons”) e seria até bem mais curta que
a capa , pelo que o uso de calções, por exemplo, mesmo quase não se vendo debaixo da “batina”
(viam-se apenas as meias), se mantivesse.
[18] Para os
actos solenes usava-se o traje talar ou, no caso dos archeiros, o grande
uniforme napoleónico, semelhante ao adoptado pela casa real, á base de sapato
preto de fivela de prata, talabarte agaloado, espadim, alabarda, calções, meias
brancas de seda, colete branco de casimira, lacinho branco de seda (papillon),
luvas brancas, casaca de abas de grilo em lã azul ferrete e bicórnio de feltro,
segundo António Nunes, na obra citada, página95.
[19] Idem,
p. 95
[20] Embora
facultativo, o seu uso era bastante generalizado por servir de sacola.
[21] Como
nos dá disso conta A. Nunes, em nota de rodapé, “Mantéus com salpicos de vinho, buracos e rasgões eram o orgulho dos
estudantes goliardos conimbricenses e salmantinenses. Daqui derivam certas
crenças, apropriadas por estudantes de universidades e politécnicos
portugueses, segundo as quais a capa nunca deveria ser lavada, bem como a
regulamentação praxística do número de cortes que se dão às bainhas das capas.
Em Coimbra, o costume de rasgar a bainha da capa é multissecular, e anterior ao
séc. XIX é também a usança de coser os rasgões com fio de linha da cor de cada
faculdade (o ponto-de-cruz é o mais apreciado)”.
[22] Podemos
aqui constatar que i igualitarismo propalado era, na verdade, uma falácia,
tendo em conta a descriminação total a que foram votadas as mulheres durante
décadas, até à criação do uniforme estudantil, operado a partir de 1915 e que
chegaria anos mais tarde à Universidade, a começar pelo Porto.
[23] Op.
Cit., p.96-97
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