segunda-feira, novembro 07, 2011

Notas aos Relógios na Praxe

O relógio de bolso e o relógio de pulso na Praxe

 Não há como negá-lo: grassa uma enorme confusão e um enorme equívoco quanto ao uso de relógio de pulso com traje académico.
Muito se ouve dizer, nos meios estudantis, nos meios praxísticos, que não se usa relógio de pulso quando trajado.
Nunca ninguém, contudo, conseguiu dar uma cabal explicação e justificação para esse facto. Nenhum código que preconiza tal tonteria sequer explica o porquê dessa determinação.

Esse mito, criado sabe-se lá bem quando e onde (entre os anos 80 e 90 do séc. XX), foi replicado por sucessivas criações de novos códigos de praxe, nas emergentes e recém-criadas instituições de ensino superior, que mais não eram do que cópia de outro(s) que se adaptava(m) e reformulava(m) – e que outros copiavam e alteravam…e assim por diante.
O facto é que essa ideia, tornada lei proibitiva em muitos códigos, não passa de um enorme equívoco que não tem qualquer suporte histórico que o valide.
Todos eles (os que dizem que é proibido o relógio de pulso) permitem, apenas, o uso de relógio de bolso (vulgo cebolas), supostamente por ser a tradição histórica entre os estudantes de antigamente; supostamente porque nunca o relógio de pulso foi de praxe, era usado, era tradicionalmente utilizado.

Pois nada mais falso.
Este é mais um dos muitos mitos, das muitas mentiras e ficções que enchem páginas e páginas de códigos ditos “de Praxe”.
E vejam que até estudantes de Coimbra e Porto encontramos com essa ideia errónea, quando nunca o código de Coimbra, nem mesmo o projecto de código do Porto (de Balau e Soromenho), alguma vez, proibiram o relógio de pulso.
De Praxe não é nenhum relógio, como nunca o foi historicamente.
De Praxe, então, é qualquer relógio, seja de pulso ou de bolso, de ponteiros ou digital, de marca ou comprado nos chineses.


O que sabemos, historicamente?

 O relógio de pulso aparece na 2ª metade do séc. XIX, com várias empresas a reclamarem para si o ónus da invenção, como é o caso da empresa Patek Philippe, no fim do século XIX com rápida difusão, a qual, segundo consta, se deve, igualmente, ao famoso Alberto Santos Dumont que, em idos de 1904, pediu ao seu amigo, o famoso joalheiro Louis-François Cartier, que lhe desenhasse um relógio adequado aos rigores e necessidades dos aviadores, e que viria a ser o 1º relógio de pulso masculino (pois femininos já existiam).

Dada a enorme fama que gozava, foi, de imediato, imitado, popularizando-se o uso do relógio no pulso, passando a ser ícone de “estar na moda” e, logo, entrando nos adereços imprescindíveis da toilette masculina, a começar pelos da alta sociedade.

Note-se, a título de curiosidade, que o relógio de pulso se torna referência social para diferenciar o lado esquerdo do direito, dizendo a etiqueta que “o lado esquerdo é o do braço onde colocamos o relógio.”

 Sabemos, igualmente que, em Portugal, o relógio se populariza muito rapidamente a partir de 1914, como aliás em toda a Europa, por impulsão da I Guerra Mundial, pois os soldados precisavam de um meio prático de saberem as horas.
Um artigo publicado na revista "Sábado" (nº 334 de 23 a 29 de Setembro de 2010, p. 52-68), sobre "O dia-a-dia em Portugal há 100 anos", do historiador Rui Ramos, confirma (p. 60) que " O relógio de pulso se tornou popular entre os jovens em 1914".

Assim, a rapaziada rapidamente teve acesso a um “gadjet” bem mais barato e apetecível, bem mais prático e na moda, substituindo, rapidamente, os dispendiosos relógio de bolso (que não estavam ao alcance de todas as bolsas e eram reservados à idade adulta – muitas vezes passados de pais para filhos, normalmente ao mais velho, em jeito de herança, quando estes se emancipavam e “substituíam” seus pais no “comando” da família).

 Relógio de Bolso? Só para alguns.

 É, pois, natural que, até mesmo em Coimbra, Porto ou Lisboa, assim se verificasse essa mudança entre os estudantes.

 De realçar que afirmar que era prática generalizada os estudantes usarem relógio de bolso (que é o que supõem, mal, os códigos de praxe, numa espécie de revivalismo histórico romanceado) é falacioso. Não apenas por ser objecto dispendioso, mas porque a larga maioria dos estudantes nem posses teriam para ter um seu – mas porque, para terem horas, podiam sempre recorrer ao rebater da “Cabra[1]” ou de qualquer outro sino que, do alto das torres das igrejas, iam dando as horas (as “matinas”, as “ave-marias” pelas quais o povo organizava a sua vida no campo ou na cidade).

O relógio de bolso era, de facto, usado pelos estudantes até à década de 40-50, e António Nunes diz que "O relógio de bolso ou “cebola”, em ouro e prata, com ou sem símbolos, com e sem monogramas, é um objecto de prestígio tradicionalmente usado pelos estudantes de Coimbra do sexo masculino" , mas, mesmo assim, não o era pela maioria, tendo sido gradualmente substituído pelo de pulso (esse sim bem mais generalizado).
Estranha-se, assim, que os muitos praxistas que defendem (e defendem mal, por ignorância) que o traje foi criado para esbater as diferenças sociais (bem sabemos que tal é falso), sejam, muitas vezes, os mesmos que dizem ser proibido o relógio de pulso para se usar o de bolso – quando o relógio de bolso, nesse contexto, é, até, sinal de riquismo e, logo, discriminatório (se visto desse prisma).

O meu amigo Zé Veloso, cujo belíssimo artigo dedicado às Latadas o N&M reproduziu, diz, a esse propósito, que “(…) só uma sociedade de abastança e desperdício como a de hoje se pode dar ao novo riquismo de adquirir um relógio de bolso (quando muitos nem relógio têm e usam o telemóvel) para usar meia dúzia de dias, que é o tempo que muitos hoje vestem a capa e batina.”

Uma coisa é inegável: o relógio de bolso desde sempre está ligado a uma imagem iconográfica da alta aristocracia, dos mais abastados (burgueses, clérigos…), ou como peça de valor inestimável que só aparecia nos trajos domingueiros da plebe masculina.

Eduardo Coelho diz-nos, sobre o assunto:

"...a ostentação do relógio de bolso na viragem do séc. XIX era uma declaração política da burguesia republicana - tal como o bigode, por contraposição às barbas, preferida pela nobreza (ou com aspirações a...)
Outros
símbolos eram o chapéu de coco e a casaca.
Não podemos esquecer que a moda das sociedades secretas anarquistas, maçónicas - libertárias, de uma forma geral - assolou a comunidade estudantil de Coimbra e, em muito maior medida, a do Porto, cujas propensões livre-pensadoras encontravam expressão muito mais declarada num meio burguês como o do Porto (cf, por ex., a revolta dos sargentos de 31 de Janeiro).
Que se vejam inúmeras fotos de académicos de 189... sempre de relógio de bolso, entendo, por 2 razões: a raridade do relógio de pulso e a afirmação política, por um lado, e a ostentação de riqueza - as correntes dos relógios não seriam propriamente de latão.
Além disso, o relógio de pulso não se via. Na mentalidade do burguês, de que serve gastar dinheiro em algo que não se vê nem dá para esfregar na cara do vizinho?
Se essa gente soubesse história... Perceberia que o relógio de bolso ( a corrente do relógio) é muito mais um sinal exterior de riqueza (porque se vê) do que o relógio de pulso ( que não se vê).
Na Tuna de Arentim, Braga, nos anos 40, um dos elementos comprou um relógio de pulso. Mandou o alfaiate subir a manga esquerda do casaco para que, ao tocar viola, todos pudessem ver a maravilha - era o primeiro das redondezas. Esta história é verídica.".


De onde vem a questão da proibição?

 O historiador, e investigador, António M. Nunes, autor do reputado blogue Virtual Memories, diz que, e citando, “A interdição do uso do relógio de pulso é uma regra de etiqueta própria da grande casaca preta civil de abas de grilo, muito usada por chefes de estado, cantores de ópera, membros de grandes orquestras, ilusionistas. O porte da casaca obedece a normas muito rigorosas, que constam habitualmente dos manuais de cerimonial e protocolo. Por extrapolação, alguns estudantes oriundos das classes populares e da média burguesia em busca de afirmação social importaram para o mundo das tradições académicas preceitos do cerimonial de Estado.”.

Não estou em crer que fosse essa a razão entre os estudantes, pois a proibição nasce a partir da década de 80-90 do século XX, pela mão de algum saudosista que, como está bem de ver, pouco ou nada perceberia de protocolo, de história ou mesmo de tradição académica.

 Não deixa de ser verdade que, em momento de gala, de cerimonial, manda a etiqueta que não se use relógio de pulso. António Nunes sublinha que tal é “desaconselhado quando se envergam vestes de gala sejam elas masculinas ou femininas.”. Mas, nessas mesmas circunstância, também o de bolso não se permite.

Ora, em quantas situações o Traje Académico é usado em momento de gala ou cerimonial, de facto (julgamento e baptismo do caloiro, latada, cortejo da queima, entre outros, não assumem essa dimensão)?

Ora, exceptuando uma Oração de Sapiência, uma Missa de Finalistas, uma Entrega de Diplomas, um Chá Dançante (Baile de Gala), considerando que sejam os momentos de maior gala e solenidade……. poucas serão as ocasiões onde o relógio tenha de sair do pulso (ou do bolso do colete, no caso da "cebola").

Na larga maioria das vezes em que os estudantes trajam não o fazem nesse contexto, daí não haver qualquer fundamento para proibir o relógio de pulso.

Aliás, disse-me António Nunes que “Pela praxe conimbricense, não há nada que proíba o porte de relógio de pulso e quem o vier proibir será por desconhecimento.”, a que acrescentamos que também o não é pela praxe do Porto, como nunca o foi, até finais de 1980 e inícios dos 90, em nenhuma outra academia.

 Ao que parece, a proibição virá de uma interpretação deturpada de algum testemunho pessoal, do ideário construído em torno das imagens de época retratadas em tantos e tantos filmes, no fundo, uma espécie de febre do passado, a relembrar o gosto dos historiadores de finais do séc. XIX e inícios do XX, na sua adulação pelo medieval, pelo antigo (o mesmo que levou tanta gente a dizer, erradamente, que as Tunas eram uma tradição de 6 séculos).


Qual usar?

 O facto é que, goste-se ou não, essa febre pelo relógio de bolso em detrimento do de pulso, que tanto código apregoa, mais não é do que mero snobismo, quando imposto.

Esteticamente é bonito, não podemos negar. Quem o quiser usar, pois que o faça, mas não se queira é tolher o entendimento e vir com argumentos sem qualquer fundamento, a quererem proibir o relógio de pulso e a elevar as qualidades histórico-praxísticas (inexistentes) da “cebola”.

Não há nenhum motivo de natureza tradicional ou histórica que, em Praxe, determine coisa alguma.

Usou-se o relógio de bolso, tal como, depois, e de forma muito mais generalizada (e em maior número) o relógio de pulso.

Note-se que, até à data, ainda não encontrei qualquer documento fotográfico de época, que evidenciasse o uso corrente do relógio de bolso; aliás, todas as fotos que observei (abarcando clichés desde o séc. XIX), é difícil vislumbrar estudantes com relógio de bolso (um ou outro, apenas), prova de que o uso não era generalizado (se bem que, e em abono da verdade, quando devidamente trajado, seja difícil ver o mesmo, quando se está a posar para a máquina).

Alguns exemplos:

1907:
























1908:





























1909:




















1912:














1923:



















1927:













1936:
















 Inquirindo o ilustre Zé Veloso, também ele um investigador destas matérias, o mesmo me disse que, e passo a citar, “não tenho dúvida de que o meu pai, nos anos 30, usava a capa e batina com o único relógio que tinha, que era um relógio de bolso, já que os de pulso não eram correntes naquela época

Assim como não tenho qualquer dúvida de que no meu tempo de Coimbra - anos 50 (liceu) e 60 - só se usava relógio de pulso... porque o relógio de bolso tinha caído em desuso e só era usado por homens maduros ou velhos. Falo também pela Academia do Porto, onde estive integrado de 66 a 69.”


Parece, pois, evidente, que o relógio de pulso era usualmente utilizado pelos estudantes, já nas décadas de 50 e seguintes, em contraposição ao relógio de bolso, entretanto caído em desuso.

Note-se, também, este testemunho elucidativo:

“Cheguei à Estação Velha, um quase descampado, já com muita noite caída sobre mim e o mundo. A folhinha marcava o dia 15 de Outubro de 1960: os ponteiros do relógio de pulso que minha Avó me oferecera pelo meu 19.º aniversário, ainda não tinham iniciado a ladeira que sobe até à meia-noite (…)” Cristóvão de Aguiar, Escritor, In Corpo de delito na ilha de Coimbra, http://www.mundoacoriano.com/index.php?mode=noticias&action=printMe&id=92)




Concluindo:


Se quiséssemos ser puristas, e numa toada mais ortodoxa, diríamos que nenhum aparelho medidor de tempo deveria ser usado com traje académico, pois quando este surgiu, nomeadamente a capa e batina, os relógios de bolso não eram usados (quanto mais de pulso ou os telemóveis).

Mas se, como muitos propalam, e bem, a Praxe deve, gradual e pertinentemente, acompanhar os tempos, então é preciso olhar para a evolução social e perceber, quanto a este assunto de relógios, que, em momento algum, faz sentido ignorar o relógio de pulso sob o pretexto analéptico de reavivar o de bolso.

Ambos são legítimos, conquanto sejam úteis.



Use-se, pois, relógio, seja ele de bolso ou de pulso, pois se há algo que a Praxe nunca preconizou foi que ela prejudicasse o estudo e a pontualidade às aulas, daí que impedir o uso de um instrumento desta natureza nem lógica sequer tem.

Cabe a cada estudante escolher o que mais lhe apraz.

Obviamente que, no meio de tudo isto, existe a questão estética, daí que deva existir o devido bom senso na escolha do relógio de pulso a usar, para que seja discreto e sóbrio (em harmonia com o traje). Na falta desse discernimento, mais vale, mesmo, é não usar e recorrer ao telemóvel.



[1] O relógio da Torre da Universidade andou avariado na década de 1860, e em Abril de 1867 esteve em Coimbra um relojoeiro francês com a missão expressa de consertar o maquinismo. As horas eram tangidas na mesma pelo sineiro da Universidade (cabreiro), mas manualmente, o que obrigada o pobre empregado a subir o escadão de caracol com frequência. O arranjo do relógio teve repercussão mediática na cidade e originou a polca O Tocar da Cabra, de Francisco Lopes Lima de Macedo, datada de 1867, segundo informa A. Nunes no blogue de Octávio Sérgio, Guitarra de Coimbra (Parte II),  artigo de 2 de Novembro de 2008 (em linha: http://guitarrasdecoimbra.blogspot.com/search?q=rel%C3%B3gio)

Nota: Um agradecimento penhorado pelos informes e prestabilidade do Zé Veloso e António Nunes.

quinta-feira, novembro 03, 2011

Notas à Festa das Latas e Latadas

Embora o N&M tenha já dado, em tempos, um pequeno "lamiré" sobre as Latadas (ver AQUI), julgo que, para um conhecimento mais profundo e contextualizado, nada como reproduzir os 2 artigos publicados no blogue Penedo d@ Saudade, pelo amigo Zé Veloso, também estudioso destas matérias, que retrata magistralmente a evolução desta festivade e a sua gradual mutação.

"DAS LATADAS À FESTA DAS LATAS

(Parte I)

As latadas do final do ano lectivo. A emancipação dos caloiros

Daqui a pouco, quando passar da meia-noite de quarta para quinta, começará no largo da Sé Nova a serenata que irá marcar o início da Festa das Latas, cujo ponto alto coincidirá com o corteja da Latada, na próxima terça-feira. Nos próximos dias o Queimódromo encher-se-á de malta para assistir aos concertos de um cartaz que, venha quem vier, será sempre um bom pretexto para manter a animação durante esta espécie de mini-Queima de Outono.
Quem tenha passado por Coimbra nas décadas de 50/60 e não mais tenha tido contacto com a vida académica da cidade, deverá abrir uma boca de espanto perante a notícia que acabo de dar: – Festa das Latas em lugar de Latada? Serenata? Noites no Queimódromo? Cortejo único? Fará depois um encolher de ombros e dirá que «a tradição já não é o que era». Nada de mais errado! As praxes académicas de Coimbra sempre evoluíram ao longo dos séculos, o que me leva antes a dizer que «a tradição nunca foi o que foi»!
Aliás, é esta capacidade de adaptação a novas realidades – Bolonha, aumento do número de Faculdades, presença maioritária das raparigas, novos contextos socioculturais… – que tem permitido às praxes manter-se vivas, já que são vivenciadas e não apenas representadas. Custa-me ver alterações gratuitas da tradição, sem causa que as justifique que não seja a ignorância. Mas quando as adaptações aos novos tempos são feitas de forma inteligente e no respeito pelo passado… só tenho de aplaudir.
As Latadas – ou Festas das Latas, como agora são chamadas, retomando uma terminologia já antes utilizada por Trindade Coelho – são, porventura, dentro das diversas manifestações praxísticas de Coimbra, as que mais transformações sofreram, tanto na forma, como no significado/objectivo. Vamos a isso:
Trindade Coelho (In Illo Tempore, 1902) conta que, no seu tempo (1880-1885), as coisas se passavam assim: … as aulas de Direito fechavam-se nesse dia, e à noite, como era da tradição, a rapaziada tinha de sair pelas ruas de Coimbra – naquela extraordinária inferneira chamada a Festa das Latas, em que cada um, incluindo os novatos (equivalente aos caloiros de hoje), que nesse dia ficam “emancipados” e já podem sair de noite sem protecção, arrasta atrás de si as latas que pôde ir juntando durante o ano, ou as que comprou na «feira das latas» aos garotos, que vendem uma banheira velha por um pataco e três cântaros de «folha» por um vintém!
Essa é a tremenda noite de Coimbra, em que ninguém prega olho – troça aos estudantes das outras Faculdades, que ainda têm aulas no dia seguinte –, e que uma vez obrigou a fugir não sei que inglês «touriste», que berrava de mala na mão, a correr para o caminho-de-ferro, – Doidos! Doidos! Doidos varridos!
A descrição de Trindade Coelho é consistente com outras da mesma época. As latadas do Séc XIX – só Trindade Coelho lhes chama «Festa das Latas» – estavam ligadas ao facto de nem todas as Faculdades terem o mesmo dia do ponto (último dia de aulas), o que levava os alunos já libertos das aulas a caçoar dos restantes, através de cortejos barulhentos que os não deixassem estudar ou dormir em paz. Para além disso, os caloiros que iam tendo o seu dia de ponto emancipavam-se nessa mesma noite.


Mas a tradição das latadas poderá ter vindo mais de trás e ter alguma relação com as «Soiças» (cortejos trapalhões e barulhentos que foram proibidos em 1541, em face dos desacatos que provocavam). Esta relação é estabelecida tanto por Hipólito Raposo (Coimbra Doutora, 1910) como por Teófilo Braga (História da Universidade de Coimbra… Tomo I, 1982), sendo que este último atribui às latadas igualmente a denominação «Tocar das Latas».
Com a Reforma de 1901 todos os cursos passaram a terminar as aulas ao mesmo tempo, deixando de haver razão para a troça. Mas as latadas continuaram, centradas agora na emancipação dos caloiros, ainda que com intermitências que, segundo Reis Torgal (Boémia da Saudade, Tomo II, 2003) se ficaram a dever a diversas convulsões políticas e académicas, à I Grande Guerra e à pneumónica. Sobre este período, há uns quantos depoimentos publicados em livro, deles se percebendo que, para além de variantes várias, nunca o essencial se alterou: caloiros a correr por Coimbra afora que nem loucos, debaixo de um barulho infernal, protegidos da praxe por tudo quanto fosse elemento metálico barulhento, atado por barbantes ou arames aos tornozelos, à cintura ou aos pulsos, em busca de uma emancipação que chegaria no final da corrida. Pelo caminho – fosse ele da Porta Férrea à Portagem ou de Santa Clara até à Porta Férrea – lá estavam os doutores de piquete, munidos de bengalas e mocas, tentando fazer soltar as latas, na expectativa de uma imediata rapadela daqueles que perdessem o seu «escudo protector». Como em todas as estórias com final feliz, há notícias de confraternizações e abraços entre uns e outros no final da refrega.
As latadas foram a dada altura transferidas para 27 de Maio e integradas nos festejos da Queima das Fitas. Branquinho da Fonseca, formado em 1930, conta-nos (Porta de Minerva, 1947) que havia no seu tempo duas formas de um caloiro obter a alforria: ou submeter-se à latada ou seguir no cortejo, no carro de um quartanista. Não é de estranhar: somos um país onde sempre houve duas vias para tudo…
Por artes que nunca ninguém me conseguiu explicar, mas que poderão ter a ver com a barbaridade do ritual e a sua progressiva desadequação à evolução da sociedade, as latadas emancipadoras dos caloiros desapareceram de cena por volta de 1935 e os caloiros passaram a emancipar-se de forma menos selvática, tal como eu o fiz em 1963: chegado o cortejo da Queima à Portagem, pedi a uma madrinha que me tirasse com jeitinho os adesivos da testa, onde as marcas de mercurocromo deixavam antever as supostas cicatrizes da recente amputação de um valente par de cornos.
Terminada a época das latadas do final do ano lectivo, emancipadoras dos caloiros, iniciou-se, uma década mais tarde, a época das latadas do início do ano lectivo, ligadas à imposição de insígnias. Mas essa estória fica para o próximo «post»."
Zé Veloso, artigo de 26 Outubro 2011, in http://penedosaudade.blogspot.com/2011/10/das-latadas-festa-das-latas-parte-i.html


 "(Parte II)

 As latadas do início do ano lectivo. A imposição de insígnias




Vimos na Parte I deste tema que as latadas do final do ano lectivo, coincidentes com a emancipação dos caloiros, terminaram por volta de 1935.


Mas como lata faz barulho e barulho é sinal de festa, as latadas voltaram no final da década de 40, continuando pelos anos 50 e 60. Só que, desta vez, aconteciam no início do ano lectivo e estavam ligadas à imposição de insígnias: aos quartanistas que, a partir desse dia, poderiam colocar na pasta o grelo que tinham posto na lapela na Queima do ano anterior; e aos quintanistas que, tendo posto fitas na Queima anterior, podiam agora exibi-las até à Queima seguinte.


As latadas eram 5, uma por cada Faculdade de então – Medicina, Direito, Ciências, Letras e Farmácia – e aconteciam, não necessariamente por esta ordem, às quartas e sábados, depois de terminados os exames de Outubro.


Para os quartanistas grelados, os jovens lobos que iriam iniciar o seu ano de glória, a manhã começava muito cedo, com a visita ao mercado D. Pedro V. Era o reencontro entre os estudantes e as vendedeiras de hortaliça, a pretexto da compra de um nabo de rama farfalhuda que se metia na pasta onde o grelo florescia pela primeira vez. Dali saíamos a cantar uma lenga-lenga já caída no esquecimento da Academia de hoje,



Meu nabo, meu grelo
Sinto prazer em tê-lo
Que não há nada mais belo
Que o grelo do nabo
Que o nabo do grelo

enquanto, pela cidade, se ouvia já ao barulho dos Zés Pereiras e do foguetório.


Estes ritos eram automáticos e ninguém se questionava. Mas eu coloco a questão agora: Por que carga de água se chamará «grelo» à fita estreita? E que relação intrigante era esta, entre estudantes e vendedeiras de hortaliça, que levava os primeiros, no ano que representava o zénite da sua passagem por Coimbra, a ter como primeiro acto, após a imposição do grelo, uma visita ao Mercado D. Pedro V?


António Rodrigues Lopes (A Sociedade Tradicional Académica Coimbrã, 1982) parece trazer-me a resposta em quatro escassas linhas: O “grelo” seria a reminiscência de um molho de bróculos que floresceu de uma greve de hortaliceiras que a academia, solicitada, secundou. Surgiu deste modo, como símbolo heráldico de reivindicação contra a truculência da Câmara Municipal (in “À Porta Férrea”, de Serrão Faria).


A greve a que se refere ARL ficou conhecida pela «Revolta do Grelo». Foi uma insurreição muito séria, que durou vários dias e chegou a envolver 10.000 manifestantes, juntando estudantes e futricas do mesmo lado da barricada. Vamos aos factos: Em 11 de Março de 1903, insurgindo-se contra o aumento do imposto do selo, as vendedeiras de hortaliça do Mercado D. Pedro V entraram em greve, no que foram secundadas pelo comércio e operariado da cidade, ficando Coimbra sem abastecimentos por alguns dias. Seguiram-se tumultos vários e a intervenção das forças da ordem, vindas de fora, a qual se saldou por quatro mortos e vários feridos entre os populares e um morto entre os soldados. A Academia reuniu, declarou-se incondicionalmente ao lado do povo de Coimbra e organizou uma recolha de fundos para auxiliar as famílias das vítimas. O Governo encerrou a Universidade a 14 de Março e determinou que todos os estudantes não residentes saíssem de Coimbra, mas poucos arredaram pé. As aulas só reabririam a 20 de Abril.

Será que a ida ao mercado era o ritual inconsciente de um encontro que se repetia, por uma aliança forjada sessenta anos atrás entre os estudantes e as vendedeiras de hortaliça? E será que a denominação de «grelo» é alheia a tudo isso?


À tarde tinha lugar a latada propriamente dita. Era um cortejo trapalhão, com alguns zabumbas à mistura, que seguia o mesmo trajecto do cortejo da Queima. Para além dos grelados e fitados, de capa e batina e insígnias, desfilavam os caloiros que tivessem sido mobilizados, razoavelmente mascarados, tipicamente de pijama ou com o casaco do dia-a-dia vestido do avesso e as calças arregaçadas. Poucas latas havia, para além duns quantos penicos de esmalte, baixela indispensável das praxes coimbrãs. As greladas e fitadas seguiam na latada mas as caloiras não eram mobilizáveis. Os caloiros, que podiam pertencer a qualquer curso, ou seguiam ao serviço de um doutor que fizesse questão de levar o seu animal de estimação – eu levei um caloiro que me chegava um penico para aparar a cinza do cigarro e me estendia uma passadeira de cada vez que decidia ir cumprimentar um conhecido na assistência – ou faziam parte da legião de porta cartazes, a função mais chata mas também mais digna, já que os cartazes eram o prato forte da latada; e uma latada se dizia boa ou má consoante a piada, a classe e o atrevimento dos seus cartazes.


Em época de censura, tudo era dito por meias palavras, por frases cândidas que escondiam malandrice, por frases banais cujo arranjo gráfico poderia sugerir muito mais do que uma banalidade: Numa altura em que a palavra «Salazar» logo levantaria suspeitas, poderia o «sal» estar no início da frase e o «azar» no final dela mas escritos com uma cor que os realçasse. Aí, a censura, ou não entendia de todo ou não encontrava forma de cortar, fazendo-se, então, desentendida.


À noite a festa terminava no Tetro Avenida, já que os seus proprietários deixavam entrar de borla grelados, fitados e caloiros mobilizados, numa balbúrdia tremenda, um autêntico salve-se quem puder na busca de um lugar. O Avenida ficava cheio que nem um ovo, do galinheiro às coxias. Enquanto decorriam os documentários, ainda os porteiros tentavam controlar as entradas. Mas mal rugia o leão da Metro, a malta que ainda estava cá fora, como que galvanizada pelo ronco do bicho, logo fazia saltar os porteiros do lugar antes que fossem as portas a saltar dos gonzos.


O filme era quase sempre mauzinho, ainda que, na minha latada, tenha sido o West Side Story, que nos deixou mudos de espanto. Claro está que mal o Richard Beymer (Tony) começou a cantar «Maria, Maria, Maria…», logo do galinheiro alguém pediu uma bolachinha e estalou a gargalhada geral… Ai, aquele galinheiro! Empoleirados junto ao tecto, mal enxergavam o ecrã! Mas quando aparecia um decote mais generoso, logo gritavam para a plateia que dali é que se via tudo.


E hoje em dia como é? Acabadas as Latadas, aí temos a Festa das Latas, com algumas diferenças importantes mas não diferindo no essencial, ou seja: uma festa que acontece no início do ano lectivo e que está associada à imposição de insígnias dos novos grelados e fitados. Aliás, a denominação oficial da festa deste ano é «Festa das Latas e Imposição de Insígnias 2011». No entanto, ela serve também para mostrar os caloiros à cidade e promover o seu baptismo.


Mas o que há, então, de diferente?

Desde logo, um cortejo único. Se assim não fora, com o actual número de Faculdades (8) mais os Politécnicos e outras escolas de ensino superior (mais 8) teríamos latadas até ao Natal. Mas se o cortejo é único, o grosso da festa prolonga-se por quase uma semana, fora os preliminares, uma série de «inventos» que a malta organiza, desde concursos literários e fotográficos a torneios desportivos e peddy-papers, passando por uma caça ao tesouro em Conímbriga e por umas olimpíadas do conhecimento sobre Coimbra e a vida académica. São «inventos» que têm para o caloiro que chega uma função integradora muito mais eficaz do que as mais que estafadas praxadelas do tipo brincadeiras bobas no meio da rua.


A abertura oficial das Festas é marcada por uma serenata que tem lugar às zero horas de quarta para quinta, sem local fixo mas que se pretende não seja na Sé Velha. Já foi no Largo da Sé Nova, à Porta Férrea e na Praça Velha. Gosto da ideia de abrir as festas com uma serenata, acarinhando e perpetuando os fados e guitarradas e Coimbra. Mas agradar-me-ia mais que a serenata fosse sempre na Alta, já que é lá o seu espaço natural, por ser na Alta que reside a fonte de todas as tradições académicas. Mas se até o Hilário cantava no Choupal, conforme reza o fado que tem o seu nome, quem sou eu para condenar uma serenata na Baixa?


Como sucedâneo de luxo dos filmes no Teatro Avenida temos as noites no Queimódromo / Praça da Canção, com um cartaz de «show business» à escala dos nossos dias, do poder de compra dos estudantes de hoje e dos interesses comerciais que se movem em torno das festas académicas, onde cada vez a cerveja mais escorre e o INEM mais acorre.


Mas é no cortejo de terça-feira – cerne praxístico das festas – que eu encontro mais novidades: qualquer estudante universitário pode desfilar – não apenas os novos grelados e fitados – incluindo as caloiras, que podem agora ser mobilizadas pelas doutoras. Aliás, penso que a entrada da mulher em peso naUniversidade terá sido a mola impulsionadora da mudança. Embora mantendo ainda um cunho reivindicativo e crítico, o cortejo ganhou uma alegria que não tinha no meu tempo, mais se assemelhando a um desfile carnavalesco, onde cada curso canta o seus hinos e faz as suas coreografias, com os caloiros e caloiras vestidos com fantasias de cores garridas.


Para além disso, existem dois conceitos completamente novos, cuja origem desconheço: o baptismo de caloiro e o morder do nabo. Quanto a este último, os caloiros, durante o cortejo, têm de ir mordendo os nabos dos semis, cuja rama é mais tarde atirada ao Mondego. Quanto ao baptismo, cada caloiro/caloira escolhe, entre os doutores, um padrinho/madrinha de baptismo (ver Nota no final). Chegados ao largo da Portagem, a turba dirige-se para essa enorme pia baptismal que dá pelo nome de Mondego e, fazendo-se uso dos penicos que cada caloiro transportou consigo durante o cortejo (conjuntamente com uma chupeta), vai de mandar pela cabeça da caloirada abaixo – «in nomen solenissima praxis caloiro(a) baptizado(a) est»! – um chapadão de água do rio que, embora não me constando que seja benta, tem a propriedade de curar na hora uma boa parte das borracheiras em que o cortejo é fértil. Tudo previsto!


Deixei para o fim a visita ao mercado D. Pedro V, onde se introduziu, há já mais de uma década, a triste ideia de que a tradição impunha que o nabo fosse roubado e não comprado. Em 1/11/2000 li no Diário de Coimbra uma exortação do Conselho de Veteranos, lembrando que o nabo é para ser comprado e não roubado. Mas, sete dias mais tarde, o mesmo jornal anunciava, como fazendo parte do programa oficial da latada, o «Roubo do nabo»…


Estive em Coimbra há poucos dias e falei com várias vendedeiras do mercado que me disseram que já se rouba menos… mas ainda se rouba! É uma pena. E é indigno de um estudante, que assim se diverte no que é o trabalho dos outros.


Faço votos para que este estúpido costume – o roubo do nabo – caia rapidamente em desuso. Seria uma pena que, por brincadeiras inconscientes, fosse posta em causa uma aliança tão bonita e tão antiga. É que os estudantes de Coimbra aprenderam a ir ao mercado abraçar as vendedeiras muito antes dos políticos. E não o fizeram para caçar votos, mas sim por solidariedade.


Nota: A escolha de um padrinho pode ser inspirada nas descrições do Palito Métrico, que nos transmitem que era frequente os caloiros colocarem-se sob a protecção de um veterano “lá da terra” ou que lhes tivesse sido recomendado. "
Zé Veloso, artigo de 03 de Novembro 2011, in http://penedosaudade.blogspot.com/2011/11/das-latadas-festa-das-latas-parte-ii.html