terça-feira, novembro 13, 2012

Notas ao "Quarto de hora Académico" - Origens


 O “¼ de hora Académico”

 
Todos saberão o que é. Todos dele terão tirado proveito ou, então, criticado duramente esta institucionalização do atraso, querendo dar roupas de virtude a algo que não deixa e ser um erro, um mau hábito.

De uma maneira geral, temos ideia que tal costume é intrinsecamente nosso e parte daquilo que nos caracteriza enquanto cultura, naquele cliché rebatido de que o pessoal nos países mediterrânicos não tem pressa nem “stressa” com os ritmos mais frenéticos de outros povos mais a norte.

Por isso é que ao pretender saber da origem dos “15 minutos da praxe”, que se dão de tolerância para quase tudo, também ia com aquela firme certeza de ser este um traço muito nosso, bem português.

Fazia fé, e tal como eu muitos, que o “quarto de hora académico” nascera na UC em tempos remotos, por uma qualquer razão mais ou menos lógica (que nisto de tradições tanto há pertinência e pragmatismo como perfeita patetice).
Após ter pedido ajuda e alguns esclarecimentos a antigos estudantes de Coimbra, percebi pelas respostas que, provavelmente, o mais que se conseguiria seria apresentar algumas teses e possibilidades.

Aliás, aqui faço minhas as palavras do Zé Veloso, do blogue “Penedo d@ Saudade”, ao dizer que:

 "Quando procuramos a razão de ser de uma dada tradição ou de uma dada expressão cuja origem se perde no tempo é raro haver verdades absolutas. Há apenas teorias, mais ou menos plausíveis.”[1]
 
É o que aqui partilho, após ter aprofundado um pouco mais a pesquisa, tanto quanto me foi possível fazer tal, sem sair de casa.

 A 1ª teoria que encontrei foi a seguinte:

 “A dispersão dos Colégios pela cidade, assim como o facto de a maioria dos estudantes viver em alojamentos arrendados aos moradores, deu origem a que o relógio da Universidade estivesse meio quarto de hora atrasado, relativamente aos da cidade, para dar o devido tempo de deslocação do estudante até às faculdades na Alta. Ficticiamente, na Universidade, as aulas começavam a horas.[2]

 
Esta primeira explicação, provém do próprio site da UC, contudo, como pelos dados que mais adiante partilho, me pareça um argumento altamente falível. Os estudantes tinham mais é que acordar a horas. Não creio que a UC fosse assim tão permissiva que até se desse ao luxo de criar um segundo toque de despertador, quando o qu enão faltava em Coimbra erma igrejas a dar as horas (e recordemos que parte da vida das pessoas era regulada pelos sinos, para se levantarem, rezarem, tomarem as refeições……).

 Atentemos, agora, à 2ª tese:

“A velha torre da Cabra, hoje substituída pelos modernos relógios impostos aos estudantes que vivem freneticamente o seu ritmo académico, foi mandada construir em 1537. Mas não foi esta que chegou aos nossos dias. A disponibilidade financeira e, talvez mais importante, a excentricidade do nosso conhecido D. João V fizeram com que ela fosse aumentada para os 33 metros de altura e assim os seus quatro sinos e quatro relógios fossem vistos em toda a alta universitária (1733)
A sua utilização era regalia de toda a cidade ainda assim o seu principal objectivo era atingir os estudantes da Universidade que eram acordados, todas as manhas, pelo toque de um sino de nome "cabrão", vá-se lá saber porque... Ainda assim o sino mais importante e que torna conhecido o monumento é mesmo A Cabra.
É sabido que Coimbra sempre esteve na vanguarda das lutas estudantis. A sua tradição assim o impõe e, à época, era inevitável uma vez que a Universidade de Coimbra era única no país. E também nestas lutas esteve envolvida a torre e os badalos dos sinos que chegaram a ser roubados para que o "cabrão" não tocasse e, por conseguinte não houvesse obrigatoriedade de cumprir os horários académicos também eles diferentes do resto do país e mesmo da própria cidade de Coimbra. Actualmente os relógios da Universidade de Coimbra estão de acordo com o fuso horário nacional, mas, naquele tempo pode dizer-se que Portugal tinha 3 horas diferentes: (1) a do continente e arquipélago da Madeira, (2) a do arquipélago dos Açores e a da (3) Alta Universitária de Coimbra. Assim era, os relógios da velha torre eram atrasados quinze minutos para que o chamar dos estudantes para as aulas não fosse confundido com o chamar dos fiés para as missas.
A História "d'A Cabra", do cabrão e dos restantes sinos sem nome não se aprende numa subida ao topo da cidade, mas vale mesmo apena disfrutar de uma vista panorâmica que engloba toda a cidade do Mondego e essa, só se consegue no topo da velha Torre d'A Cabra, hoje de cara lavada e aberta ao público.”[3]

 
Esta segunda explicação é ainda mais falível que a anterior. Não parece de todo credível que os estudantes de Coimbra se levantassem com o toque do sino e, por erro, fossem à missa, ao invés de irem às aulas. Um segundo toque em nada beneficiava fosse quem fosse. Além disso, trata-se do ¼ de hora dado para o início das aulas e não do toque para despertar os alunos da cama ¼ de hora depois do resto da população acordar.

O que não deixa de ser caricato é o facto de vermos este tipo de tese propalada em reportagens televisivas por quem está a falar  em nome da UC  e que  ao minuto 2:30 diz o seguinte:

  «Rezam as crónicas e os estatutos que este 1/4 de hora (académico) já existe desde 1591 para não confundir o toque dos estudantes com as chamadas para a missa».
 
 

Deve ter a senhora, Chefe do Protocolo da UC ter sido induzida em erro por alguma leitura menos crítica da documentação que estudou. À mistura de factos históricos com ficção damos o nome de lenda.

Os dados em causa, como lembra Sónia Filipe (Vd. FB "Penedo d@ Saudade - TERTÚLIA") parecem apontar para o facto do "décalage"  de 15 minutos entre hora civil e hora académica servir para evitar confusões, mas em tempo algum por causa do horário de missas:

“O cargo de relojoeiro é criado estatutariamente em 1653. Para além de indicarem as funções expressas deste funcionário acrescenta-se a dado passo “que andara sempre atraz do relógio da cidade, meio quarto de hora”, de forma a nunca ser confundido com a regulação do tempo do resto da cidade (quarto de hora académico). O segundo, um artigo sobre as Horas da Universidade, publicado numa coletânea de artigos sobre a UC.”


Nota:  citação acima segundo "Universidade(s), História, Memória, Perspectivas. Actas. 5vols. Congresso História da Universidade, 7º Centenário, Coimbra, 1991" O artigo que referia anteriormente é o seguinte: ARAÚJO, Ana Cristina Bartolomeu (1991), "As horas e os dias da Universidade", vol.3, pp. 365-382.

 


Como acima dito, esta tese carece de lógica. Não parece existir uma razão plausível para andar o relógio da torre atrasado em relação ao resto da cidade, além de que no séc. XVII e até ao XX, Coimbra não era assim tão grande nem há notícia de se passar o dia a ouvir sinos a toda a hora e minuto.
Existem toques bem definidos para a liturgia (eque eu próprio toquei quando jovem, na minha vila de origem):

a) baptismos, com o toque chamado de "repenicado/repique" que se dá no fim;

b) os "sinais", aquando da morte de alguém, que se repetem nos funerais, e a que se chama "dobrar" (porque o sino gira completamente sobre o eixo) e que implica 2 sinos em simultâneo; 
c) a chamada para a missa, dada uma hora antes da mesma e cujo o toque se chama "badalar" (porque é um toque simples).
 
Ainda existem em muitos lugares os toques das "trindades" (ou também apelidados de "ave-marias"), que se davam 3 vezes ao dia: de manhã, pelas 5 horas; ao meio dia e ao cair da noite (17/18 horas no inverno ou pelas 21/22 horas no verão). Esses toques eram 3, espaçados, seguindo-se, a cada um, uma "Avé, Maria", depois um toque dobrado e mais 3 toques espaçados).

Também não me parece que se possa confundir com "Matinas" (pelas 3h00 da manhã, embora inicialmente à meia noite) ou "Laudes", que ocorriam ao nascer do sol (inicialmente pelas 3 da manhã),  por ser demasiado cedo (os estudantes oriundos do clero levantar-se-iam para rezar, depois comer e só depois irem às aulas) ou com "Vésperas" ao fim do dia (porque o  toque académico era para chamar e não para encerrar as aulas).
As demais "horas canónicas", eram assinaladas de forma discreta e nunca a ponto de causar confusão.
Nem mesmo as denominadas "primas" pelas 6h00, usualmente assinaladas com issa pública me parecem ser confundíveis, pois não estou em crer que a essa hora começassem quaisquer aulas (haveria, até, espaço para os próprios estdantes irem à missa). Muito menos as "terças", pelas 9h00, que podiam ser assinaladas com missa solene, por ser uma hora demasiado tardia (a essa hora os estudantes já estariam em aulas (ou a iniciar as mesmas).
Os toques seriam dados com antecedência, mas a que ponto confundíveis com o toque para as aulas?
E a que horas começavam essa aulas?

Certamente, nisso estou seguro, não seria o toque confundível com o inconfundível toque picado ("picado 3 vezes") usado para situações de incêndio.

Os estudantes conheciam bem o toque do seu sino, e o facto de ter o cognome de "Cabra" (nome do sino mais famoso, colocado no séc. XVIII) diz tudo.
 O "Cabrão" é o outro sino, mais recente datado do séc. XIX, normalmente reservado a actos de doutoramento e eventos festivos). Mas antes deste existia (e existe) um outro, o mais antigo (e maior), designado de "Balão", que é de 1561, posto na antiga torre (sobre a qual surgiu a actual, bem mais alta), porque a torre, essa, foi erigida entre 1728 e 1733.

Que tipo de toque era dado pelo sino que chamava os estudantes e professores para as aulas? E a que horas?
Perguntas que ficam no ar, até uma apuramento mais aprofundado da questão (pois certezas não há em definitivo).

Continuo convicto que esta tese traz demasiados inconvenientes práticos, além de que, como abaixo veremos, o "1/4 de hora académico" não é um fenómeno endémico (só nosso), sendo possível que tenah sido importado e que tenha, por cá, sofrido a respectiva aculturação e corruptela.
 
Mais 2 teses se perfilam, referidas pelo amigo Zé Veloso, de que cito a intervenção que teve, sobre o assunto, no FB da sua Tertúlia:

 “Porém, o meu amigo Ricardo Figueiredo acaba de me informar que encontrou a referência abaixo transcrita, que parece confirmar a primeira versão:
(…)
Despesas, Orçamento de 1568:
10- A António Fernandes, Relogieiro da SEE-$500(1)
17- A Tomé Fernandes, que tange o sino de corer 4$500
 (1) Dava-lhe o Bispo mais $500 e o cabido outro tanto. O relógio da Sé era o relógio oficial da cidade; por ele todos se governavam. O da Universidade estava atrasado um tanto, para permitir que professores e alunos chegassem a tempo, costume que vem a dar o quarto de hora de tolerância.[4]

Finalmente, Gonçalo Reis Torgal, que baseia a sua referência ao toque da cabra durante 1/4 de hora na transcrição de uma frase do livro de Diamantino Calisto - "Costumes Académicos de Antanho" - avança uma terceira teoria. Diz ele que a cabra tocava os seus balidos durante ¼ de hora e, daí, a razão de ser do 1/4 de hora académico. Aqui o ¼ de hora bate certo mas não tem a ver com atraso algum, pelo que me parece uma explicação algo duvidosa, pese embora o muito saber do autor de "Coimbra - Boémia da Saudade" sobre as tradições académicas de Coimbra.” [5]

 

A explicação dada pela referência contida no livro de A. Rocha Brito, parece muito plausível (como adiante veremos), sendo, até agora, a mais antiga referência portuguesa de que dispomos sobre o atraso de ¼ de hora tolerado a alunos e professores.
Já o argumento avançado pelo Reis Torgal merece as minhas fortes reservas, secundando o Zé Veloso nas dele, pois não consta que o toque do sino durasse 15 minutos. Nem nas grandes festas religiosas sucedia tal, nos sinos da Sé ou igrejas, quanto mais neste caso. Além disso, sujeitava-se a UC a ver-se invadida de conimbricenses, de baldes de água na mão, a perguntar onde era o fogo!
O que ocorreu foi um erro de leitura/interpretação, como disso dá nota o Zé Veloso, pois "Diamantino Calisto frequentou a UC no final do séc. XIX e a frase que vem na pág 27 do seu livro de memórias é a seguinte: «Tocava (a cabra), com pequenos intervalos, durante um quarto de hora».

Sobre esse toque, recorda o Zé Veloso que, e citando um amigo comum, que "num post do Guitarra de Coimbra": A. M. Nunes refere os dois toques da cabra, o matutino e o vespertino, da seguinte forma: «É tangido vespertinamente, entre as 18:00 e as 18:30h, anunciando as aulas do dia seguinte, e matutinamente, das 7.30 às 8.00h, a lembrar o começo das aulas».
 
E nada mais encontrei, sobre o nosso “quarto de hora académico” português.

Contudo, alertado pelo João Caramalho Domingues, do blogue “Porto Académico”, para o facto de haver referências estrangeiras, em alguns cliques cliques dei de caras, entre outros, com o seguinte excerto, que me escuso traduzir, pois de fácil compreensão:
 
The quarter system dates back to the days when the ringing of the church bell was the general method of time keeping. When the bell rung full hour, students had 15 minutes to get to the lecture. Thus a lecture with a defined start time of 10:00 would start at 10:15.
Academic quarter exists to a varying extent in many universities, especially where the campus is spread out over a larger area, necessitating the need for fifteen minutes for the students to walk from one building to another between classes.” [6]

 Pelos vistos, lá fora, atribui-se este hábito (que, como vemos, não existe só por cá) à necessidade de contemporizar o facto de os alunos precisarem de mais tempo para transitarem entre aulas, quando estas ocorriam em campus cujos edifícios ficam distantes uns dos outros.
Uma explicação que vem reforçar o que ainda há pouco vimos citado da obra de A. Rocha Brito.

 
Sabemos que o ¼ de hora académico é, usualmente assinalado acrescentando-se a abreviaura "c.t." (cum tempore, que significa, em latim, “com tempo”) que se coloca imediatamente a seguir à hora designada; por exemplo "16:00 c.t.".

Quando, no entanto, se pretende que a aula, reunião ou evento começe a horas certas utiliza-se a expressão "s.t." (sine tempore, que significa, em latim, “sem tempo”, ou seja que não dada tolerância e tempo).
Em países anglófonos, por exemplo, onde também existe o “quarto de hora académico”, utiliza-se também, a expressão "sharp" (que significa que são horas precisas/certas), precisamente para deixar claro que é para começar à hora indicada. Exemplificando: "6:00 pm sharp".
Os franceses, por sua vez, utilizam a expressão “pile” (de pilha, numa alusão à exactidão dos relógios a pilhas[7], em contraposição aos antigos que eram de corda), colocada a seguir à hora indicada, para deixar claro que é “em ponto”.

 
Como o leitor já começa a perceber, isto do ¼ de hora de atraso, não é só por cá. Na Alemanha, esse quarto de hora académico é apelidado de “akademisches Viertel" (existindo, inclusive, uma publicação estudantil com essa designação), e essa tolerância é praticada também na Áustria, Escandinávia e Suíça (onde é apelidado de Le quart d'heure vaudois”), entre outros. Também por lá as aulas nas universidades não se iniciam exactamente à hora indicada, mas 15 minutinhos depois, precisamente para darem tempo aos docentes e discentes de se deslocarem de umas salas para as outras, as quais nem sempre se encontram no mesmo edifício (essa é a desculpa, porque o facto é que o atraso de 15 minutos é já uma instituição).

 Assim, é natural encontrar nos horários afixados o seguinte exemplo:

 Aula de Literatura do séc. XIX
Professor Doktor Schultheiss
Edifício 11, Sala 1
Sexta  das 11h às 13h c.t.

Desengane-se quem pensa, pois, que esse quarto de hora é culturalmente indicativo de preguiça ou próprio de povos menos…… competitivos, pois ficaria o leitor admirado em saber que na Alemanha da Sra. Merkel o quarto de hora estende-se para além do âmbito estudantil e já há décadas se estendeu a todos os domínios da vida quotidiana. No país que manda na economia e finanças da Europa, e que se gaba da sua eficácia e produtividade, é sempre possível argumentar com o ¼ de hora da praxe para justificar uma qualquer atraso.

Em França, por exemplo, chega a fazer parte da “etiqueta”, tomando, pro vezes, a designação não oficial de “quart d’heure de politesse”. Outras designações que toma são “quart d’heure marseillais”, “quart d’heure parisien”, praticado quer pelo comum dos mortais que mesmo por titulares de cargos públicos.
De tal maneira está enraizado, já, esse atraso que um artigo do “New-York-Times” sobre o "savoir-vivre à francesa”, publicado em 2007, dizia que “Em França, quando há um encontro marcado, parte-se do princípio que todos chegarão atrasados”.

O mesmo referia o jornal suíço “Le Temps”[8], em 2010, afirmando que os suíços tinham a  “condenável mania de nunca estarem a horas”.

 
Não deixa de ser, de certa maneira, paradoxal que um país conhecido pela sua relojoaria, nele se pratique, de forma tão generalizada, o atraso; um atraso já tão institucionalizado que já tem honras de dicionário:

 “Quarto de hora (dito) académico = "atraso" (praticamente tolerado) de um quarto de hora antes de qualquer hora de aula universitária.” [9]

 
Em França, também o dicionário da Academia Francesa, a mais prestigiada academia do mundo, contempla o ¼ de hora académico, designando-o como “Quart d’heure de grâce” (ser agraciado, gozar a graça de um quarto de hora):

 "Heure de Grâce, quart d'heure de grâce -  Délais accordé au delá du temps fixé pour faire quelque chose, pour terminer une affaire."[10]

É precisamente em França que encontrámos uma referência que indica que o quarto de hora académico é ainda a mais antigo do que julgávamos (até agora era 1568, em Coimbra). Com efeito, como podemos ler no excerto abaixo, ele proviria do atraso admissível às reuniões das comissões municipais na idade média, tempo esse que seria medido por uma ampulheta regulada para 15 minutos:

"Historiquement, le quart d'heure académique provient de la durée de retard admissible aux réunions des commissions municipales au Moyen Âge, mesurée par un sablier réglé sur quinze minutes [11]

 
Uma coisa sabemos : o ¼ e hora académico é da Praxe. Um costume que, afinal, não é traço exclusivo de países atrasados cultural e socialmente, como tanto gostam de apregoar certos anti-praxe no que concerne a Portugal e às suas tradições académicas (eles que se esquecem, por exemplo, que muitas universidades do norte da Europa também tiveram cadeia para os alunos até inícios da 1ª guerra Mundial).

Os 15 minutos da Praxe, pese embora serem um mau hábito, são um hábito por demais enraizado e que está aí para contrariar a regra da pontualidade britânica ou dos países mais a norte, tidos como exemplo de civismo, etiqueta e cumprimento draconiano de horários.

Certamente que fazer do atraso uma regra de etiqueta (ou a sobrepor-se á etiqueta e boas práticas) é algo sem sentido, mas nem sempre se cristalizam em tradição os bons exemplos e as boas práticas.

De nada vale querer mudar as coisas à força, o testemunho seguinte no lo confirma:

“As universidades não estão, de resto e em matéria de tempo, melhores do que os bancos. Por exemplo, a Universidade de Coimbra (e não está sozinha neste particular) tem um ancestral quarto de hora de atraso académico. Quando se anuncia que uma aula ou um seminário é às 3 horas, quer-se dizer que é às 3 horas e 15 minutos. Cometeu este autor um dia o inaudito atrevimento de tentar uma pequena revolução temporal, anunciando um seminário para as 15 horas 15 minutos, EM PONTO, com maiúsculas e tudo. Mantinha-se o respeito pelos hábitos mais primordiais, mas ensaiava-se obter um mínimo de rigor, procurando a concordância entre o horário no papel e a hora marcada nos relógios quando a função começava. Tarefa votada desde logo ao insucesso! A audiência compareceu, ou melhor começou a aparecer, às 15 horas 30 minutos, porque o quarto de hora académico é uma conquista académica irreversível da qual nenhum académico jamais abdicará por sua livre vontade. [12]

São “pecados velhos” que já o nosso bem conhecido Pe. António Vieira denunciava em 1650:

«Uma das cousas de que se devem acusar e fazer grande escrúpulo os ministros, é dos pecados do tempo. Porque fizeram no mês que vem o que se havia de fazer no passado; porque fizeram amanhã o que se havia de fazer hoje; porque fizeram depois, o que se havia de fazer agora; porque fizeram logo, o que se havia de fazer já. Tão delicadas como isto hão-de ser as consciências dos que governam, em matérias de momento. O ministro que não faz grande escrúpulo de momentos não anda em bom estado: a fazenda pode-se restituir; a fama, ainda que mal, também se restitui, o tempo não tem restituição alguma»[13]

 
Termina o artigo como começou: sem certezas.
Algumas teses que por vaí pululam não apresentam solidez nos seus argumentos e explicações, caindo pela base ao primeiro abanão.
Outra(s) parece(m) mais plausível(is). Ao  leitor cabe tirar as suas próprias conclusões.

P.S. Um agradecimento penhorado aos membros da Tertúlia Penedo d@ Saudade no Facebook.

 


[3] Diogo Pereira in “O Quarto De Hora Académico”, artigo de 19 Julho 2012 [em linha]
[4] BRITO A. da Rocha - Finanças quinhentista do Município Coimbrão-Coimbra 1943, pag.25
[7] Não devemos esquecer que a hora mundial é definida por um relógio alimentado por uma pilha atómica.
[8] Artigo intitulado : "Le quart d'heure vaudois en voie d'extinction".
[9] LEBOUC, Georges - Dictionnaire de Belgicismes. Editions Racines.Bruxelles, 2006, p. 82.
[10] Dictionnaire de L'Académie Française, 6ème Édition, Tome 1er. Imprimerie et Librairies de Firdin Didot Frères (Imprimeurs de l'Institut de France).Paris, 1835, p.889
[11] Régulation temporelle et territoires urbains - habiter l'espace et le temps d'une ville, sob a direcção de de René Kahn, L'Harmattan (2007), p. 57. G. Dohrn-van Rossum, P. Braunstein, O. Mannoni: L'histoire de l'heure, Maison des Sciences de l'Homme (1997), p. 254.
[12] Carlos Fiolhais, O tempo português, 13/10/1999 [em linha] http://nautilus.fis.uc.pt/personal/cfiolhais/extra/artigos/artletras131099.htm
[13] Citado em « Ser estudante é ser pontual » [em linha] http://www.ua.pt/provedordoestudante/PageText.aspx?id=14615

quarta-feira, novembro 07, 2012

Notas aos Rasgões na Capa - Origens e significados


Capas rasgadas são hoje tidas como expressão máxima da veterania e vivência académicas, pejadas, dessa forma, de significâncias, testemunho de amores, amizades, beijos…….. “and so on”.

 De onde vem essa tradição dos pequenos rasgões na capa ou mesmo do grande rasgão a meio desta?

 Não sabemos qual a ideia que presidiu ao início desse costume, mas não enjeitamos que possa ser, uma vez mais, o romantismo histórico (muitas vezes cheio de clichés e falsos mitos) a repescar a ideia dos antigos veteranos e seus trajes puídos e rotos, na longa tradição do sopistas (daí derivará, entre outros, o mito de não se lavar a capa, por exemplo, de que já falámos anteriormente).

 Nos anos 80, essa ideia era muito cultivada, sendo esse saudosismo que esteve na origem do interesse e reabilitação das antigas tradições que tinham sido particamente esquecidas após o Maio de 1969. Veja-se que até no Brasil a ideia do rasgão carrega esse simbolismo:

 "Ele seguiu a velha tradição universitária— que o rasgão é uma glória e a tomba na bota uma respeitabilidade!"[1]

Bem sabemos que, ainda hoje, existe essa ideia e tendência, nos mais jovens, de aparentar mais idade, maturidade e experiência, como que para conferir um qualquer status quo, um ascendente social ou apenas impressionar as caloiras.
Aliás, nem é preciso ir mais longe que basta atentarmos no que nos diz a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira:

 "(...) tanto mais que o uso consagrou como mais digno de apreço e mais graciosa a capa ou a batina com mais rasgões e remendos, mais velha e menos elegante, caprichando assim, precisamente, os estudantes, num pecado de aparência boémia descuidada ..."[2]

Esse saudosismo pela “res antiqua” não foi um exclusivo dos praxistas dos anos 80 e 90. Ainda na esteira do romantismo do séc. XIX, desse gosto pela história, temos os estudantes de início do séc. XX, em plena 1ª República (muito avessa às praxes, diga-se) que pretendem reabilitar as velhas tradições entretanto interrompidas com a greve académica de 1907 e, depois, fortemente cerceadas pelas autoridades, pouco dadas àquilo que, em muitos círculos, era tido como prova de retrocesso civilizacional.

Contudo, a aurea em torno do imaginário do estudante boémio e aventureiro, herdeiro dos antigos goliardos, a irreverência característica de quem está sempre, de alguma forma, contra o status quo social, dita o ensejo de recuperar a mística de outrora, reclamar para si a defesa de uma cultura própria, secular tradição, inalienável direito de governarem os seus destinos:

 "E quando aparece este desejo de ressurgimento? Precisamente quando se tinha chegado ao extremo oposto, de se haverem desprezado tanto aquelas velharias que ate a capa e batina quasi a ser abolidas e com elas ridícula preocupação de se considerarem tanto mais honrosas para quem as vestia, quanto mais rasgões tinham mais sêbo as enodava"[3]

 Mas até onde recua a origem dos rasgões na capa?
Não é fácil responder inequivocamente, mas alguma luz podemos lançar sobre essa prática a que sistematicamente se fizeram alterações ou upgrades.

Pensávamos, inicialmente, que o costume teria origem pelos anos 50, pois, segundo os dados colhidos e a falta de testemunhos e documentos anteriores a essa década, apontavam para tal.
O amigo Zé Veloso, no blogue “Penedo d@ Saudade”, dizia a esse respeito o seguinte:

 “(…) e ter-se-ão inspirado no franjado do xaile para começar a rasgar as suas capas? Eu vou por aí! Como dizia o poeta, "transforma-se o amador na cousa amada, por virtude do muito imaginar".
No meu tempo de Coimbra – onde as colegas tinham tomado já o lugar que antes fora das tricanas – dizia-se que cada franja da capa correspondia a uma conquista, ainda que de um fugaz beijo se tratasse. E os mais gabarolas retalhavam as desgraças capas, quais pistoleiros do Oeste enchendo de mossas as coronhas dos revólveres.
Na Coimbra universitária de hoje, onde a mulher está agora em maioria, é natural que o significado seja já outro.
Tendo feito a pergunta a algumas raparigas estudantes, apurei que os rasgos podem ter significados vários, ou mesmo nenhuns, mas há um detalhe interessante, uma vez mais ligado às lides amorosas: quando se namora, faz-se um grande rasgo pela capa adentro e, se o namoro acaba, coze-se o rasgo com linha da cor da Faculdade!
Estranho costume este! Parece querer mostrar que para os males de amor sempre haverá remendo. Mas que das cicatrizes ninguém se livra…”. [4]

 Vemos, pois, por este testemunho, de quem trajava capa e batina, ainda no liceu, nos anos 50, que nessa época os rasgões eram conotados a conquistas amorosas, contudo não existia a tradição do rasgão a meio da capa, tanto que tal é tido como sendo um “estranho costume”.

Não é fácil encontrar a origem exacta da prática dos rasgões, mas podemos balizar com recurso a testemunhos e documentos que vamos retirando do anonimato.
Não confundamos, é preciso sublinhar, com as referências existentes a rasgões feitos como resultado de agressões (onde os caloiros erram sovados e suas roupas saíam muito mal tratadas das caçoadas mais ferozes. Existem relatos de capas e batinas rasgadas em resultado dos "encontros" com as trupes, mas não podemso mistura ro rasgão feito de livre e espontânea vontade com os que são consequência de agressões sobre o indivíduo e sua indumentária ou do desgaste natural do traje (e alguma traça, diga-se também).
Segundo o Zé Veloso, era já comum, nos anos 60, verem-se, nomeadamente os rapazes, alguns cortes na capa, com efeito, diz-nos que "Não era vulgar ver-se uma capa completamente franjada – que as havia – mas uma capa com meia dúzia de rasgos era perfeitamente banal, rasgos que teriam um comprimento de 5 a 15 cm, sendo feitos à mão".

Atentemos, por exemplo, no que a propósito deste assunto (que colocámos na facebookiana “Tertúlia do Penedo d@ Saudade”) que respondeu João Portugal Vieira:

  O meu avô que era dos Paxás no início dos anos 50 embirra solenenemente com os rasgões, tanto ele como o meu tio Beça dos anos 30 e o Dr. Virgílio dos anos 20/30 não percebiam de onde tinha surgido a coisa. Parece-me que surgiu de forma muito minoritária algures nos anos sessenta, e foi popularizada nos anos 70 quando apareceu num álbum da série francesa de banda desenhada Michell Vaillant. Quando entrei ainda todos usavam os rasgões de namoradas, noivas, e amizades, até que o Conselho de Veteranos (ou no tempo do Gama ou do Cabral, já não me lembro) fez um panfleto em que dizia que não havia nenhum fundamento para esta tradição, e cada um começou a fazer como lhe apetecia.[5]

 Segundo este testemunho, parecia credível avançar que os rasgões nas capas não existiriam antes dos anos 50, contudo parece ser este testemunho expressivo daquele tipo de estudantes que não achavam grande piada à forma, por vezes exagerada, com que certas capas apareceriam cortadas.
Também significará, porventura, que, conforme as épocas, se aderiam mais ou menos a esse costume ou que só certas franjas e grupos estudantis o praticavam.

O que sabemos é que esse costume é citado no Código da Praxe de 1957, cujo art.º 73 refere, a certa altura "(...) capa preta, com ou sem cortes na parte inferior...", conferindo-lhe lugar como sendo da Praxe, ou seja da Tradição.
Mas podemos regressar mais (e fá-lo-emos até ao séc. XIX) no tempo.

Como inicialmente disséramos, julgávamos serem os anos 50 o alfobre desse costume, mas afinal não é bem assim.
Segundo o que escreveu José Anjos Carvalho, transcrito por Octávio Sérgio, no seu blogue “Guitarra de Coimbra, sobre os costumes estudantis do Liceu de Évora:

 “Na década de 40, quando por lá andei, havia sempre duas récitas anuais, a do 1º de Dezembro e a das Festas da Primavera, em 9 ou 10 de Junho.(…)
Por vezes havia o seu corte de cabelo, muito pouco e, sobretudo, muito raro. Os rasgões na base da capa eram uma prática bastante habitual..”[6]

Seguindo o que acima se lê, o costume existiria nos anos 40, embora sem sabermos ainda qual o significado na época.

Ainda no que concerne o Liceu de Évora, deparámo-nos com um documento que nos faz recuar para os anos 30, mediante uma foto publicada no blogue “Virtual Memories”, do ilustre historiador António M. Nunes, a qual retrata um grupo de estudantes do Liceu de Évora. Nesse cliché, o rapazinho da esquerda parece apresentar uma capa com muitos cortes.

Não negamos a surpresa, pois anteriores investigações nossas nos tinham levado a observar dezenas de clichés de estudantes de capa e batina (muitos deles como membros de tunas) onde ainda não se vira qualquer capa com rasgões (o que indica que a prática não era um costume massificado, bem pelo contrário).

Escarafunchando mais um pouco, e com recurso ao já citado blogue “Virtual Memories”, encontrámos uma curiosa referência, que veio deitar por terra as nossas iniciais “certezas", quanto à antiguidade da tradição dos rasgões na capa.
Sobre o denominado “pequeno uniforme académico”, instituído na UC (embora sem obrigatoriedade de uso) a partir de 1870, quando descreve como é composto, diz-nos António Nunes, a certa altura que:

 “(…)-capa preta singela, em lã ou sarja, embainhada para os lentes, sem bainha para os estudantes amigos dos rasgões, colarinho raso, dispondo a dos estudantes de alamares, e a dos docentes de cordão de borlas ou de cordão simples.”[7]

 A atestar a existência da prática de rasgões no séc. XIX, temos outro indício, reproduzido nas muitas quadras que se faziam em torno do estudante de capa e batina:

 “Em meados do século XIX, os autores de quadras destinadas às danças das fogueiras do São João de Coimbra já se tinham apropriado da capa estudantil, cantando no “Malhão” (=Estalado): A capa do estudante/É um jardim de flores/Toda cheia de remendos/Cada um de seus amores , copla que na década de 1860 passou a ser cantada no novel Fado dos Estudantes Açorianos”[8]

 Esta referência, saída direitinha do famoso “In Illo Tempore”, de Trindade Coelho (p.259), não oferece dúvidas que o significado emprestado a esses rasgões estava, pois, ligado aos amores do estudante, embora não se consiga precisar se eram namoradas (conquistas consumadas/namoros oficializados) ou paixões não correspondidas (na senda das medievas “coitas de amor”).

 O facto é que se temos indícios do costume já existir em finais do séc. XIX e, depois, a reencontrarmos na década de 30 em diante, outros tantos temos que demonstram a sua ausência, por vezes de forma concomitente, o que nos diz que, e mais uma vez se sublinha tal, a prática não era adoptada por todos. Por outro lado, e citando o amigo Zé Veloso, Um costume pode sempre ser descontinuado e retomado décadas mais tarde; e tal pode muito bem ter acontecido nas conturbadas décadas do início do século XX.”

 "Estudantada" (Pintura/desenho de Faustino Rosa Mendes - artista de Santarém), 
Illustração Portugueza, II Série, Nº 698, de 07 Julho de 1919, p. 15 
(Hemeroteca Municipal de Lisboa)


Sabemos, por exemplo, que muitos costumes caem em desuso, ou cessam simplesmente em inícios do séc. XX. Notemos, por exemplo que o termo “Caloiro” era, ainda em 1899, a designação dada aos alunos de liceu que estavam no seu último ano (antes de ingressarem para a universidade) e que aos alunos do 1º ano se dava o nome de “novatos”. Ora, em 1905, ambos os termos eram sinónimos e atribuídos já ao estudante que frequentava pela primeira vez a faculdade (o 1º ano), segundo avança Manuel Prata.[9]



Certezas temos é que nos anos 60, e até ao luto académico que começa em 1969, a prática dos rasgões era amplamente conhecida e posta em prática, acabando retratado no álbum do Michel Vaillant, "Rali em Portugal", cuja primeira edição é de 1969, publicado em fascículos na revista Tintin e finalmente editado em álbum em de 1971 (sob o título original de "Cinq filles dans la course"), podemos observar, em várias tiras, as ditas capas rasgadas
A obra só chegaria a Portugal, como álbum em português, pela mão da Bertrand, em 1981.

Sobre isso, refere o colega Eduardo Coelho o seguinte:

 “ (…) Jean Graton, no álbum "Rallye de Portugal" (da série Michel Vaillant) põe Steve Warson (se não estou em erro) a perguntar a uma guia portuguesa, durante uma pausa do rally em Coimbra, o que significavam os rasgões na capa de uma estudante (capa bem rasgada, por sinal...), sendo-lhe explicado que cada rasgão correspondia a um desgosto de amor.
Bom, mas isso era um autor de banda desenhada belga, que imortalizou o traje académico nas páginas de uma das personagens mais famosas da escola belga :) E o autor normalmente documentava-se muito bem para a execução das suas obras. A Via Latina, por exemplo, está exemplarmente retratada”.[10]

Sabemos, pois, que a recolha de dados e informações ocorre antes de 1969, data em que se dá o luto académico e que o significado emprestado aos rasgões estava ligado a desgostos amorosos (que outros testemunhos de antigos alunos dessa época confirmam).

Veja-se a diferença entre o que nos anos 50/60 se dizia (que eram conquistas), para o que, anos depois, vigorava (amores frustrados).
Nos anos 70, o seguinte significado podemos observar:

 "A cada amor percorrido enquanto o infinito perdure corresponde um rasgão na bainha da capa negra do estudante."[11]

Contudo é nos anos 80, com a reabilitação das tradições académicas, que a moda se espalha pandemicamente e ganha N significados em simultâneo.

Com a massificação do Ensino Superior, e a invenção (quase sempre sem nexo) de pseudo-tradições e códigos, bastaram menos de 10 anos e já o significado dos rasgões era atribuído às amizades especiais, aos grandes amigos de faculdade, e vida académica, e vigorava já uma nova moda: o rasgão a meio da capa, destinado ao namorado(a) “a sério” (prontamente cosido se a seriedade descambasse em ruptura).

 Voltava, a propósito, a recordar a intervenção do Zé Veloso quando falava dos rasgões cosidos com linha da cor da faculdade, para dizer que, nestas ultimas duas/três décadas o que foi comumente doutrinado é que o rasgão reservado, a meio da capa, à namorada, se tivesse de ser cosido teria de o ser com linha branca.

De onde virá tal determinação?
Será isso uma inspiração na figura do João da Ega, da famosa obra “Os Maias”, de Eça de Queirós, que, como reacionário e contra as praxes, mostrava a sua irreverência, em jeito de provocação, cosendo a branco os rasgões de que ia padecendo, pelo uso, a sua batina?

 "Desde a sua entrada na Universidade, renovara as tradições da antiga Boêmia; trazia os rasgões da batina cosidos à linha branca;"[12]

Será essa a inspiração ou tratar-se-á de uma feliz coincidência?

Parece também estranho que em finais dos anos 80, inícios dos 90, as próprias estruturas da Praxe, na figura do Conselho de Veteranos (segundo testemunhou o João Portugal Vieira que cursou nessa altura), terem considerado essa prática como sem fundamento (chegando-se a distribuir um panfleto onde se dizia precisamente isso), apesar de já mencionada no código de 1957.

Poderemos dizer, se confessos defensores da sobriedade do trajar, que os rasgões não são algo propriamente estético e que não dão boa imagem de aprumo, dado que o Traje Nacional é, antes de mais, um uniforme, mas nem sempre as tradições ocorrem dentro da etiqueta e daquilo que é secundum praxis, havendo muitas vezes contributos que chegam por “via popular” - em oposição a uma “via erudita”, se permitem a analogia da área da linguística.

Mas a prática reiterada, pese embora os significados da mesma mutarem ciclicamente, cristalizou-se e enraizou-se, sendo que conquistou o seu lugar como tradição académica (e muitos códigos mais recentes já contemplam isso, regrando o tamanho e a forma de se fazerem os rasgões).

Obviamente que é um costume ele próprio sujeito a desvios, como são disso exemplo os nós dados com as franjas/tiras resultantes desses cortes, como se observa em algumas latitudes, cujo significado se inventa na exacta medida daquilo que se desvirtua.
Pior então são as tranças que vemos em algumas geografias, e que são um prova fidedigna da tonteria, da ignorância e do desrespeito total pela tradição.

Notemos, por exemplo, que nos anos 90, entre os significados dados aos rasgões, aparece um totalmente novo e divergente do até aí entendido, ou seja que os cortes corresponderiam aos fracassos escolares, aos chumbos:

"É composto desde finais do século passado por calça comprida, colete e sobrecasaca, denominada batina por advir da primitiva ... A capa tem mais uma peculiaridade pois, a cada exame passado, corresponde um rasgão feito na extremidade, apresentando no fim do curso numerosos rasgões. Desta figura ressalta um apego ao valor do estatuto universitário e às praxes seculares da Academia."[13]

 Os rasgões, segundo a tradição, serão feitos com os dentes (num acto mais “personalizado”, se assim quisermos emprestar essa significância) e/ou porque usar a tesoura seria misturar um objecto que, em Praxe, serve para sanções, com um acto que é festivo.

A capa é, pois, guardiã de memórias, representando os tempos de mocidade universitária, cujos rasgões testemunham momentos singulares do exercício da cidadania académica:

"Capa pretas onde revejo
toda a minha mocidade,
cada nódoa é um beijo
cada rasgão uma saudade."[14]

Uma tradição, uma convenção, que perpassou a mera esfera da etiqueta e do protocolo ligados ao traje, chegando a capa rasgada a ser cantada pela própria canção coimbrã:

"A minha capa rasgada,
Espelho do coração,
Por te pedir p'ra seres minha
E dizeres sempre que não.

Lá no alto junto a Deus
Ouvi os anjos rezar
Cá na Terra junto a ti
Passei a vida a penar."

<
Sobre este vídeo disse o Eduardo Coelho, a 3 de Novembro 2012, no anterior artigo (inexistente, já) dedicado aos rasgões na capa:

“Grandes amigos a tocar e cantar. Adelino Miguel, um dos virtuosos portuenses (nacionais, diria eu) da guitarra, aqui a dar os seus primeiros passos... É vê-lo actualmente num projecto interessantíssimo -os "Fado em si bemol".
O Pacheco, o veteraníssimo Pacheco - um dos leões da Praxe e das tradições académicas cá do Douro... o Adalberto, na viola... a voz do Mário... Gente boa, gente boa.
Talvez não leiam esta mensagem, mas aqui lhes deixo um sentido abraço.
Fica este primeiro apontamento, a merecer mais aturada pesquisa, contudo já elucidativo para percebermos um pouco das nossas tradições, as curiosidades da mesma e suas nuances.”

Muito haverá ainda para dizer, pois se algumas questões puderam ser já respondidas, muitas outras carecem de novos dados e descobertas, desde se mantendo a mesma com que se iniciou este artigo: de onde vem essa tradição dos pequenos rasgões na capa?
Procuraram-se respostas, encontraram-se, simultaneamente, outras tantas questões.
Esperamos, ainda assim, que seja este artigo útil e um pontapé de saída para novas descobertas e actualizações.


[1] Ministério da Educação e Cultura  - Anuário do Museu imperial, Volume 36. do Brasil. Petrópolis, 1982, p.60.
[2] EDITORIAL ENCICLOPÉDIA - Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Vol. XXIII. Editorial Enciclopédia Lda, Lisboa - Rio de Janeiro,1936-1960, pp. 67-67.
[3] Revista - Illustração Portugueza, II Série, nº 558,de 30 Outubro 1916, p. 341.
[4] VELOSO, José - TRICANAS, XAILES E CAPAS. TRANSFORMA-SE O AMADOR NA COUSA AMADA…, in blogue Penedo d@ Saudade, artigo de 7 Abril 2010, [em linha] http://penedosaudade.blogspot.pt/2010/04/tricanas-xailes-e-capas-transforma-se-o.html
[6] [em linha] http://guitarradecoimbra.blogspot.pt/2005_09_25_archive.html , artigo de 01 Outubro de 2005.
[7] NUNES, António M. - Património vestimentário... (cont.) Do “talar” ao “casacar”, in blogue Virtual Memories, artigo de 4 de Setembro de 2009 [em linha] http://virtualandmemories.blogspot.pt/search?q=rasg%C3%B5es
[8] Idem - III - Património... (Académicos de toga e académicos de espada), in blogue
Virtual Memories, artigo de 28 Agosto de 2009 [em linha] http://virtualandmemories.blogspot.com/
[9] PRATA, Manuel Alberto C. - Rituais e Cerimónias, A Praxe na Academia de Coimbra. Revista da História das Ideias 15. Instituto de História e Teoria das Ideias, Faculdade de Letras. Coimbra, 1993,p. 170, em nota de rodapé nº 37.
[10] Post de 31 Outubro in https://www.facebook.com/#!/groups/penedodasaudade.tertulia/
[11] ALMADA, João - Biblioteca da História 33, Salazar, 1889-1970. Editora Três, Brasil, 1974.Cap. III - Em Coimbra, p. 61.
[12] LAGO, Sylvio - Eça de Queirós, Ensaios e Estudos 1. Biblioteca 24 horas.SP Brasil, 2010, p. 237.
[13] TEIXEIRA, Madalena B. - Trajes míticos da cultura regional portuguesa. Sociedade Lisboa, Lisboa, 1994,  p.105.
[14] PEREIRA, B., Joacil - A Vida e o Tempo. Memórias, Vol. I. União Superintendência de Imprensa e Editora, 1996.
Nota: a 1ª e última fotos são adaptações feitas a partir dos originais patentes em http://lm-sunshine.blogspot.pt/