quarta-feira, julho 02, 2014

Notas às Trupes Académicas - Origens e história


 
 As Trupes, constituídas por estudantes trajados, e cuja função é a de perseguirem caloiros “tresmalhados” após anoitecer, constituem um fenómeno com longas décadas de prática e envolto de enorme controvérsia.
Mas mais do que procurar questionar da sua validade, especialmente na actualidade, importará conhecer um pouco melhor as raízes e origem destes grupos, já que, também aqui, muitos serão os que praticam e fazem parte de um fenómeno sobre o qual detém um conjunto de saberes difuso. Para além disso, também nos apercebemos que, sobre este assunto, pouco ou nada se tinha publicado online e de modo a que as actuais gerações pudessem ter acesso.
Após muitos avanços e recuos ao longo dos últimos meses, fica hoje cumprida a promessa de versar sobre trupes.
 
Nota: importará, em muitos casos, passar os olhos pelas notas explicativas de rodapé (no final do artigo).
 




Dos Ranchos às Troupes




Como refere Lamy (1990), com base no estudo de Maria Eduarda Cruzeiro (1979), as trupes serão sucedâneas dos “…ranchos de triste memória do séc. XVIII e inícios do séc. XIX – o Rancho da Carqueja (1720-1721), O Rancho dos Doze (1737), o Novo Rancho ou Súcia (1803) ”.
Estes bandos não passavam de grupos de meliantes, agindo com profunda violência, à margem da lei e da moral, constituídos de estudantes ou participando outros disfarçados de tal[1], com o único intuito de se aproveitarem dos benefícios do foro académico, cuja lei própria era costumeiramente mais branda.
 Estranharão, alguns leitores, o uso do termo “Rancho”, pois que actualmente possui um significado que não associam a trupes.
Olhemos então para o termo e seus diversos significados e contextos:
 
Rancho1 grupo de pessoas reunidas para determinado fim, esp. Em marcha ou jornada <r. de peregrinos>; 2 grupo de trabalhadores contratados para qualquer serviço, esp. Agrícola <vindimadores>; 3 ETN grupo folclórico; 4 DNÇ ETN MÚS B, conjunto de pessoas que representam pastores e pastoras nas festas tradicionais de reis; 5 DNÇ MÚS RJ grupo de foliões que, no carnaval, dançam e cantam pelas ruas ao som de instrumentos de percussão, de sopor ou eléctricos; 6 MIL grupo de militares que fazem as suas refeições em comum; 6.1 MIL a alimentação fornecida / comida; 6.2 MIL local em que é servido o rancho; (…) 8 Comida para grande quantidade de pessoas; 9 acampamento onde se alojam os ranchos – ranchada; (…) 11 habitação precária, pobre, choça, choupana. (…)”[2]
 
Percebe-se, pelo que acima ilustrámos, que o termo “Rancho” é designativo de um grupo de pessoas associadas para um determinado propósito, havendo um misto de grupo de foliões com um cariz belicista e nómada. São pois vários destes grupos, constituídos por estudantes (e/ou não só), que irão ganhar fama pelos motivos menos dignos e expressar, num registo exacerbado, toda uma cultura de violência levada ao extremo, numa sociedade, também ela, nada pacífica.
O contexto da época era o de uma sociedade violenta e, a propósito, recuperamos o seguinte, que publicámos no artigo que dedicámos já ao “Foro Académico” (e que importará ler AQUI, para perceber melhor):
 
"A sociedade da época apresentava um elevado teor de violência e a vida estudantil não era excepção. Não admira, pois, que surjam na amostragem em estudo numerosas agressões físicas.
Os estudantes feriam mulheres, mas sobretudo homens, maioritariamente outros estudantes, fosse por que motivo fosse, até mesmo por acidente, recorrendo a diversos tipos de armas, desde simples paus e pedras a facas e punhais. Faziam-no de dia e de noite, sozinhos ou em bandos, deixando ou não sequelas físicas na vítima. Para além dos colegas, os estudantes agrediam outro tipo de pessoas, até mesmo mulheres. Agiam sozinhos ou em grupo. Faziam as clássicas emboscadas: "o forão esperar na Rua dos sapateiros da dita cydade e com armas ofensivas e defensivas como erão punhaes facas e paus lhe derão hua ferida na cabeça e outras pancadas pelo corpo".[3]
Assim aconteceu com um estudante, vítima de um grupo de que fazia parte Jorge Pinto, perdoado em 1621. Feriam de dia e de noite. O leque de motivos para as agressões era vasto, desde o alegadamente acidental até à troca de palavras."
 
Coimbra no séc. XVI (em baixo, ao centro, dois estudantes).

O grau de violência e ocorrência de desacatos e crimes, perpetrados ao abrigo do foro académico, levou a múltiplas publicações legislativas reitorais e do próprio governo da nação, visando regrar e conter os excessos estudantis e quaisquer outros protagonizados por futricas disfarçados de estudantes. Recordamos, uma vez mais que
 
 
 
“Houve épocas, sobretudo nos primeiros séculos, em que se matriculavam também pessoas alheias ao estudo, com vista apenas a gozarem do foro académico, como os boticários, arrieiros, artesãos, donos de pousadas e provedores de estudantes, etc., até a Coroa acabar com este abuso".[4]
 
Em 1674 uma lei proíbe o uso da capa pela cabeça, por se considerar que o “embuçamento” impede o fácil reconhecimento dos autores dos «graves excessos e atrocíssimos crimes» que então assolavam a cidade de Coimbra. Embora essa lei visasse especialmente os estudantes, o texto da lei indica que a proibição é extensiva a toda a gente:
 
 
“(...) nenhuma pessoa de qualquer qualidade ou estado que seja, assim estudantes como os que o não forem, possam pôr a capa pela cabeça, nem trazer barrete e todos usem chapéu.”[5]
 
 
 
E já antes, note-se, os Estatutos de 1431 continham disposições relativas à manutenção dos «bons costumes» dos estudantes. Posteriormente, os Estatutos Manuelinos reforçam e estendem disposições desta natureza, incluindo a proibição do porte de armas. Teófilo Braga[6] referia que, ao tempo da fundação da Universidade, à semelhança do que sucedia noutras universidades da época, e mesmo posteriormente, os estudantes seculares das universidades usavam espada para se distinguirem dos estudantes clérigos.
Como se percebe, se há algo que nunca fomos, de facto, foi um “país de brandos costumes” (como poderão AQUI verificar, em precioso artigo da Revista Visão), aliás bem sabemos que, nos primórdios, a constantes mudanças da Universidade entre Lisboa (onde inicialmente é fundada a Universidade em Portugal) e Coimbra tinham muito a ver com a reacção da população aos distúrbios constantes da populaça estudantil.

Segundo António M. Nunes, contrariamente ao que se possa pensar, esta violência ritualizada, e veementemente condenada desde o iluminismo, pouco ou nada se distinguia das troças com que os fidalgos mimoseavam os vilões e as raparigas do povo; das penalidades infamantes vigentes nos Forais e Ordenações até ao advento do Liberalismo; da defesa da honra entre rapazes de aldeias rivais; da exercitação da vingança privada nas comunidades rurais.
São disso exemplo as latadas aos recém-casados e nubentes viúvos; as cornetadas à porta das adúlteras; os chocarreiros testamentos da Serração da Velha e Queima do Judas; o deitar pulhas, os entrudos porcos com arremesso de cinzas, ovos podres e tripas; as pancadarias dos habilidosos manejadores de paus em feiras e romarias; os insultos acompanhados de murros, taponas, escarros, sinais obscenos, palmadas nas nádegas; a coroação e sermonário dos maridos cucos/cornos.
 
Em 1689, devido a um incidente mortal (um estudante mata um homem da vara do meirinho) é proibido uso de pistolas dispondo-se, igualmente, um conjunto de medidas punitivas específicas para os estudantes, como a expulsão definitiva da Universidade[7] para os alunos que as possuíssem ou simplesmente as tivessem em casa. Também se podia ler na lei que era condenado à perda de dois anos para os que usassem outras armas, “ainda que não fossem defesas”, cumulando estas penas com as penas previstas em leis gerais do Reino, "conforme às quais os prevaricadores deveriam “ser sentenciados"[8]
Estamos, de certo modo, perante grupos (os designados “Ranchos”) que, muitas vezes a pretexto de praxes (o termo correcto é “investidas”) aos caloiros se acometem contra a própria população, umas das razões pelas quais os estudantes e os futricas iniciarão um longo e conturbado período de hostil (e muitas vezes mortal) relacionamento.
 
Sobre estes famosos ranchos, diz-nos Maria Eduarda Cruzeiro[9]:
 
“Verifica-se, por outro lado, que os costumes relativos aos caloiros, que vêm a constituir, como vimos, o conteúdo quase exclusivo do termo praxe em sentido restrito, são designados por termos próprios.
Assim, investidas (a novatos) é o termo usado, pelo menos, desde inícios do século XVIII, quer em documentos oficiais, quer em escritos literários.
No texto da sentença de condenação de um estudante, chefe de um bando célebre pelo exagero das suas violências - o Rancho da Carqueja[10], é citada uma investida:
“Mostra-se outrossim que, entrando em casa de uns novatos cinco homens, quatro mascarados, era o quinto o réu sem máscara, e buscando positivamente a um novato (...), o mandaram despir nuy e lhe deram muitos açoites com umas disciplinas, de que correra sangue, e muita palmatoada, e lhe cortaram o cabelo rente pelo casco; (...)”[11]
 
 E continua, mais adiante:
 
“Ocasionados pelos mais variados pretextos, incluindo as investidas aos novatos, como atrás se viu, as desordens e crimes não deixaram de existir ao longo do século XVIII.
Os mais famosos são os do já citado Rancho da Carqueja, relatados no extenso texto da sentença de morte do estudante Jorge Aires, considerado o cabecilha mais responsável[12].
Logo após a prisão dos membros do Rancho, em Fevereiro de 1721, novos incidentes se verificam em meados de Março, o que leva à publicação da provisão régia de 4 de Abril de 1721, ressuscitando a aplicação das anteriores provisões cujos resultados não pareciam ter ido ao encontro das suas intenções morigeradoras.
Um romance histórico em torno do
Rancho da Carqueja, que pode ser lido AQUI
Pelo texto desta provisão é-nos dado ver como se comportavam os estudantes, andando «de dia e de noite com capotes por toda a parte, com espadas e outras armas debaixo do braço, e muito embuçados, e outros afectando assim com cabeleiras trazer a cara descoberta, obrando solturas e intimidando a toda a pessoa como é notório [...]»[13].
Pouco depois, novos sucessos são objecto de nova provisão (de 24 de Julho de 1721), indo-se nesta até à derrogação pontual do privilégio do foro privativo: «[...] sendo-me presente que na ocasião dos touros que houve no Mosteiro de S.ta Clara, [...] se mascararam alguns estudantes, que juntos foram em um dia insultar o juiz de fora e em outro ao corregedor da comarca, que, vendo o excesso dos ditos mascarados e intentando prendê-los, estes lhe resistiram com armas de fogo e lhe feriram um alcaide; e que, não obstante a resistência, o dito corregedor prendera nove dos mascarados, fui servido resolver que o corregedor tirasse logo uma exacta devassa, e que, sem embargo de os mascarados serem estudantes, não remetesse os presos nem as culpas ao conservador seu juiz privativo, derrogando por esta vez os privilégios dos ditos estudantes, como protector que sou da mesma Universidade, sem embargo das razões que em carta de 27 de Abril passado me representastes sobre esta matéria[...]»[14]
Apesar do castigo exemplar que foi o do chefe do Rancho da Carqueja, degolado a 20 de Junho de 1722, em Lisboa, com o complemento sinistro da exposição da cabeça em praça pública em Coimbra, há referência a um novo rancho em 1737, em provisão régia de 12 de Julho. Este rancho era composto por doze estudantes, «com clavinas, pistolas, manguais e outras semelhantes armas», que «andavam rondando as ruas [...] e, o que mais era, fazendo esperas a outros estudantes, que, levando-os a partes escuras, os obrigavam com violência a fazerem acções e actos torpes[15] tomando esta ousadia de não ter na Universidade inteiro cumprimento a lei novíssima que proibia as ditas armas, e de abuso de capuzes e carapuças de rebuço [...]»[16]
Era esta a situação tão vivamente criticada por Ribeiro Sanches e Luís António Verney. O primeiro não esconde a relação que vê entre esta vida dos estudantes e a decadência pedagógica e institucional em que a Universidade se encontrava, parecendo-lhe urgente uma completa reforma dos estudos e da disciplina.
Realizada a reforma em 1772[17], este estado de coisas não sofre, no entanto, uma radical transformação. D. Francisco de Lemos, o reitor-reformador, encarregado da vigilância na actualização dos novos Estatutos, apesar de referir a melhoria provocada por estes, nos primeiros tempos[18], não pode deixar de confessar que, passado algum tempo, se verificou uma recaída, à qual tentou obstar pedindo a aplicação de penas disciplinares,(…).”[19]
 
Pelo século XIX adentro, são inúmeros os casos de violência perpetrada por bandos de estudantes. Um dos grupos organizados mais violento era proveniente da República do Carmo, composta de estudantes que residiam na Sofia, no antigo colégio do Carmo, e deles se dizia que:

 
“Até de dia andavam armados de punhais, e cometeram vários crimes. No começo do ano lectivo de 1838- 1839 foi assassinado o Dr. Serafim, professor do Colégio das Artes; em 20 e 21 de Maio daquele ano houve facadas, tiros, arrombamentos, completa anarquia em toda a cidade. Um lente de Medicina, o Dr. Cesário Pereira, foi gravemente ferido com dois tiros, na noite de 30 de Junho de 1839; dois lentes de Filosofia, os drs. Pinto de Almeida e Pereira de Sena, foram insultados e ameaçados.
Em 1841, na noite de 26 de Dezembro, foi morto pela força pública, agredida, um dos da quadrilha. Esta desfez-se pouco depois, em Janeiro do ano seguinte.”[20]
 
Archeiros da UC, Sala dos Archeiros.
As últimas 2 figuras são a de um Bedel e a de um Guarda-Mor
 
 
Como sabemos, o “foro académico” é extinto em 1834[21], mas cedo se viu da necessidade de conferir à Universidade meios próprios para zelar pela disciplina, vigilância e defesa das instalações, corpo docente e discente.
Em 1839 é, pois, criada a Polícia Académica (Regulamento de 25/111839-1910) e o respectivo Regulamento Disciplinar.
Uma das primeiras incumbências deste corpo policial passa a ser o patrulhar da cidade, especialmente o perímetro da Alta (cidade universitária), bem como suster os desacatos provocados pelos estudantes









A Polícia Académica e civil nunca tiveram mãos a medir perante a brutalidade por vezes demonstrada pelos estudantes, alguns dos quais eram verdadeiros bandidos, mais importados numa vida dissoluta e de crime do que no estudo. Respondia, pois, muitas vezes com enorme firmeza:


 
“Na noite de 26/12/1841, uma patrulha do corpo de segurança fuzilou pelas costas  José Costas Lobos, terrível facínora estudante do 3º ano [pelas costas por estar em fuga][22].
 
Sabemos que, em 1854, o patrulhamento da cidade era organizado em 3 rondas, tendo os archeiros ordem para obrigarem os estudantes a recolherem a casa após o toque vespertino da “cabra[23]. Cada turno era assegurado por 6 soldados e um a dois archeiros[24]
Em 1855, por determinação de 12 de Julho, o espaço destinado pelo regulamento da polícia académica para o encarceramento dos estudantes prevaricadores é fixado no coro do Colégio de S. Francisco (também apelidado de Colégio de S. Boaventura[25]). 
Sabemos que, em 1858, vários “troupistas” foram hóspedes da prisão académica durante 8 dias, entre os quais os bem conhecidos Antero de Quental e Alberto Sampaio.
A prisão académica no colégio de boaventura
Várias proibições, condenações e prisões requentaram um profundo ódio à Polícia Académica, à sua prisão e ao regulamento disciplinador, ao qual erradamente os estudantes (e até a população) continuavam a chamar de “foro académico”[26] e que só terminará com a sua extinção, pelo decreto de 23 de Outubro de 1910 que mandou “passar para as justiças ordinárias todos os casos que, até agora,  eram regulados pelo foro académico  da mesma Universidade”[27]. São múltiplas e continuas as manifestações (protestos, cartas, artigos em periódicos, petições…) contra a mesma, pedindo a sua abolição.
 Avançando alguns anos, temos ainda o relato de que
“(…)no dia 3 de Maio de 1873, pelas 8 da noite, junto do Castelo, foi cortado o cabelo, à força, a um estudante. Este, logo que se viu livre dos agressores, atirou contra o grupo uma pedra, que feriu mortalmente um deles.”[28]
 





Das Troupes às Trupes



 
“Trupe, ou troupe, à francesa, como ainda se escrevia no 1.º quartel deste século, era um bando embuçado (capa pela cabeça, torcida atrás, com o nariz escondido e só com os olhos descobertos) e armado de moca, colher de pau, tesoura que, depois das 6 horas da tarde, andava pelas ruas de Coimbra em busca de caloiros e bichos [alunos do liceu] para lhes cortar o cabelo ou lhes dar bôlas[29].”[30]
 
Nesta definição de Lamy, verificamos que o termo diz respeito, pois, a um grupo equiparado a uma milícia (natureza para-militar) e que se caracteriza por agir sob anonimato.

Trupe - O Gorro, Jornal dos Alumnos do Lyceu de Coimbra,
1º Anno, 4º número, 26 de Dezembro 1909, p.5
A razão desse anonimato?
Muito simples: impedir a identificação dos componentes do grupo perante as autoridades (polícia, archeiros), a população e as próprias vítimas. Com efeito, sendo grande parte das práticas das trupes de natureza ilegal (por vezes criminal), perante a lei (ou regulamento disciplinar), havia a precaução de evitar denúncias ou identificação de qualquer membro do grupo.
Daí deriva a ideia, hoje observada[31], dos trupistas terem de trajar de modo a esconder quaisquer partes brancas, permitindo, assim, fazer com que o grupo dê menos nas vistas na penumbra da noite[32].
 
O termo “Troupe” (e depois “Trupe”) parece ter sido adoptado já na segunda metade do séc. XIX, muito por influência, supomos, militar, nomeadamente pelas experiências dos Batalhões Académicos[33]. Contudo, praticamente só em Coimbra o termo era especialmente atribuído aos grupos estudantis que praxavam caloiros (e na senda dos “Ranchos”, surge também associado a “grupo de sequazes”), dado que, fora dessa geografia, era comumente utilizado para designar outros tipos de grupos ou, então, com alguma sinonímia ao termo “Estudantina”, ou seja, grupo de estudantes “tout court”.
Caloiro sob trupe (foto diurna, pois era para publicar
 em Bilhete Postal Ilustrado)
in Illustração Portugueza, II Série, Nº 302,
de 04 Dezembro 1911,  pp.711
(Hemeroteca Municipal de Lisboa).
 
Trupe1 conjunto de artistas, comediantes, de pessoas que actuam em conjunto <t. de malabaristas>; 2 p. ext. companhia de teatro; 3 pej. grupo de sequazes; BEI.LIT grupo de estudantes de Coimbra.
* ETIM fr. Troupe (1178) grupo de animais, (C. 1220) reunião fortuita ou organizada de um número expressivo de indivíduos, deslocando-se juntos ou livrando-se à mesma actividade, (1477) reunião de homens de armas, constituindo uma formação pronta par ao combate, (1662) conjunto de comediantes ou de artistas que actuam em conjunto, (1862) força militar ou força pública encarregada de manter ou restabelecer a ordem. Der. regr. de troupeau – rebanho (…).”[34]
 
Nota1: da palavra francesa troupe (no sentido militar “Les troupes” – as tropas), deriva a nossa palavra “tropa”, por síncope da vogal U.
Nota2: interessante a aproximação entre Rancho e Trupe, como significando, ambos, grupo de foliões, neste caso estudantis, no Carnaval, como se demonstra:
“As tunas nascem em Espanha em fins do séc. xix, derivando das trupes carnavalescas que pretendiam recriar a antiga prática universitária das bigornias”[35]
“A Tuna Estudiantina, trupe de estudantes que costuma percorrer as ruas da nossa cidade nos dias de Carnaval, deu início aos ensaios (…)”.[36]
“Pormenor curioso – que não se sabe se ligado, de alguma forma, aos componentes da tuna, durante o seu breve interregno – é o facto de, em Viseu, ter havido um espectáculo dado em honra de uma «Troupe Académica de Coimbra»[37], com várias récitas que encheram o Grémio local, e com os estudantes de Viseu e a população (com muitos populares a afluir da vilas circunvizinhas) a «não se pouparem em sacrifícios para serem agradáveis à trupe de Coimbra.[38]
(…)
“Na capital, temos notícia da existência de diversas tunas e estudantinas, a par com outros grupos similares, como é o caso, por exemplo, da Troupe[39] Freitas Gazul, caracterizada como «bando de rapazes novos, todos músicos habilíssimos», cujos membros se trajavam como os tunos espanhóis, segundo legenda sob estampa de Bordalo Pinheiro na revista O António Maria[40]. Este grupo, diga‑se em abono da verdade, gozava de enorme prestígio. Com efeito, são várias as referências a trupes, algumas com assumido profissionalismo, em tudo semelhantes – por vezes até na indumentária – às estudiantinas espanholas, como que constituindo uma espécie homóloga das comparsas carnavalescas do país vizinho.” [41]
 
Do Modus Operandi das Trupes.
 
 
Como agiam as trupes de antanho?
Nada como mergulhar numa viagem ao passado e percorrer os muitos testemunhos de quem viveu, assistiu e narrou essas experiências.
 Diamantino Calisto refere:

“ Em 1900, livrei-me, muito milagrosamente, de ser apanhado por uma troupe.
Uma trupe - Coimbra -P Borges, 1911 BNP, PI-5882-P
- O que era uma troupe?
- Era um grupo de estudantes, embuçados nas capas para não serem conhecidos, composto ordinariamente por “semiputos”, “pés de banco” e “veteranos”, que, à noite, depois do toque da “cabra”, andavam a ver se algum “caloiros” ou “bicho” aparecia pelas ruas, castigando aqueles que apanhavam sem protecção, com uma colher de pau que fazia de palmatória, e com corte do cabelo.
O pior era o corte de cabelo, não só por causa da figura com que se ficava, de cabelo cortado à escovinha, mas também porque os “Lentes” ficavam tendo-os [aos rapados] na conta de “Cábulas”.
(…)
Eram 10 horas da noite, ia eu para casa, na rua Oriental de Montarroio, quando vejo dirigir-se a mim uma troupe.
Olhei em volta e, felizmente, vi duas senhoras, que soube depois serem mãe e filha.
Dei um salto, meti-me no meio delas, e cumprimentei-as em voz alta para ser ouvido pelos da troupe; disse-lhes a seguir que me desculpassem o atrevimento e pedi-lhes licença para as acompanhar até casa a fim de assim me salvar da troupe, que já vinha a seguir-me.
Como as senhoras e as pessoas de respeitabilidade podiam proteger, lá me livrei de “colheradas” e do corte de cabelo”.[42]
 
Diz-nos Rui Salinas Calado que:

“Por mero acaso nunca me fizeram uma troupe, nem apanhei, nem dei o meu canelão à Porta Férrea.
Livrei, protegendo-os, alguns caloiros e uma noite ia a passar no Largo de Santa-Cruz quando vi um grupo de estudantes embuçados, esperando um caloiro aflito, que estava na pastelaria do velho Marques.
O caloiro, muito bom rapaz, era filho do General T… de uma distintíssima família da Beira Alta, que eu conhecia de várias festas; corri, pois, a protegê-lo, invocando a minha qualidade, suficiente de veterano.
Para lhe fazer, porém, uma partida, fui à cozinha, convenci o Marques a emprestar-me uma colher de pau ainda suja de marmelada, cheguei-me ao caloiro, pedi-lhe a mão, esfreguei nela a colher cheia de doce e mandei imperativamente: agora cheire!
O rapaz, hoje, um ilustre oficial de engenharia, convencido que não era propriamente de doce que a colher estava suja, não teve coragem para obedecer, e lá foi comigo, bem protegido, passando incólume pelo meio dos troupistas de mão estendida e afastada do corpo, como se estivesse empestada, e creio que ficou sempre convencido que a substância mole e espessa da colher, em vez de marmelada, era pelo contrário, uma substância muito pouco desejável.”[43]
 
Um outro testemunho assaz interessante, refere-se às tropelias do “Pad’Zé”, figura mítica na Coimbra de 1895 a 1904, narradas por um colega seu:

 
“Quando eu vivia na Ladeira do Seminário com o José de Almada, ao lado da casa do Bacelar e do José Perestrelo, organisámos algumas vezes uma troupe terrível.
Simulacro de um rapanço e de uma ida às unhas ao caloiro.
(os estudantes posando para Bilhete Postal Ilustrado) ca. 1911
Projectávamos assaltar os viandantes que transitassem a deshoras pelos logares mas solitários das cercanias. Corríamos embuçados, armados de espadas e pistolas, punhais e caveiras, ao longo da alamêda que ladeia o Jardim Botânico, pela rua Tomar, pela Estrada da Beira… O Pad’Zé ia sempre de cara descoberta. Em vez de capa pela cabeça, uma toalha turca, amarrada em forma de turbante, compunha-lhe o distintivo de chefe. Era o primeiro a avançar resoluto, quando comandava.
Algumas vítimas, julgando-se em perigo, fugiam apavoradas; outras preparavam-se para a lucta, dispondo-se a vender cara a sua resistência ou rendição. Por fim a gargalhada lutherana do Pad, seguida do nosso riso, era a única fusilaria que estrondeava, quer se pusessem em fuga, quer tentassem heroicamente bater-se connosco.
Uma noite, perto do seminário, defronte do caminho que vai `às Ursulinas, cahimos ameaçadores sôbre alguém que parou nobremente e o ataque. Essa figura venerável viu-se rodeada de espadas e pistolas, apontadas ao peito, aos braços, e às costas. A caveira, saindo de uma capa negra, rasgava a alvura do seu riso macabro em frente do rosto do caminhante. O Pad autoritário interrogou:
- Quem é? Donde vem? Para onde vai?
- Sou o Bispo de Bragança, respondeu o prelado com serenidade.
- V. ex.ª póde seguir, ordenou cortesmente o chefe, enquanto nós abríamos alas áquêle português de lei que, imperturbável, sem a mais simples contracção nervosa, nos desarmara com a sua placidez.
As espadas, os punhais e as pistolas eram de facto inofensivas, sucata ferrugenta, incapaz de contundir qualquer tecido animal; mas quem fosse surpreendido à noite, na escuridão, por aquêle encontro, é que não podia ajuizar de chofre do estado do armamento.”[44]
 
Trindade Coelho narra-nos, no seu In Ilo Tempore (1902), que
 
“A brincadeira das troupes é muito estúpida, e eu em poucas entrei. A mim cortou-me uma o cabelo à Porta de Minerva, uma vez que eu ia para casa ao anoitecer e não levava lunetas porque se me tinham partido esse dia no Seminário, numa refrega com os formigões (seminaristas) – e por isso só a vi quando lhe estava nas unhas, e o tesourão em cima da minha cabeça e à roda de mim a malta silenciosa dos embuçados, todos de moca para que eu não resistisse
Trupe em 1926.
Não resisti; mas como quer que conhecesse por acaso o que me cortou o cabelo, logo me deram o empurrão para me ir embora, apanhando-me a distância e digo-lhes assim, debaixo de um chuveiro de mocas:
- Raça de pulhas! Quartanistas que fazem troupes em vez de proteger! Pois rogo a praga ao que me esmodou[45]: - “que fique reprovado no fim do ano!” (…)
Depois de nos cortarem o cabelo, a gente tinha de ir ao barbeiro essa noite, protegido por algum quartanista ou quintanista para se livrar das palmotoadas (castigo das troupes aos já esmonados[46]) e ainda davas seis vinténs ao barbeiro para acabar a operação! E até o Fígaro se ria de nós, e a troça à cabeça pelada durava na Universidade uns poucos de dias, - e um lente do 1º ano, o Bernardo de Albuquerque, marcava os esmonados na caderneta e reprovava-os no fim do ano! Comigo não falhou a regra.[47]
 
Pese embora esta última referência (e que Diamantino Calisto também refere) a um lente que tomou a tonsura da trupe como sinal de infracção ao estudo (presumindo que o novato estava fora de horas na rua, quando deveria estar a estudar),secundando-a, desta vez, num castigo formal, não temos como afirmar que todos os professores fizessem o mesmo. Mas se esses o fizeram, temos de convir, que é porque tal prática, mesmo que, porventura, à revelia do regulamento em vigor, na prática, era ainda comungada pelo corpo docente e vista como parte essencial do processo educativo e formativo.

 Seja como for, comprova-se que ainda estava profundamente enraizada a matriz secular do recolher pedagógico dos alunos e aceite a sua necessidade para a formação e disciplina dos jovens, por parte dos lentes, especialmente quando se conheciam as suas desbragadas formas de ocupar os tempos livres, nas suas surtidas à baixa (jogo, tabernas, casa de alterne…..), que já muitos faziam à futrica (desde 1834, com a abolição da obrigatoriedade do traje fora da Universidade).
 Branquinho da Fonseca (formado em direito em 1930) define este tipo de grupo da seguinte maneira:

 
“Uma trupe embuçada à sua maneira, a capa sobre a cabeça, fazendo gorro, torcida atrás e traçada por cima do nariz, deixando espreitar só os olhos. Viam-se as grandes colheres de pau e as bengalas penduradas debaixo das capas”[48]

Note-se o pormenor curioso do uso de bengalas, referido pelo autor.
 
As Trupes sucedâneas da Polícia Académica?
 
 
Como pudemos evidenciar, as “troupes” eram, na verdade, sucedâneas dos “Ranchos” e também elas fugiam da Polícia Académica, camuflando-se os seus membros o mais que podiam, com recurso à capa pela cabeça (“embuçamento”) e procurando não serem notadas durante as suas deambulações pela cidade.
Não há pois como dizer que têm origem na Polícia Académica, se existiram ambas (e não uma depois da outra), nem sentido faz, tendo em conta que sabemos que as trupes procuravam agir, precisamente, à revelia da polícia, escondendo-se e fugindo desta, mal a viam.

Convirá ainda referir que o recolher obrigatório e o policiamento em torno do mesmo, pro parte da Polícia Académica, visava não propriamente garantir o estudo dos alunos, mas sobretudo evitar que causassem desacatos na baixa, junto dos populares. Com efeito, rixas, problemas em casas de alterne, desavenças e perturbação da ordem pública eram frequentes quando os estudantes iam gastar tempo nas tabernas, no comércio e junto de certas senhoras de vida "duvidosa" (para não falar dos "corredores de saias" que punham em causa a honra de muitos maridos), sobretudo quando a paciência dos comerciantes se esgotava por causa fiados nunca saldados, roubos e calotes.
Portanto, dizer que o recolher era para promover o estudo, é mais no plano do do "fica bonito dizer", mas as razões eram muito mais mundanas.

 Mas de onde vem essa ideia que associa trupes à polícia? Com efeito, e como dizia António Aleixo, Para a mentira ser segura e atingir profundidade, deve trazer à mistura qualquer coisa de verdade”.
Neste caso, existe um fundo de lógica, embora tenha sido deturpado, a ponto de se confundir o rabo com as calças.
Com efeito, e segundo Carlos Caiado[49]
 
 
“Nos finais do séc. XIX (1883), findaram as rondas da Polícia Académica. Os estudantes “em trupe”, resolveram substituir a Polícia Académica nas suas rondas à cidade, após o toque do sino da Torre da Universidade.”
 

Trupe praxando um caloiro
In Estudantes de Coimbra e a sua Boémia, Ilustração,
Ano 6, Nº 141, de 01 Novembro de 1931, p.22
(Hemeroteca Municipal de Lisboa).
O que sabemos é que, a partir de 1883, existe uma redução de competências e privilégios, por pressão que a sociedade vinha exercendo contra o fim daquilo a que ela chamava de “foro académico (que, como vimos, afinal não existia já desde 1834), ou seja, existia uma cada vez menor tolerância aos desacatos estudantis, pois que ainda muitos dos mesmos eram resolvidos internamente (à luz do regulamento disciplinar da Universidade), considerando-se, por exemplo, que muitas infracções mereciam penas mais duras do que o encarceramento na prisão académica (que, na verdade, nessa altura, era algo já pouco duro – os presos recebiam visitas, víveres, e até estudantinas vinham tocar à janela dos presos – e era antes visto como um feito heróico [50]).
Em finais do séc. XIX, como vimos, a Polícia Académica restringe as suas rondas e patrulhas ao perímetro da cidade Universitária, propriamente dita, espaço aliás onde ainda era obrigatório o uso de uniforme docente e discente.
Tal medida permitiu aos estudantes uma maior liberdade de acção, multiplicando-se as trupes que, a partir dessa altura, deixavam de estar tão vigiadas e “perseguidas”, pese embora não a salvo da polícia civil, convém sublinhar.
 
O Papel "Pedagógico" das Trupes
 
 
Um dos muitos argumentos usados para justificar a existência das trupes era o seu paternalista cuidado em zelar pelo estudo dos caloiros, procurando garantir que estes não se habituavam demasiado cedo a “maus vícios”. Assim, alegavam que, na falta de uma autoridade que impusesse disciplina, alguém (eles) a teriam de garantir.
Como é bom de ver, tal argumento é um verdadeiro contra-senso, pois, como vimos acima, se, por um lado, a sociedade pedia o fim do “foro académico”, por outro os estudantes também sempre estiveram contra a Polícia e o Regulamento Disciplinar.
Na verdade, os estudantes usavam o mesmíssimo argumento que sempre tinham condenado, a pretexto de poderem mais livremente praxar os novatos.
O que lhe terá conferindo um certo ascendente e áurea de legitimação foi o facto de alguns docentes, como anteriormente explicámos, terem, muitas vezes, secundado e apoiado este tipo de auto-regulação, ao penalizarem os alunos que apareciam nas aulas rapados, ou seja, promovendo o poder e autoridade dos alunos mais velhos, na ideia de que estariam, de facto, interessados em que os colegas mais novos fossem estudiosos e fossem afastados de quaisquer tentações “pecaminosas” ou contrárias à ideia de um estudante sério, estudioso e responsável.
 
Caloiro alvo de praxe (no que parece ser um rapanço)
In "Estudiantes de Coimbra", Revista Estampa
Ano 9, nº 437, 30 Maio 1936,.Madrid. p.3
Contudo, e contrariamente à Polícia Académica, que exercia o seu ministério repressivo sobre toda a comunidade estudantil, as Trupes passaram apenas a exercer uma forma mais circunscrita de repressão, desta feita sobre aqueles que acabavam de chegar e não sobre outros estudantes mais velhos, também eles a “vadiar” pela cidade.
Mantinha-se, e garantia-se, também deste modo, a necessidade de afirmação corporativa e moralista que presidia à cultura estudantil herdada dos séculos passados e, como já o dissemos, muitas vezes com a conivência dos lentes.

 
Aliás, se atentarmos nos relatos da actividade das trupes nessa época, e até 1910, não vislumbramos quaisquer intenções pedagógicas que assistiam ao Regulamento da Polícia Académica ou quaisquer evidências da tentativa de imposição de “bons costumes”, senão a continuação de práticas violentas e repressivas, bem mais, muitas vezes, do que a exercida pela polícia e autoridades.
Em nenhum dos documentos investigados encontrámos evidências de um intuito pedagógico por detrás da existência das trupes, senão aquele que seria entendido, porventura erroneamente, por alguns lentes.
 Com efeito, poucos anos antes da instauração da república, em 1908, um estudante (Henrique Pereira Ribeiros) era violentamente agredido com moca, por uma trupe que perseguia caloiro, na Alta de Coimbra.
E mesmo após 1910, os incidentes graves, ligados a trupes, não desaparecem totalmente, embora se tornem muito mais pontuais. Com efeito, Lamy (1990, p. 815) relata-nos que, em 1917, “a 17/11, à noite, o caloiro Luís Figueiredo, defendendo-se de uma trupe, atingiu mortalmente com um tiro de pistola o aluno do 4.º ano do Liceu António Gonçalves Barata.”
 Percebemos, pois, que o argumento avançado de que as trupes vieram substituir a polícia académica, no intuito de zelar pelos bons costumes dos novatos, e evitar que se “desencaminhem”, não passa, afinal, disso mesmo: uma desculpa.
Seja como for, de tanto o argumento foi repetido que acabou por se incrustar no ideário colectivo estudantil, e que códigos de praxe sucessivamente replicaram como verdade insofismável.
 
Tipologia das Trupes
 

Trupes Ordinárias
 
 A partir do final da 1ª república, assistimos a uma certa institucionalização das práticas estudantis, nomeadamente das trupes, conferindo a estas uma mais disciplinada organização e enquadramento.
 
As trupes ordinárias eram desempenhadas por quartanistas, putos e semi-putos, com um número não inferior a três doutores. O grau de puto era a primeira dignidade que podia desempenhar a função de chefe de trupe, o responsável dos actos de patrulhamento. Até ao natal, porém, só dois putos podiam ser investidos em chefes de trupe; após as férias de Natal, um puto simplesmente podia arvorar em chefe, visto usar das honras de quartanista.
A partir de 27 de Maio, os caloiros tinham a faculdade de organizarem, contra os bichos [alunos do liceu] trupes que não podiam percorrer a cidade por um espaço de tempo superior a uma hora, em geral das 7 às 8 horas, sob pena de bôlas por parte das trupes superiores[51].
Im meo tempore[52], as trupes ordinárias erma grupos de três ou mais estudantes sem limite máximo, subordinados a um ou mais chefes, que tinham de zelar pela observância da praxe, no espaço de tempo que medeia entre o 3º toque vespertino da cabra e o 1º toque matutino do dia seguinte. Só podiam constituir-se após o 2º toque vespertino da cabra.
A trupe tinha de estar legitimamente chefiada (por dois putos da Faculdades diferentes, um dos quais, pelo menos, de Medicina ou Direito,ou por quartanistas ou dotores de hierarquia superior;”[53]
 
Para além da constituição, as trupes passaram a apenas se poderem formar em locais previamente determinados (Porta Férrea, porta da AAC ou porta de uma qualquer reconhecida República) e passando a ritualizar tal, usando pequenos rituais (como dar 3 batidas com moca ou colher na porta) e fórmulas (como o bem conhecido “In nomem soleníssima praxis trupe formata est”).
Tinham os seus componentes de estar de capa traçada (sem mostrar os colarinhos), possuir (o seu chefe) as insígnias da praxe e não transportarem pasta de praxe, livros ou outros quaisquer objectos (nem mesmo insígnias de praxe – só permitidas ao chefe).


Trupe em 1940
Um dos aspectos curiosos das trupes ordinárias, era a possibilidade de com elas ir um caloiro (deste que de livre vontade), que servia de “bufo”, ajudando a trupe a melhor identificar os caloiros. Esse caloiro trupista, a quem era proibido falar (apenas podia apontar), designava-se por “cão de fila” e era normalmente rapado, caso a trupe não apanhasse qualquer caloiro nessa noite (uma forma de o incentivar, certamente, a ser bom delator).

Quando um caloiro fosse apanhado, era-lhe perguntado o que ela era pela praxe (em português, e nunca em latim macarrónico – só reservado a doutores). Mediante a resposta, o inquirido era, então, colocado como estando “debaixo de trupe”, sendo rodeado por todos os membros e sujeito a sanções (que tanto podiam ir do mero gozo, passando pelas colheradas e rapanço).
Existiam igualmente, segundo o Praxes de Coimbra (1925), trupes de quintanistas, de República ou do Conselho das Repúblicas:
 
 
 
“..as trupes de quintanistas eram temporárias, em média três por semana, havendo-as sempre ao Sábado, e só respeitavam as três protecções invioláveis: de senhora, de militar e de sangue (pai ou irmão).”[54]
 
Mais tarde, o Código de 1957, determina que estas se formam na Porta Férrea, apenas com fitados ao tempo e podendo levar consigo um semi-puto a servir de “cão de fila”, e anunciando a sua saída com uma mortalha colada na Porta Férrea, na qual se podia ler, em latim macarrónico, “Trupe quintanistorum formata est”.
Já as trupes de República eram formadas pelos moradores da mesma, caloiros inclusive (caso os houvesse), e para a qual não havia protecção, conquanto, secundum praxis, a casa tivesse ficado fechada à chave e vazia.
As Trupes do Conselho de Repúblicas eram formadas por todos os repúblicos que tivessem estado presentes na reunião do Conselho das Repúblicas e também não havia protecção para as mesmas.
O 1º Código da Praxe inventa igualmente o denominado “desdobramento da trupe”, com a mesma a ser fraccionada para perseguir vários caloiros. No acto de desdobramento, o chefe dessa nova trupe tinha apenas de proferir a fórmula “In nomen soleníssima praxis, trupe desdobrata est”.
 
Trupes Extraordinárias e Contra-Trupes
 
Quanto às denominadas Trupes Extraordinárias, criadas no âmbito do código de 1957, eram as que, obedecendo às características das demais se propunham, contudo e excepcionalmente, executar durante o dia a sentença de algum tribunal de república ou decisão do Conselho de Veteranos, criadas após o 3º toque matutino da cabra e findando a sua vigência com a denominada “hora do caloiro” (o 1º toque vespertino da cabra), hora a partir da qual reinavam as trupes ordinárias.
Trupe em foto de António Bracons in A Académica, Edições ASA, 1995.
(foto facultada por cortesia de João Baeta)
 Já as “contra-trupes” eram formadas por estudantes na praxe que, contudo, discordavam com algum preceito da mesma e se propunham desfazer outras trupes. Eram constituídas tanto por estudantes trajados como à futrica, liceais ou universitários. Diz-nos Lamy (1990, p. 480-81) que várias se formaram (no ano de 1928 e entre 1934 e 1936), originando cenas de pancadaria entre trupes e contra-trupes. Também trupes de bichos (alunos do liceu) foram formadas contra as trupes universitárias, recordando que os liceais eram igualmente perseguidos pelos trupistas (e até por trupes de caloiros, que se podiam forma 1 vez ao ano, durante 1 hora, como vimos).
Naturalmente que colheres e mocas foram usadas com muito menos meiguice e simbolismo nessas insurreições e manifestações, provando que, ainda na década de 1930, as trupes cometiam muitos excessos.
 
Praxis
 
As trupes subordinavam-se entre si segundo a hierarquia dos seus componentes ou do seu líder, tendo surgido da prática do direito de reconhecimento, e de revista às trupes, em finais do séc. XIX, ainda quando estas actuavam embuçadas, no intuito de verificar se da trupe revistada não fazia parte nenhum caloiro.
Parecerá estranho, mas o facto é que, nessa altura, muitos dos membros de uma trupe podiam não se conhecer (até porque, depois de formada, muitos a ela aderiam ao vê-la passar, bastando os estudantes embuçarem-se e pedirem para a integrar). Obviamente que só um quintanista podia exercer tais prerrogativas:
 
O quintanista podia exigir que o chefe da troupe mandasse desembuçar aqueles que quisesse conhecer.
O reconhecimento por troupe era mais cerimonioso.
Quando se encontravam duas trupes, os chefes destacavam-se, cruzavam as mocas e depois de se darem a conhecer, apertavam-se as mãos.
Em seguida, cada chefe indicava os trupistas que queria conhecer, desejo que era satisfeito, apenas a chefes, pois, por vezes, os membros de uma mesma trupe não se conheciam[55].
Pelas Praxe de Coimbra (1925), todo o chefe de trupe tinha o direito de reconhecer qualquer trupe que encontrasse, e cada trupe podia levar debaixo das suas ordens dois caloiros, não podendo estes ser incomodados por uma segunda trupe.”[56]
 
Já no tempo do Mata Carochas (na obra In meo tempore) apenas veteranos possuíam direito de passar revista às trupes e sancioná-las, se caso disso, excepto se a trupe fosse, também ela, chefiada por um veterano, que interpunha “palavra de honra” em como a trupe estava “conforme”.
Tonsura a um caloiro, em desenho mural
na Real República Rás-Teparta
 O Código de Praxe de Coimbra introduz igualmente uma norma bem conhecida: a de que as trupes não se podem fazer transportar em viaturas motorizadas, salvo se fossem de transporte colectivo; determinação para a qual não encontrámos qualquer explicação.
Tonsura de um caloiro por elementos de uma trupe.
Pintura mural de finais da década de 1950
que existiu na extinta República dos Paxás
Também nessa altura se elevam alguns mitos à letra de lei protocolar, como a obrigatoriedade da trupe usar capa traçada, considerando-se desfeita caso a capa de algum elemento se destraçasse, apesar de tal nunca ter sido prática antes. Dessa invenção, algo artificial, derivará outra, porventura ainda amais estranha (ou mesmo descabida): que para praxar é preciso traçar a capa.
Já no que concerne à aplicação de sanções, sabemos que elas acabarão reduzidas, a um certo simbolismo, e longe das violências infligidas noutros tempos. Passam, pois, pela colherada nas unhas e pela tonsura, a qual tanto pode ser simbólica como chegar à modalidade “Ad Libitum”.
Claro está, e convém recordar, que uma trupe apenas podia ter um caloiro sob trupe, não servindo a mesma como uma forma organizada de mobilização, coisa contrárias à própria tradição.
As Trupes civilizam-se
 
A partir da década de 1920/30, as trupes alteram significativamente o seu modus procendi.
Os Trupes embuçadas praticamente desaparecem, até porque tal é não apenas ilegal, como visto como acto de cobardia.
Os castigos infligidos reduzem-se em grau de violência e ritualizam-se, até à sua cristalização, por meio da edição do 1º Código da Praxe, em 1957, o qual passa a regulamentar e supervisionar a actividade das Trupes.
 
Se, antes, as trupes se constituíam de forma algo espontânea e sem grandes ritualizações, a partir de 1957 são estipulados um vasto conjunto de regras (algumas artificiais – como o modo e local onde se formam) que visam dar alguma organização a esses grupos e garantir algum ascendente sobre as mesmas por parte do recém-criado Conselho de Veteranos.
 
Trupes Urbi et Orbi
 
Com a massificação do ensino superior e criação de novos centros universitários, e na falta de tradições e precedente nos mesmos (ou pelo menos ignorando, muitas vezes, a existência de uma praxis ligada a Coimbra, por intermédio do liceu local), esses novéis burgos académicos adoptaram o código de Coimbra, com um “corte e costura” mais ou menos cego, na exacta medida da ignorância dos costureiros e alfaiates de ocasião.
Também em muitos casos se copiaram as Trupes e se decalcaram os artigos a elas referente, no código conimbricense.
Diremos, para não nos alongarmos, que, grosso modo, foi uma adopção pouco pertinente.

Trupe - Colecção " Tradições Académicas de Coimbra" (1984)
de um conjunto de 5 medalhas do escultor Cabral Antunes

Na verdade, e porque a Tradição é um processo de continuidades e rupturas, estamos em crer que as trupes não fazem sentido nos tempos que correm, sobretudo fora de Coimbra.
O moralismo paternalistas de castigar jovens, em razão de um recolher obrigatório, é baseado numa falácia. Com efeito, nunca foi propósito dos mais velhos zelar pelo estudo dos mais novos. Aproveitaram-se, isso sim, para criar mais uma forma de castigar caloiros e exercitar o desejo de fazer valer um ascendente de autoritarismo policial (expurgando, porventura, frustrações de uma educação severa em casa).
A ideia subjacente às trupes releva mais de lei marcial em regime ditatorial do que outra coisa. Com a desculpa de ocupar o espaço deixado vago pela polícia académica, desenhou-se uma cultura ardilosa: criar um couto de caça, sabendo que os caloiros sucumbem facilmente à tentação de sair à noite, como qualquer jovem Um direito que têm como cidadãos, mas que é lhes recusado pelos mais velhos, de radar preparado ao virar da esquina.
 
TRUPE (desenho de Santos Figueira, SF), in Roteiro de Coimbra, edição de 1945,
Secção de Turismo da Câmara Municipal de Coimbra.
(Cortesia de João Baeta)




TRUPE (Desenho de João Carlos [Celestino Gomes] João Carlos [Celestino Gomes] e
António Victorino), in Trovas de Coimbra
- Quadras da Tradição, da Saudade e do Amor,
de A. Gonçalves Cunha. Coimbra. Livraria Cunha, 1931, p.89.
(Cortesia de João Baeta)



 
 
Reconhecemos que, em Coimbra, mesmo que questionável a própria razão de ser, especialmente nos dias que correm e numa sociedade de direito, as trupes constituem, contudo, uma longa tradição que atravessou séculos e se tornou parte da cultura estudantil local (mesmo que, na maioria das vezes, altamente reprovável e condenável.

As trupes, em abono da verdade, as trupes agiram sempre à revelia dos direitos  e liberdades, mas sobretudo desde que Portugal é um Estado de Direito democrático. E embora estejamos longe dos abusos de antanho e perante um fenómeno cuja acção é, cada vez mais, uma representação simbólica (que releva mais de romancismo histórico do que expressão de uma sociedade efectivamente dada a comportamentos como os que, ao longo do artigo, ilustrámos), as trupes não deixam de ser grupos em objectiva colisão com a Constituição do País e, por isso, de natureza e prática ilegais (atentando à liberdade de circulação, atentando à integridade, bem como aos direitos académicos da condição de estudante).
 
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Para quem buscava algo mais sobre a origem e história das Trupes, esperamos ter conseguido responder ao essencial.
 

[1] Em Lamy (1990), é feita referência (pp. 796-797) que, em 1854, “o temido salteador João Brandão envergou uma capa e batina para, assim disfarçado, perseguir os seus inimigos.”
[2] Instituto António Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Temas e Debates, Lisboa, T. III, Merr‑Zzz, p. 3600.
[3] BRAGA, Paulo Drumond - Aspectos do quotidiano Universitário no período Filipino - Estudos em Homenagem a Luís António de Oliveira Ramos. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, p. 313-320.
[4] RODRÍGUEZ Cruz, Águeda M. – Vida Estudiantil en la Hispanidad de Ayer, citado por “QVID TUNAE? A Tuna Estudantil em Portugal”. Euedito, Porto 2012, p.48
[5] Seguem-se as penas de degredo, acumuladas, no caso dos estudantes, com a de expulsão da Universidade. (Ver 0 Conimbricense, n.º 2221, de 7 de Novembro de 1868.)
[6] BRAGA, Teófilo, História da Universidade de Coimbra nas Suas Relações com a Instrução Pública Portugueza. Por ordem e na Typographia da Academia Real das Sciencias, 1892-1902. 4 vols.
[7] Na prática, segundo Mário Brandão, Estudos Vários, II, 1974) essa exclusão dita “perpétua” era, na prática, por 3 anos.
[8] O Conimbricense, n.° 2221, de 7 de Novembro de 1868
[9] CRUZEIRO, Maria Eduarda, Costumes estudantis de Coimbra no século XIX tradição e conservação institucional. Análise Social, Vol. XV (60), 1979 - 4º, p. 805
[10] Ver António Francisco Barata, O Rancho da Carqueja, s. 1., s. e. e s . d.; Joaquim Martins de Carvalho, Apontamentos para a História Contemporânea, Coimbra,1868. Este rancho é igualmente referido num texto da Macarrónea (Palito Métrico), p. 166. Ribeiro Sanches, nos seus «Apontamentos para fundar-se hua Universidade Real [...]», que se seguem à exposição sobre o Método para Aprender a Estudar a Medicina. Por ordem da Universidade, 1959, também o menciona: «[...] quem se lembra ainda das atrozes investidas, dos bárbaros excessos que cometeu o Rancho da Carqueja nos anos de 1719 e 1720 [...]» (p. 114.)
[11] Citado por T. Braga, História da Universidade de Coimbra nas Suas Relações com a Instrução Pública Portugueza. Por ordem e na Typographia da Academia Real das Sciencias, 1892-1902. 4 vols., vol. in, p. 162.
[12] O Conimbricense, n.os 2234 e 2235, de 22 e 26 de Dezembro de 1868
[13] T. Braga, op. cit., vol. iii, pp. 164-166.
[14] Id., ibid., pp. 163-164.
[15] Mª Eduarda Cruzeiro nota que Eram certamente as trupes de caça aos caloiros, o que fazia parte das investidas.”.
[16] O Conimbricense, n.° 2236, de 29 de Dezembro de 1868.
[17] A reforma de 1772 estabeleceu o regime de frequência obrigatória às aulas e a chamada à lição, a sabatina, entre outros exercícios escolares. Daí surgiram os truques de jogar de porta, isto é, entrar na aula durante a chamada para não apanhar falta, sair depois disfarçadamente atrás do bedel; e o de meter farpa, isto é, pedir dispensa da lição ao lente com um bilhete alegando doença ou outro motivo aceitável.
[18] Refere a autora (em nota de rodapé) que “Os Estatutos da reforma pombalina introduziram uma modificação importante, com algumas possibilidades de repercutir favoravelmente sobre a melhoria dos costumes, a qual foi de instituir exercícios nas aulas e exames no fim de cada ano dos cursos, ao contrário do que antes sucedia, em que só havia exames no fim, para obtenção dos graus académicos.
Não deixa, por outro lado, de ser um indicador de mudança o facto de a frequência anterior à reforma rondar os 3000 alunos, sendo apenas de 800 nos primeiros tempos depois dela.”
[19] CRUZEIRO, Maria Eduarda, Op. Cit. , pp. 816-817.
[20] O Conimbricense, 1878, nº 3:199, em artigo sobre a longa tradição violenta dos estudantes.
[21] Portarias de 23/5 (criação) e de 20/6 (homologação dos 29 artigos reguladores). Os verdeais sucedem aos archeiros e a obrigatoriedade do porte da capa e batina fica restrita ao Paço das Escolas e à zona intra-muralhas. Também são extintos 22 colégios de Coimbra, que serviam de residência a muitos estudantes.
[22] LAMY, Op. Cit., p. 794.
[23] A Cabra é um sino de média dimensão, dos 3 existentes na Torre da UC, voltado aos Gerais. É tangido vespertinamente, entre as 18:00 e as 18:30h, anunciando as aulas do dia seguinte, e matutinamente, das 7.30 às 8.00h, a lembrar o começo das aulas. Já lhe foi roubado o badalo pelo menos duas vezes para que não houvesse aulas. O actual sino não é o original, pois o anterior rachou e foi substituído (chegou a estar depositado no Museu Académico pela década de 1950, ainda no Colégio dos Grilos, mas depois desapareceu misteriosamente até hoje). Foi levada uma cópia fiel dele para o Brasil, pelo TEUC, em 1951. O sineiro da UC é designado na gíria por Cabreiro, competindo-lhe repicar e dobrar a Cabra de acordo com o protocolo.
[24] Cfr. GAMA, Arnaldo, A caldeira de Pero Botelho, 1866. Livraria Civilização Editora. Porto, 1964, citado por Lamy (1990).
[25] Actual Instituto de Antropologia.
[26] Como no lo é explicado em NUNES, António - Identidade(s) e moda, Percursos contemporâneos da capa e batina e das insígnias dos conimbricenses. Bubok, 2013, p.83
[27] Note-se que até no decreto o erro se repete na confusão entre regulamento da polícia e foro. Essa associação errónea ainda hoje se verifica, por exemplo, no nome dado à “batina” que, na verdade, é uma casaca.
[28] O Conimbricense, 1877, nº 3:161, referindo-se, uma vez mais, ao passado violento dos bandos estudantis
[29] “Dar bôlas” significa dar com a palmatória ou régua (reguadas). Estamos, pois, a falar da palmatoada.
[30] LAMY, Alberto Sousa, A Academia de Coimbra, 1537-1990, História, Praxe, Boémia e Estudo, Partidas e Piadas, Organismos Académicos. Lisboa, Rei dos Livros, 2ª edição, 1990,p. 473
[31] Regulamentada no 1º Código de Praxe de Coimbra e replicada em todos os demais.
[32] É, contudo, descabida tal obrigatoriedade, quando está de dia.
[33] Batalhão Académico de 1808, para guerra peninsular - contra as invasões francesas; Batalhão de Voluntários Académicos de 1826, durante a regência da infanta D. Isabel Maria, em apoio às forças liberais que combatiam a forte facção absolutista e sob a proteção do então general João Carlos de Saldanha; Batalhão Académico de 1828, com orientação liberal, para se unir às forças que pretendiam lutar contra as tropas miguelistas; o Batalhão Académico de 1846, durante a chamada Patuleia, secundando o espírito liberal da Junta do Porto, e combatendo, agora, o reaccionarismo do duque de Saldanha.
[34] Instituto António Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Temas e Debates, Lisboa, T. III, Merr‑Zzz, p. 3084.
[35] COELHO, Eduardo, SILVA, Jean-Pierre, SOUSA, João Paulo e TAVARES, Ricardo – QVID TVNAE? A Tuna Estudantil em Portugal, Euedito, 2011, p. 168
[36] Crónica Local [em linha]. In El Fomento, 24 de Janeiro de 1888, p. 3. [Consult. 10 Set. 2009]. Disponível na Hemeroteca Virtual do Museo Internacional del Estudiante, citado em “QVID TVNAE”.
[37] O Viriato de Viseu. XXXVIII Ano, n.º 3.770, 5 de Fevereiro de 1892, p. 3.
[38] COELHO, Eduardo, SILVA, Jean-Pierre, SOUSA, João Paulo e TAVARES, Ricardo – QVID TVNAE? A Tuna Estudantil em Portugal, Euedito, 2011, p. 175
[39] O vocábulo troupe (mais tarde naturalizado como «trupe») é ainda aqui usado como francesismo e era utilizado como designação alternativa a «tuna».
[40] 23 de Fevereiro de 1883.
[41] Op. Cit. p. 191
[42] CALISTO, Diamantino, Costumes Académicos de Antanho – 1898/1950, 3 Milhar, Imprensa Moderna Lda, Porto, 1950.
[43] CALADO, R. Salinas, Memórias de um estudante de Direito, Prefaciado por João de Barros, Coimbra Editora Lda, 1942, p. 256
[44] NORONHA, D. Thomaz, De Capa e Batina – O PAD-ZÉ, Ditos e partidas do grande boémio, J. Rodrigues & C.ª, Lisboa, 1928, pp.113-115.
[45] Esmodar = tonsurar (cortar o cabelo). A tonsura era a designação dada para o corte do pelo das ovelhas, assim como o corte circular (na careca) aplicado aos noviços, na sua entrada para o mosteiro. Antipodalmente, no lugar da careca dos noviços, os prelados bispos usavam o solidéu (de origem judaica, que os judeus ainda hoje usam).
[46] Os caloiros rapados eram castigados por terem sido apanhados por uma trupe (ou seja terem infringido a lei). Era um duplo castigo.
[47] COELHO, Trindade, In Illo Tempore, Estudantes, lentes e futricas, 6ª Edição, Portugália Editora, 1955, pp. 176-177
[48] FONSECA, Branquinhos, Porta de Minerva (romance), 2ª edição, p. 209
[49] In Antologia do Fado de Coimbra, Tomo I, 1986, p. 10, também citado em Lamy (1990).
[50] De notar que muitas Tunas, há uns anos atrás, sonhavam poder ser presas e passar a noite na cadeia, como forma de provar o seu cariz “andariego” e atestar da sua valia tuneril.
[51] Se a chefia competia a dois putos o número de elementos seria de quatro (C.P.A.C., art.º 92º).
[52] VASCONCELLOS, Antão – Memória do Mata-Carochas de 1906
[53] LAMY, Op. Cit., p. 474-475.
[54] Idem.
[55] João Eloy, Boémia Coimbrã, 87-88.
[56] LAMY, Op. Cit., p. 478-479.

7 comentários:

Filipe Antunes disse...

Por acaso já tinha lido sobre os "ranchos" na análise social de Maria Eduarda Cruzeiro sobre os costumes estudantis de Coimbra do séc. XIX.
Eles realmente eram considerados uns bandidos...
Pode verificar que afinal existiu imensos crimes cometidos e não apenas aquela que surge a dizer que "No séc. XVIII a morte de um caloiro fez com que em 1727 o Rei D. João V proibisse a mesma
interditando totalmente qualquer "investida" feita por veteranos..." pelos vistos, esta é apenas uma gota no oceano...
outra parte interessante a qual já me tinha apercebido é o "cão da fila" que é um insentivo para o caloiro ser um BUFO para não ser rapado! O que é de facto um bom exemplo modelo para futuros profissionais licenciados! Dizem que a praxe dá ensinamentos e prapara a pessoa para a vida e etc! É mera desculpa... visto que insentivam à obediencia, a bufar... e para mim mais grave é premiar o caloiro de ser um "bom caloiro" aquele que obedece, e vais às "praxes" todas, que olha sempre para o chão e etc...

Num tribunal de praxe, apenas chamam aqueles que se "portam mal"..ou seja, no fundo promovem e dão visibilidade ao caloiro que se porta mal ou o que dá nas vistas (até o "bom caloiro" é chamado a ser julgado, tal como eu fui!
visto que aqueles que passam despercebidos na praxe nem sequer são chamados e apanham uma grande seca, estão de quatro, de olhos vendados durante 4 horas de um tribunal...

uma vez li o código da praxe de 1957 e pelo que entendi foi que eles não caçavam só caloiros ou alunos do liceu... qualquer semi-puto ou puto podia ser caçado por uma trupe por estar fora do seu horário de permitido... julgo que era até à meia noite!

De resto é um excelente trabalho,

Parabéns

Jorge disse...

Vamos lá ver se entendi...então antes dos anos 30 as trupes atuavam de cara coberta, mantendo o anonimato ao bom estilo de cobardia...da década 30 ao luto académico de 1969 atuavam atuavam como verdadeiros homens com a cara descoberta.. e a partir dos anos 80 voltaram a usar a técnica cobarde como se fazia antes dos anos 30 ao bom estilo do palito métrico...

Ouço muita gente a dizer que a praxe evoluiu... mas como é que evoluiu, se regrediu aos bom estilo do palito métrico?
Estão com receio de serem reconhecidos? Mas promove-se a cobardia? Não conseguem ser assertivos e assumirem a sua responsabilidade?

Os orgãos de praxe, que na verdade são as que formam as trupes, tem medo de serem reconhecidos?
Digo isto porque, quem melhor que um grupo de praxe de 13 ou 15 elementos que se conhecem bem entre si, podendo assim formar uma trupe e manter o silêncio!?
Sempre que ouço falar de trupes lembro-me sempre das comissões de praxe e conselho de veteranos...

Uma vez tive debaixo de uma trupe e consegui reconher alguns elementos...
Cuidado..... porque antigamente não havia tatuagens nos pulsos (arregaçar as mangas para não se ver o branco pode infelizmente revelar a pessoa -.-' "modernices"), pulseiras de namoro e afins...podem pôr uma nota a dizer: não só o branco pode estar visível, como se deve esconder as tatuagens dos pulsos, não andar com pulseiras de namoros, alterar a voz, e usar óculos de sol à noite...

Upsss..revelei o segredo das comissões de praxe, peço desculpa :(

Não tenham medo de "evoluir", mais vale mostrar a cara e assumirem quem sois vós!

WB disse...

Caro Jorge,

Não há como comprovar inequivocamente que as trupes que, actualmente, actuam embuçadas (e não serão tantas assim, creio)o farão mais por "teatro" e revivalismo bacôco, no intuito de incutir temor nos caloiros, do que por medo de não serem reconhecidas. Poderei estar errado, contudo, na interpretação.

Que praxar de cara tapada é uma cobardia, é ponto assente, além de que ilegal.
Resta saber o que motiva essa gente para tal.

Anónimo disse...

De afirmar que são as ditas comissões (na minha escola e nas outras poderá não ser diferente) porque na cidade onde estudo existe 5 trupes registadas e são 5 polos de estudo... parece muita coincidência, mas visto que na altura que era caloiro consegui identificar alguns elementos, apenas refleti..as minhas palavras valem o que vale.
A idéia da trupe é "amansar" o caloiro... na altura pensava demasiado para um caloiro e fui apanhado por uma misteriosamente por uma...

Jorge

Unknown disse...

Boa tarde

Refere no texto que algumas regras impostas às trupes pelo CP de 1957 surgiram com a publicação do mesmo. Existia um fundamento para tanta regra no que toca ao funcionamento da trupes? Com isto quero dizer, se já eram regra antes e este CP se limitou a escrevê-las ou aparecem como uma tentativa de controlar a operação das trupes e até dificulta-la.

Gostaria de lhe colocar outra questão. Qual era então o motivo que levava uma trupe a sair à rua? Apanhar caloiros para gozar e sancionar nos casos em que a Praxe o permitia? Ou os doutores eram também o alvo? Era comum um doutor ou veterano ser colocado "debaixo de trupe"? Se sim, de que maneira estas podiam atuar? Apenas aplicar sanção quando a Praxe o previa ou poderia haver também algum tipo de gozo do mesmo modo que se fazia a um caloiro? (tudo isto no contexto de um passado recente, séc. XX, e não no contexto violento do séc. XIX)

E isto leva-me a outra questão, se calhar não tão adequada ao tema das trupes.
O CP de 1957 diz "Só os caloiros podem ser mobilizados e gozados e só os doutores os podem mobilizar e gozar.
Qual a legitimidade deste artigo? O gozo deve ser exclusivo do caloiro? Ou um doutor/veterano pode mobilizar e gozar doutor/veterano abaixo de si?
É legitimo que um quartanista uso um segundanista quase como moço de recados? Que aconteçam coisas entre doutores como obrigar a andar de capa traçada porque alguém mais velho anda? Andar sem gravata para obrigar doutores a traçar a capa? Mandar doutores ir buscar cafés, lanches... só porque não lhes apetece? Um doutor lembra-se que quer estar em posições como o famoso "quatro" e todos os doutores abaixo dele façam o mesmo? Proibir uso de gorro porque os mais velhos não querem usar? Dizer que um doutor não pode comparecer num qualquer evento académico ou não o pode fazer trajado? Dizer que as mangas da camisa de usam assim e assado porque alguém mais velho diz que é assim que deve ser? Entre outras que nem quis memorizar.
Há alguma legitimidade para alguém, pelo número das suas matriculas impor a sua vontade sobre outra e justificar isso como Praxe? Qual é então o objectivo da hierarquia na Praxe? Fazer cumprir a Praxe e as suas regras ou permitir alguma espécie de poder/autoridade de um doutor sobre outro para "tudo" o que lhe vier à cabeça?

Peço desculpa por me ter alongado no comentário.
Cumprimetos.

WB disse...

Caro Tiago,

Vou responder-lhe por parte, agradecendo o seu contacto, desde já.

- Antes do código de 57, não existia nem 1/3 parte das regras que ele implementou.
Eles são uma tentativa de controle das trupes, com muita invenção para encher chouriços e burocratizar as mesmas.

- As trupes, tal qual hoje as conhecemos, desde que os estudantes decidiram vestir o papel paternalista de polícias dos mais novos, foram criadas unicamente para perseguir caloiros, estendendo o tempo das praxes noite adentro.
Para isso, pegaram no "recolher obrigatório" que existira durante tantos anos, mas deturpando-o e aplicando-o apenas aos caloiros.
Nenhum doutor ou veterano podia ser praxado por trupes. A excepção era quanto a alguns locais onde o Dux ou o lente não deveria estar a determinada hora.

- O gozo é uma relação exclusiva entre o doutor (ou veterano) e o caloiro. Portanto, não existe gozo, quando exercido por um doutor a outro colega que não é caloiro. O que temos é uma infracção grave.
O que difere é a aplicação de uma sanção, quando um doutor comete um erro. Sanção essa que se aplica com a colher nas unhas, mas não se trata de gozo.
Portanto, nenhum doutor ou veterano pode mobilizar outros colegas que não sejam caloiros.

- Nenhum estudante pode valer-se da sua hierarquia para pretender dar ordens à hierarquia inferior.
A hierarquia apenas vale no que respeita ao exercício da praxe a caloiros (onde quem é mais velho tem ascendente sobre quem é mais novo).
Assim, nenhum doutor pode mandar traçar capas, meter de 4, mandar buscar cafés, proibir uso de gorro, proibir participação em eventos ou de usar traje.
Qualquer uma dessas situações é anti-Paxe e passível de sanção e de queixa ao organismo de Praxe.
A hierarquia da Praxe, como referi, vale perante os caloiros. Para o resto, tem validade como forma de transversalmente se exigir o respeito pelos mais velhos. Uma coisa é respeitar um pedido, uma observação, um conselho, e outra bem diferente é ter de aceitar ordens que mais não são do que abuso de poder puro e simples.
A hierarquia da Praxe não é a hierarquia militar. Nunca foi.

Raul Nobre disse...

Fui caloiro em Coimbra no ano de 1959. Como antigo estudante do liceu da cidade da Guarda, estava familiarizado com a Praxe Académica que aí existia, cópia da de Coimbra, mas cumprida com grande rigor. Por esse motivo, adaptei-me facilmente tendo passado pelas habituais sanções: mobilizações, sessão de unhas e rapanço. Uma noite fui apanhado por uma Truoe de República (Ay-ó-Linda) quando ia na Rua Ferreira Borges, altas horas do noite. Fui rapado junto ao Arco de Almedina e pedi para me entregarem o cabelo (que conservo como recordação, já lá vão 60 anos...). Terminado o ano lectivo, vi-me obrigado a vir para Lisboa para poder continuar a estudar. No entanto, ainda me matriculei no segundo ano (semi-puto) para poder participar nalgumas trupes, antes de pedir transferência para Lisboa.
(E-mail actual: raulnobre@sapo.pt)