terça-feira, setembro 23, 2008

Notas sobre praxes e Praxe.

O presente artigo pretende reflectir sobre um dos fenómenos que mais paixões e acesas discussões têm levantado na comunidade académica, quase desde sempre:
Qual a validade e pertinência das “praxes”, que sentido tem a Praxe e, neste caso, as ditas “praxes”?

Escusado será fazer, aqui, uma exposição histórica e social da praxe (até porque abordado em artigos anteriores).
Muito do que hoje é todo como definição de Praxe, decorre do que consta do 1º código de Praxe, editado em Coimbra em 1957, quando se verifica o que o prof. António Nunes apelida de "esforço de praxização", ou seja a tentativa de colocar sob jurisprudência da Praxe, aspectos e eventos (queima das fitas, serenata, tunas...)  que não são Praxe, em sentido estrito.
Deste modo, surge a confusão de definir Praxe como conjunto de usos e costumes, quando tal não é correcto.

CONTEXTO

Antes do termo "Praxe" se introduzido (séc. XIX), várias foram as designações que expressaram os actos, práticas e ritos exclusivamente ligados à relação entre veteranos e caloiros (investidas, caçoadas, assuadas, troça, gozo...).
Assim, e durante muito tempo, Praxe designava exclusivamente os ritos e regras que orientavam as relações hierárquicas entre doutores e novatos.
Era por isso uma mescla de regras com o gozo ao caloiro.
Mais tarde, especialmente com a institucionalização das regras da tradição oral em documento escrito (código de 1957), a Praxe alarga o seu âmbito, deixando de se centrar apenas naquilo que até então se considerava, para incluir toda uma panóplia de recomendações, restrições, regras e etiquetas a observar enquanto trajado e, ao mesmo tempo, praxizando diversos aspectos que, até então, estavam à margem.
Obviamente que daí resultaram erros que ainda hoje fazem doutrina.
 

DEFINIÇÃO DE PRAXE
 
 
Por Praxe, de facto, se deve entender, apenas e só, o conjunto de regras, normas de etiqueta e protocolo que regem as relações sociais dos estudantes trajados que livremente aderem.
Deste modo, a Praxe assume-se como "Lei Académica", o conjunto de leis, de obrigações, direitos e deveres a observar em diversos contextos (das protecções ao modo como trajar numa determinada situação, como usar insígnias, etc.).
Poderemos incluir igualmente as práticas (usos e costumes) estritamente ligados à recepção e percurso da vida de caloiro, como é o caso do "gozo ao caloiro (vulgo praxes)" e cerimónias que marcam as etapas e vivência dessa condição (latada, baptismo, julgamento, trupes).
Contudo não é Praxe nenhuma outra actividade onde existem regras de comportamento que, contudo, pertencem à esfera da Praxe, mas que em si não o são (Missa de Finalistas, uso de insígnias, Serenata, Desfile, direito a trajar .....).
Por exemplo: a Praxe define como trajar durante a Serenata Monumental, mas a Serenata não é Praxe. A Praxe define como usar a a pasta com fitas (e com quantas), assim como se deve trajar, na Missa de Finalistas, mas a Missa de Finalistas não é Praxe.
A Praxe define como trajar, mas o traje não é Praxe (porque uniforme identificativo da condição estudantil), pelo que ilegal proibir um estudante de trajar (caloiro ou não).
 
O que fazemos do traje é Praxe. Mas o que fazemos de traje não o é forçosamente.
 
A Tradição Académica é bem mais vasta do que a Praxe, a qual é apenas um dos seus aspectos.
Assim sendo, é também erróneo confundir Praxe com Tradição, pois a Praxe resulta da Tradição (e só assim tem legitimidade).

ESTAR NA/EM PRAXE não é "estar" nas praxes.
 
Observar a Praxe é cumprir com o que ela determina para cada situação. Não existe, pro isso, qualquer precedente, e muito menos qualquer direito de aferir pessoas em relação à participação no gozo ao caloiro.
Desde logo por isso se não pode, nem deve, impedir um estudante de estar na Praxe só porque não aderiu às "praxes".

As praxes não são recruta ou condição obrigatória para se exercer praxe, trajar, fitar, etc.
Não é Tradição que, para se estar na Praxe (e com isso signficando participar das actividades tradicionais: serenata, queima, benção, cortejo...), seja obrigatório ter sido praxado, nem mesmo para praxar caloiros no ano seguinte.
Nenhum argumento histórico suporta tal concepção, excepto a ignorância de quem inventou papismos e criou códigos(zecos) repletos de mitos, mentiras e muitas estórias da carochinha (e zelados por organismos de praxe constituídos por ignorantes e incompetentes).
 
A confusão instalada está precisamente em confundir Praxe (lei) com "praxes" (gozo ao caloiro). E por uma questão de salubridade, dever-se-ia reabilitar o uso da designação "Gozo do/ao caloiro", ou pelo menos evitar confundir as praxes com a Lei Académica que rege não apenas estas.
 
COMISSÕES DE PRAXE
 
Incoerente, portanto, existirem "Comissões de Praxe" cuja finalidade não é serem responsáveis pelo Código de Praxe, zelarem pela sua observância, actualizações/correcções, e servirem de guardiães da justiça académica.
"Comissões de Praxe" que organizam praxes são comissões de gozo ao caloiro.
Pior ainda quando há "comissões" e, acima destas, um Conselho de Praxe ou de Veteranos. Quem, afinal, é  o organismo responsável pela Lei Académica?
Comissões de Praxe, seriam, então, a bom dizer, grupos colegiais encarregues de estudar propostas de revisão da legislação, de averiguações de casos, responsáveis por elaborar relatórios a apresentar ao organismo titular (como as comissões parlamentares).
As comissões, como o próprio nome indica, são instituições temporárias, razão pela qual, os organismos permanentes, responsáveis pela Praxe não se deveriam chamar de "comissões".

Mas este artigo é precisamente para falar desses ditos Ritos de Iniciação, as ditas “praxes” aos caloiros, que tanta tinta, argumentos e fratricidas “guerras” têm alimentado.

Para que servem as “praxes” aos caloiros?

Para os defensores das mesmas, serve para integrar os novos alunos; para os seus detractores, é uma humilhação gratuita que serve apenas para alimentar o ego dos veteranos.

O que, no meio disto tudo, mais me cria aversão é que, de ambos os lados, os argumentos são de gente ignorante, totalmente desprovida de reflexão séria e ponderada. De uma maneira geral, quer os auto-proclamados “anti-praxe”, quer os ditos praxistas (a começar pelos que lideram os organismos de praxe), colocam-se ridiculamente nos antípodas, ambos pecando por reduzida visão e saber.

As “praxes” servem para integrar?
Diz-se, à boca cheia, que sim, mas de que maneira?


Respondem os “praxistas” que criam amizades entre caloiros, entre estes e os doutores, que ganham espírito académico …….. (e outras baboseiras que escuso reproduzir).
Sempre que ouço este tipo de argumentos não sei se chore ou se ria. É assim que se define e resume a res praxis? Não me parece.
Fala-se em integração, quando nem sequer se percebe o alcance desse conceito ou se espera que ela se faça com acções muito pouco potenciadoras disso mesmo.
Os ritos são uma forma de promover a adesão e integração à cultura académica, mas tal não sucede no imediato e por magia das praxes, mas ao longo de toda uma vivência que se estende no tempo, e em que as “praxes” são uma parte, apenas, desse processo.

As “praxes”, neste caso os Ritos de Iniciação, visam, antes de mais, marcar uma separação clara de grau de ensino e vivência. Os ritos a que os caloiros são submetidos visam, sobretudo marcar uma fronteira, para o integrar numa nova matriz de cariz mais corporativista, conferindo-lhe espírito de corpo, de unicidade a um foro social e cultural totalmente díspar do restante da sociedade (e do que, até aí, pudera experienciar).
Através dos ritos, o indivíduo é consciencializado da existência de uma tradição, cultura e história que o transcende, que é maior que ele, levando-o a tomar conta que, neste novo “sistema operativo”, o indivíduo é parte integrante e não o contrário.

Os ritos servem, pois, para assinalar a entrada na vida universitária e a integração no grupo, com base na consciencialização do indivíduo para o respeito pelo património e cultura em que ingressa, e a necessidade de conhecer essa mesma cultura e património. Além disso, vinca-se o dever de respeitar a antiguidade, que assume papel paternalista de quem ali está para ensinar como as coisas funcionam e como o indivíduo se deve posicionar como parte do todo.
Muitas vezes (quase sempre) a ignorância e falta de educação dos "doutores" leva precisamente a abusos e a fazer fugir a "clientela" (e a dar lenha com que tantos incendeiam artigos contra as praxes).

O indivíduo que percebe e apreende a grandeza a que foi chamado a fazer parte, mais facilmente lhe dará valor, a irá promover, viver e defender.
Para isso, servem os ritos - no mesmo processo usado para obtenção do metal, de modo a separar as impurezas e apenas ficar o metal valioso, criar a predisposição para conhecer e, assim, melhor compreender e vivenciar o que irá pôr em prática.
Assim, as “agruras” por que passam os caloiros têm por finalidade imprimir um alerta: quem inicia o seu caminho deve perceber que muito tem a aprender, depois a defender e promover, antes de um dia poder ter algo a legar.
Não sejamos ingénuos a ponto de dizer que tudo se faz com palmadinhas nas costas e umas rodadas.
Há necessidade de uma depuração que passa por um processo que implica alguma “dor”, a qual não deve ser entendida como violência. Essa “dor” deve ser entendida como o esforço que implica ajustar-se, reajustar um modo de ser e pensar ao modo de viver de um grupo.
Um processo que não é exclusivo do foro universitário, como sabeis. Por isso é que há sempre um preço a pagar (essa sim, a verdadeira patente), algo que ninguém faz sem custo, pois mudar, desfazer-se do seu egocentrismo, perceber que os direitos pagam-se com o cumprimento de deveres, é um exercício que a todos custa, principalmente numa idade onde todos estamos a rebentar de “autodeterminação” e afirmação pessoal.

Não se trata de robotizar, nem mesmo deve ser entendido numa politização fascista, mas tão-somente como uma (re)educação, uma nova aprendizagem, necessárias, aí sim, a uma integração num grupo que tem regras de convivência próprias e que marcam o percurso do estudante universitário enquanto tal.
O grande problema queda-se, contudo, na forma como são esses ritos praticados. Como não existe a compreensão da finalidade dos ritos (porque a maioria existe como fim em si mesmo), cai-se na humilhação gratuita, com práticas abjectas e desprovidas de sentido (cuja natureza de muitas nem sequer sem insere na praxe, mas sim no foro do crime e, por isso, de natureza policial). As práticas, para surtirem efeito devem ter objectivos concretos a serem alcançados, algo que todos, a começar pelos caloiros, devem conhecer.
Nada há pior do que nos obrigarem a algo que não gostamos, principalmente quando não lhe compreendemos a finalidade.
As “praxes” não são para gostar, são para preparar o indivíduo – a primeira fase da formação (infelizmente, quase sempre se fica por aqui, ficando a formação na gaveta), predispondo-o a conhecer, alimentando a sua curiosidade em tomar conhecimento e parte da cultura em que se vai inserir.
Não esquecer, também, que uma larga parte dos jogos e brincadeiras a que chama "praxe" nada têm de Praxe, de praxe ou de praxes. São isso mesmo: brincadeiras. Assim sendo, em coerência, não deveriam estar inseridas nos ritos de recepção ou integração, nem sequer serem chamadas de praxes.
O que aprende o caloiro ao ficar com a cara cheia de farinha, saltar "á cabra cega", fazer jogos tradicionais, corridas, andar a rebolar, cantar músicas.......... o que aprende sobre tradições, Praxe......?
Serve para integrar? Ajudará, em muitos casos, mas a Praxe não é colónia de férias, grupo de escuteiros ou quejandos. Além disso, a integração numa instituição não precisa de praxes sequer (nem mesmo de Praxe). A integração em causa não é desse tipo; não se trta de ambientar-se às aulas, aos colegas, professores, cidade...... mas de integração na cultura, usos e costumes estudantis, regrados e definidos enquanto tal.

A esmagadora maioria dessas práticas esgotam-se passada a fase de recepção ao caloiro e não tem qualquer continuidade gradativa, ou seja, a continuação da formação do indivíduo – o qual só volta a tomar consciência da existência de ritos, quando chega a Queima das Fitas (e, por sua conta e risco, espera-se que lá chegue já integrado e conhecedor, de facto, do que é Praxe).

Nesse aspecto, os detractores da praxe acabam por ter muita razão quando se insurgem contra as práticas realizadas.
Quando os ritos servem apenas para alimentar o ego ditatorial e sádico dos veteranos e doutores (que quase só se mostram nessa altura, diga-se), reduzindo à condição de escravo ou empregado os caloiros, não podemos estranhar que nasçam associações anti-praxe (principalmente com a quantidade de excessos praticados que nada têm a ver com praxe) ou redobrem as queixas policiais.
Mas se os ditos “anti-praxe” são “alimentados” pela ignorância e estupidez de muito “doutorzinho”, não posso deixar de endereçar os mesmos adjectivos aos componentes desses grupos “anti-praxe”: que mostram a mesmíssima ignorância bruta daqueles que condenam, ao reduzir o significado de praxe apenas aos ritos de iniciação (e pior ainda – e isso é prova cabal de má-fé, acefalia e estupidez total – quando atacam tunas).

Qual o problema?

O problema reside em 3 aspectos essenciais:

A falta de formação, competência e saber dos organismos de praxe. O exemplo deve vir de cima e a aposta passa sempre por formar e informar, mais do que autorizar praxes e fiscalizar as mesmas. De nada vale fiscalizar pessoas que nunca foram, realmente, formadas e informadas. Um código escrito não basta, quando muitas vezes está, ele próprio, longe da realidade praticada (ou cheio de invenções e mitos ou inutilidades - o que sucede em 99% dos que existem em Portugal).
Vale mais o exemplo de conduta do que quilos de decretos e normas.
Mas como só se pensa em praxe, fazer desfiles, festas e afins, cada qual vai improvisando e/ou copiando o que vai vendo (nem sempre copiando bem, ou o que está bem), muitas vezes com total sentimento de impunidade.
E Espírito Académico passa a ser algo tão indecifrável que cada um tem o seu, e defini-lo fica no âmbito do “inexplicável” por palavras.
Antigamente, tendo em conta as academias serem pequenas, existia um espírito mais familiar, o que facilitava a passagem do saber oralizado, alicerçado numa real vivência da tradição, sendo o código bem mais do que um documento, pois era vivido e apreendido – fazia implicitamente parte de cada um, ao contrário da actualidade.
Os códigos de hoje, que mais parecem manual de inquisição, são uma sucessão de milhares de artigos (alguns dúbios) que a maioria desconhece, distantes da realidade (porque querem regrar em demasia, ao invés de acentuar o essencial), pejados de mitos e artificialismos, observados mais por obrigação do que por convicção (e onde as proibições e normas sobre caloiros ocupam parte considerável do documento).

A natureza da maioria dos códigos de praxe. Uma grande parte aparece pouco tempo depois da implantação da instituição, não sendo reprodução escrita (devidamente articulada e ajustada) de usos e costumes anteriormente praticados (e resultante da experiênciação da tentativa-erro de que resulta uma certa maturação das práticas e escolha das mais adequadas) , mas a imposição de regras nas quais poucos encontram eco ou se revêem. Um código, na sua primeira edição, deve reproduzir o que já era (bem) feito, o que já era tradição oral (regrando, ajustando esses usos aos objectivos desejados), para que possa ter o devido precedente e justificação histórica, social e cultural para se averbar código que possa servir de modelo aos vindouros.
Nesse aspecto, uma grande maioria dos códigos existentes são documentos artificiais que apenas vieram alimentar usos e costumes eles próprios vazios de significância, mais seguidos por serem lei, do que por serem aceites como pertinentes.
É facto que grande parte dos códigos que por aí pululam visaram, num primeiro momento, definir uma identidade própria, diferente das demais academias e cidades, nomeadamente de Coimbra, criando uma catadupa de “praxes”, regras e disposições “de plástico”, usos artificiais, a que a panóplia de “trajes académicos” (99% dos quais sem fundamentação válida), cada qual ao seu estilo, veio a reboque. Nesse aspecto, terá sido, esse, um dos maiores erros históricos e a maior falta de bom senso registados na história da praxe. Bairrismos inusitados e a força de ter de ser, à força, diferente, levou a trajes sem qualquer razão de ser perante a capa e batina – traje oficialmente definido como Traje Nacional (e, por isso, não apenas de Coimbra), identificativo do estudante universitário português.
Quando ainda por cima alguns abanam o argumento de "as nossas tradições" (achando que ao novo basta parecer "antigo"), fica claro o quanto a ignorância, e por vezes estupidez, grassa no foro académico de hoje (e de há uns largos anos a esta parte), desde os praxistas mais ferrenhos aos conselhos de veteranos e comissões de praxe.
Tantos são os absurdos repetidos que é de perguntar que gente temos no ensino superior que nem sequer questiona a origem, a validade das coisas (alguns artigos estão listado à esquerda, precisamente sobre essas "doutrinas" que alguns pregam como dogmas autênticos).

A formação de cada indivíduo. Um aspecto que resulta dos dois anteriores, obviamente, a que acrescem as características sociais e culturais das novas gerações.
À falta de formação dos futuros agentes da praxe (mais congressos, colóquios, tertúlias, fóruns, publicações urgem), a relação causa-efeito que daí advém surge natural e inexorável. A praxe perdeu a sua linearidade vertical e horizontal, passando a um “sistema de ilhas” e evento sazonal, centrado exclusivamente no parecer em detrimento do ser – fenómeno superficial que existe “para inglês ver”, numa de “Maria vai com as outras”!
Valores como o respeito, abnegação, espírito empreendedor, participação voluntária, desejo de valorização complementar vão dando lugar à apatia, indiferença, egoísmo, competição, materialismo e facilitismo que não são condizentes com o perfil de académicos activos, produtores e reprodutores de cultura e excelência que deveriam caracterizar o estudante universitário, o praxista. Mas se tal não acontece, não podemos imputar tudo à sociedade ou aos paizinhos ausentes ou permissivos.
Os ritos de iniciação servindo para formar, depurar, educar e preparar o indivíduo para compreender, apreender, aprender e tomar parte da comunidade universitária, deveriam bastar para garantir que cada um exercesse consciente e proficuamente a sua cidadania académica. O problema é que nem quem os pratica e aplica tem idoneidade e competência para essa tarefa, nem quem depois pretende mudar as coisas tem espaço para tal.
“Quando os princípios são maus, não se esperem bons fins”, diz o povo e tem razão.


Concluindo:

Perante o actual panorama dos ritos e práticas exercidos, temos de convir que são um fenómeno que carece de pertinência e que serve interesses que não interessam de facto.
Troque-se  as brincadeiras (que de maior ou menor gosto, não passam disso: brincadeiras) por momentos de formação, informação e debate, tertúlias animadas e outros momentos de convívio que possam preparar as pessoas para exercerem, de facto, a missão de integrar os caloiros, movidas pelo dever e competência e não por desejos recalcados de vingança, sadismo ou simples vontade de afirmação.

Quando a praxe está reduzida, na sua imagem pública, ao que se passa em Outubro e Novembro (pior ainda, quando inventam praxes pelo ano fora), seria bom que outra postura fosse adoptada e algumas medidas firmemente tomadas, de modo a que quer os protagonistas directos, quer os responsáveis pela praxe deixem de envergonhar e manchar os pergaminhos de uma tradição e cultura que merecia outro trato e respeito, e de quantos viveram, com elevação, a condição de académicos.

 

quarta-feira, setembro 10, 2008

Notas sobre O Grito Académico "F.R.A."

Merece alguma atenção este assunto, porque me parece haver alguma falta de conhecimento sobre a forma e razão de ser deste tipo de interpelação e expressão efusiva de alegria e comemoração.
 

Para além disso, já não é a primeira vez que, no  mail do N&M, caem pedidos de esclarecimento sobre este assunto e, por esse mesmo motivo, decidi escrever alguns considerandos.
O Grito Académico divulga-se ao mundo tunante e académico nacional, com o lançamento do CD "Estudantina Passa", mesmo se, já antes, era de uso comum, com especial incidência em Coimbra  Porto.
 Não possuo qualquer dado documental e fidedigno que aponte a data da sua criação, até porque, como sabéis, o grito foi sofrendo alterações sucessivas ao longo dos tempos (nomeadamente nestes últimos 20 anos).
 O Grito Académico, comunemente usado, divide-se em 2 partes, a saber:  Dedicatória e Aclamação (em que existe uma voz de "comando" a que responde a assembleia). Assim, temos:
 
- Então (malta), e para............não vai nada, nada, nada, nada?
- Tudo !
- Mas mesmo nada, nada, nada, nada?
- Tudo!
- Então, com toda a cagança, com toda a pujança ..........(e outros dizeres)..... aqui vai/sai um...F-R-A!
 - Frá!
- FRE!
-Fré!
-FRI!
- Fri!
- FRO!
- Fró!
- FRU (com prolongamento do som É da letra  F: "éf "- concluindo com RU - "ériu").
- Fru!
 -(todos) FRA, FRE, FRI, FRO FRU
ALIQUA, (a)liquá, (a)liquá (BIS)
CHIRIBIRIBI-TÁ-TÁ-TÁ-TÁ (BIS)
HURRA, HURRA, HURRA!!!
 
 
Alguns irão torcer o nariz, porque o interpretam de outra forma, nomeadamente a parte do Aliqua ou do chiribiribi, mas mais à frente se explica.
 Obviamente que não podemos esquecer que, deste grito, também conhecemos a parte do "Aos canhões, a rolar peças!" ou ainda do "Ginga Baleia" (muito na moda no Porto, diga-se), tão bem reproduzido no grito que a E.U.C. eternizou no seu 1º CD (já acima mencionado).
 Mas, qual o significado deste grito, de onde provém e qual a sua razão de ser?
 
 

F.R.A. ("éfférreá")
 
A sigla F.R.A., e o actual grito, parecem provir dos tempos conturbados da Crise Académica (Frente Revolucionária Académica ou Falange de Renovação Académica), inspirados, no FRA brasileiro (Frente Republicana Académica) que alguns estudantes cariocas, em finais do séc. XIX terão criado - grito esse que voltaria a fazer-se ouvir em Coimbra, pelos refugiados estudantes brasileiros, albergados na República dos Cágados.

Estes estudantes recriam a Frente Republicana Académica de outrora, sob a batuta de um tal Divaldo Freitas (grande divulgador do grito) gritando "FRA!", como acrónimo codificado, contra o regime de Getúlio Vargas (1883-1954), o qual chegara à presidência da república brasileira em 1934, instaurando uma ditadura com o  golpe de Novembro de 1937.
Divaldo Freitas (que já entoaria essa sigla nos jogos de futebol do Cantanhede, segundo o avançado por Octávio Sérgio) passará esse grito para os quintanistas de medicina que, em 1938, o estreiam no jardim botânico da UC, rapidamente passando a todos os cursos que, nessa queima, o cristalizam e oficializam.
 
O grito passa, então,  para diversos contextos, nomeadamente o do futebol, ouvindo-se nas partidas da "Briosa", como forma de incentivar, exteriorizar, expressar alegria ou, como no caso da crise de 1968, como lema reivindicativo e contestatário.
 
Parece provável, contudo, a ligação à ideia revolucionária até porque quando referia a parte do "Aos canhões; a rolar peças" (popularizado pela EUC), está presente esta ideia bélica que, ao que tudo aponta, se referiria ao famoso Batalhão Académico de 1808, num exercício de saudosismo histórico da participação e garra dos Estudantes de Coimbra na luta contra os exércitros napoleónicos (1ª invasão). Deste modo, tudo indica ter origem no espírito "revolucionário" que grassou em finais da década de 60 do século passado.

O jogo de vogais AEIOU poderá ser influência de um tema brasileiro conhecido.

No Porto, segundo Eduardo Coelho, o Orfeão Universitário utiliza  AEIOU Ypsilon (que provém desse famoso tema de Vera Cruz), sendo o final do «grito orfeónico», que começa por «Arri-barri-barri-bá - Bá!», etc. até «Urri-burri-burri-bu - Bu!» (em uníssono). Ao que parece, é uma forma que só o OUP utiliza.
 
Ainda uma achega sobre a forma como alguns prolongam as vogais, mais parecendo, como diz o amigo Hugo, no Blogue Tesoural Tertúlia, citando o Dr. Octávio Abrunhosa : "...parecem ovelhas a balir! (calma, calma! Ainda há-de chegar o tempo em que gritarão “I-Ó, I-Ó”)".
 
Aliqua Vs Arriquá
 

Já no que respeita ao ALIQUA, dizer que o termo original, que é um pronome indefinido, é ALIQUIS (alguém, algo, algum), embora possa assumir-se como substantivo (aliquis, aliqua, aliquid – algum, alguma, alguém, algo, alguma coisa) ou, ainda, como adjectivo (aliqui, aliqua, aliquod – algum, alguma, algo).
 
É declinado como QUIS, mas com a adição do prefixo ali-: aliquis, aliqua, aliquod, com a única diferença que, no feminino, ele faz aliqua, e não *aliquae".
 
Pessoalmente, vejo isso como uma interpelação (recurso estilístico conhecido por Apóstrofe ou invocação), na ideia de arregimentar, chamar, congregar, reunir a atenção e vontades de todos e, por isso mesmo, a que está correcta.
 

Poderá também provir do termo Aléguá, que significa radioso (ou emite raios/que brilha), expressando alegria ("Aléguá, guá, guá"), um grito já em voga, ao que parece, nas claques brasileiras do início do séc. XX, numa corruptela de "Allez! Go! Hack!" (que Olavo Paes de Barros teria entoado no estádio do São Paulo, misturando termos de vários idiomas, após um temporal ter interrompido os treinos da equipa, incentivando os jogadores).
 
Sobre a possibilidade do "Aléguá", deixamos ao leitor a seguinte transcrição:
 
"Esquecidos os vivas “à Revolução Social” e “à inconsolável viúva do padre António Vieira”, lançados e popularizados pelo Pad-Zé, sem dúvida que só o F-r-á conquistou direitos de cidade entre a Malta coimbrã.
Não será curioso, então, fixar o momento em que tal brado se radicou na Academia de Coimbra? Cremos que sim e, por isso, redigimos este apontamento.
Quando – ainda não era, sequer, morrão de candeia – comecei a assistir a desafios de futebol, ouvi, uma e muitas vezes o Ribeirinho ( capitão de equipa ), tenente dos artilheiros…capitão dos carvoeiros, lançar o clássico “hip-hurrah”.
Por essa mesma altura lembro-me de ter ouvido um outro grito que creio ter tido apenas uma vida episódica e de que recordo só a parte final: - “Carvão, meninas…”.
O “ hip-hurrah “ era, entretanto, de uso generalizado e só os rapazes da República dos Grilos utilizavam a voz do seu insecto totémico para grilarem o seu “ cri-cri, cri-cri e os bichos o erudito “ Hic, haec, hoc “ ou o “ Qui, quae, quod “.
Outros brados tiveram memória transitória ; “ala-ala-arriba”, “ Cow-boy… tau-tau-tau… Allô, sheriff “ e o do “ …pico-pico… meia-hora “ mas, como inicialmente observámos, só o “ F-r-à “ se radicou fortemente e foi alastrando de um curso para a Academia, começando a ser o brado distintivo dos desportistas académicos e dos elementos dos organismos culturais da Academia – e com eles se faz ouvir de Norte a Sul de Portugal, nos relvados, nos rinques, nas piscinas, nos teatros, nos salões de recepção e nas ruas.
 Vejamos, então, a sua origem:
 Foi em 1937 que um grupo de estudantes brasileiros estagiou em Coimbra, tendo ficado instalados nas Repúblicas então existentes. Foram, precisamente, estes rapazes que trouxeram para Coimbra o F-r-à, que, aliás, como toda a semente de planta que se preza, levou algum tempo a germinar – um ano, exactamente – mas depois se enraizou como sabemos…
Recordada a sementeira, vejamos como se deu a eclosão da planta e o jardineiro a quem se deve a obra.
 Na Queima das Fitas de 1938 os festivais realizaram-se no Jardim Botânico. Numa das noites juntou-se um grupo bastante grande que resolveu fazer pé de vento. Propostas, apreciadas e recusadas várias sugestões, fixámo-nos em duas que recolheram a unanimidade dos sufrágios: o irmos cantar às meninas uma parte de uma canção que começava pelo verso “Deixa essa triste cara…” e lançar como brado o F-r-à. O que é certo é que foi o Divaldo, que acompanhara os seus compatriotas no ano anterior e que aprendera ( e ainda bem que recordou ) o Frá, fré, fri, fró, fru ,que deu a primeira sugestão e dito e feito, após meia dúzia de ensaios iniciou-se a digressão de todos os quintanistas de Medicina presentes que formaram um cordão que cercou as moças consideradas jeitosas e… e despejaram a cantilena.
 No dia seguinte (27 de Maio) quando chegámos ao festival, à futrica, encontrámos muitos grupos, grandes e pequenos, de académicos, fitados, grelados e sem insígnias, que cantavam por todos os cantos o “ Deixa essa triste cara, em que ninguém repara…” e por todos os cantos bradava “ F-r-á, frá; f-r-é, fré;…”.
A sorte estava lançada…
 …E quanto ao “F-r-á” não se pode dizer que a sorte lhe tenha sido madrasta.
 VERSÃO ORIGINAL:
“ F-r-á… frá ; f-r-é… fré… ; f-r-i… fri ; f-r-ó… fró ; f-r-u… fru ;
“ Alêguá guá-guá ; alêguá guá-guá ; chi ri bi bi tá-tá tá-tá ; hurrá , hurrá !”
 
(Fonte: Mário Temido in “Rua Larga. Revista dos Estudantes de Coimbra")
 
 
Uma outra tese aponta para a eventual proveniência  num suposto grito crioulo, também provindo do Brasil, que se pronunciaria como "aléquá, aléquá!". A pesquisa feita ao dicionário de crioulo diosponível na Net não contempla, contudo, tal, pelo que a corruptela para "aliqua" se avera algo improvável.
 Muitos pronunciam "ARRIQUÁ", mas é erróneo, pelo já explicado. Esta expressão, de que não consigo vislumbrar significância, poderá ter surgido por um facilitismo fonético (é mais fácil de pronunciar velozmente e é mais marcado e sonante) ou por influência do grito do Orfeão do Porto que, ao invés disso, pronuncia "Arribá" (de Arriba - acima/para cima), mas, seja como for, o "arriquá" é um erro.
 
CHIRIBIRIBI-TA-TA-TA-TA
 
Já o "CHIRIBIRIBI-TA-TA-TA-TA" é, ao que tudo indica, referente a uma Marcha Carnavalesca de Victor 34.115B, interpretada pelo "Bando da Lua", gravada em novembro de 1936 e lançada em dezembro de 1936.
 Recordo que, em inícios do séc. XX, as festividades estudantis, nomeadamente os cortejos, eram conhecidos por "Carnavais de Estudantes" (ou termo similar), sendo, pois, lógico que conste do grito uma referência histórica a esse facto e que, no fundo, traduz o espírito de folia, alegria e festa.
O "Foguete" (Final)
 
Por fim, a questão do FOGUETE (Chhhhhhh....Pum/....) e dos ditos que se lhe seguem (cada qual à sua maneira e tradição) é um a introdução muito recente. O meu amigo Eduardo Coelho, "Conquistador", diz-me que na 1ª vaga de Tunas do Porto não exisitia sequer.
 
Apenas condenar os que "inventaram" o palavrão final, tal como todos os acéfalos que o reproduziram. Estudantes do Ensino Superior deveriam destacar-se, também, pela eloquência e excelência, pelo menos em público.
 No Porto, segundo Eduardo Coelho, o «foguete» sempre se usou - o que é recente é o «té-ré-ré-ré-ré» (3x) seguido de «F...-se!», que é uma invenção pós-82... e que algumas tunas «de faculdade» usarão, por influência das respectivas «praxes».
Em Suma:
 
Uma coisa é certa: não há certezas, contudo julgo que esta explicação me parece a mais provável e verossímil (ou, pelo menos, há o cuidado de argumentar nesse sentido).
É óbvio que há coisas, nisto de gritos e afins, que podem nem sequer terem sido criadas com ideia de terem sentido ou explicação, mas terem saído assim só por acaso (mesmo se acredito pouco em acasos, neste particular).
Importa, julgo eu, que as pessoas reflictam sobre isto e sobre aquilo que gritam de peito cheio, de maneira a saberem o que dizem e por que o dizem (e o cuidado em, neste aspecto, fazê-lo "secundum praxis").
Não deixa de ser curioso que parte substancial do grito seja uma importação (3 aspectos do mesmo provêm do Brasil), o que não nos menoriza, antes mostra a riqueza da nossa diáspora.
 Se virmos bem, também os emblemas que se colocam nas capas são uma importação das Tunas Espanholas, inspiradas, por sua vez, na "Moda Mochilera" dos anos 60.
Haja o cuidado, inteligência e sobriedade intelectual, isso sim, de perceber por que se faz e as origens desse fazer.
Dizia o meu amigo, e ilustre, Eduardo Coelho, que "mais grave do que a censura do Estado Novo é a actual "Censura da Ignorância".
 
 
Sábias palavras!!!