terça-feira, setembro 30, 2014

Notas às ditas "praxes solidárias"


Volta à ordem do dia esta nova moda dos actos solidários transformados em Praxe ou em praxes.

Ou seja, pela simples razão de serem arregimentados caloiros sob auspícios de uma comissão de praxe, qualquer acto passa a ser praxe.
E vai de roda que tudo o que se faz trajado é praxe, certo?
Errado!!

Um acto solidário não é Praxe, nem praxes. Nunca o foi, não é agora que passa a ser.
Uma coisa é a organização de tais iniciativas em substituição de praxes, mas é isso mesmo: em substituição, outra é chamar a isso de Praxe ou praxes.
Não é por um grupo de médicos fazer uma iniciativa solidária como tomar um banho que tal passa a ser um acto médico ou a isso se passa a chamar medicina. Também não apelidaríamos de solidariedade político-partidária se um grupo da juventude do partido X fizesse igual coisa.
Recordo, por exemplo, o caso das Tunas que, já no séc. XIX, participavam em inúmeros concertos de solidariedade, mas não consta na definição de Tuna a solidariedade. Muito menos as tunas andavam a escrever artigos para os jornais a dizerem que tinham sido solidárias. Iam e participavam. Se falassem delas, tanto melhor, caso contrário, ninguém ficava melindrado. Importava era o objectivo ser cumprido: ajudar sem esperar medalhas e louvores.
As iniciativas solidárias que se organizam são louváveis e merecem todo o nosso apoio e admiração. Isso não está sequer em causa.
Mas saiba-se distinguir as coisas.
 
Num outro patamar, questionaríamos, ainda assim, certas iniciativas ditas solidárias  que parecem mais uma operação de charme praxístico junto da opinião pública, como que a contrastar com praxes que são notícia pelas piores razões. Passamos do 80 para o 8 em que nem um nem outro são o que é suposto serem.
Não tarda e fazer voluntariado na Guiné é Praxe, só porque a malta foi de traje e õ conselho de veteranos deu uma ajuda na preparação! Tenhamos algum discernimento.
Não sei, aliás, que solidariedade genuína se publicita, quando os caloiros são, de certa forma, obrigados ou recrutados a participarem (os fins não podem, aqui, justificar os meios), precisamente porque é tal assumido como praxe. Nem isso é praxe nem solidariedade, de facto.

A solidariedade que não vem de dentro, que não é uma expressão pessoal, não passa de uma vaidade. Se ser solidário está agora na moda (e ainda bem), não se seja solidário por moda, mas por convicção; não por desafio ou para se vangloriar, antes como um desejo sincero de fazer o bem.
 
Depois, e ainda numa outra leitura, não deixo de me perguntar qual a validade moral de actos solidários que, ao fim e ao cabo, parecem mais visar a auto-promoção do que o verdadeiro altruísmo.
Quem verdadeiramente quer fazer o bem, de forma altruísta e gratuita, não se anda a gabar de tal, caso contrário não é solidariedade, de facto.
Isto remete-me, desde logo, para a bíblia e o capítulo VI de S. Mateus (e cujo conteúdo se adequa, independentemente da nossa crença religiosa ou falta dela):

 
“Guardai-vos de fazer vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles. De contrário, não tereis recompensa junto de vosso Pai que está no céu.
Quando, pois, dás esmola, não toques a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados pelos homens. Em verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa.
Quando deres esmola, que tua mão esquerda não saiba o que fez a direita. Assim, a tua esmola se fará em segredo; e teu Pai, que vê o escondido, recompensar-te-á.


Gabar-se de ser solidário não é sê-lo, de facto, antes esperar uma recompensa pelo acto praticado – neste caso uma publicidade e exposição a dar lustro ao ego.
Como já o Pe. António Vieira dizia, “"Tanto são maiores finezas, quanto mais ocultas, porque fazer o benefício e esconder a mão, assim como é maior generosidade, assim é maior fineza."
 
Se fazemos o bem à espera de reconhecimento, não estamos a dar gratuitamente, antes a operacionalizar uma “troca comercial”: dou isto, mas espero algo em troca, ou seja, em última instância, e a pretexto de ajudar outrem, visamos ajudar-nos em causa própria. Ora, e parafraseando George Washington, não devemos ser como os pavões que estão sempre preocupados com as penas.
 
Quando vejo pessoas a fazerem questão de mostrar que são muito solidárias, não posso deixar de ver nisso hipocrisia, um acto interesseiro disfarçado de altruísmo.
Aliás, sobre isso, aconselhava veementemente a lerem as palavras de Helena Sacadura Cabral[1]:
 
"Fui educada em duas normas básicas: o trabalho deve ser pago e a solidariedade não se apregoa. Infelizmente parece que a tendência actual não é esta.
Todos nos pedem para que colaboremos gratuitamente em organizações que levam dinheiro pelo seu trabalho. No princípio da minha vida profissional era muito ingénua, aceitava e depois descobria que alguém tinha "recebido" por me ter conseguido levar aqui ou acolá. E, claro, os convites choviam.
Até que compreendi. A partir do momento em que fui confrontada com esse comportamento, tomei uma decisão que não mais abandonei. Trabalho "pro bono" em tudo o que seja estritamente solidário. O resto, ou é pago ao meu preço, ou não vou.
De nenhum deles faço alarde. Nem do que dou, nem do que me pagam. Mas em qualquer dos casos exijo reciprocidade. Ou seja, quando não cobro, peço declaração de que nada recebi. Quando cobro, passo o recibo verde respectivo. Assim evito dúvidas se terei ou não sido remunerada.
Vem este intróito a propósito dos banhos de água gelada em prol da esclerose lateral amiotrófica, para os quais alguém tentou aliciar-me. Apoiar uma causa, trabalhar por ela, contribuir materialmente, tudo me parece defensável. E pratico, sem alarde.
Fazer disso um movimento colectivo, no qual cada um se presta ao ridículo público e alardeia a sua contribuição, já não é a minha praia, como agora se diz. Além de tudo, tenho sérias dúvidas de que tal comportamento seja o mais dignificante para a instituição em causa.(…).”
 
Acho lindamente que as comissões de praxe tenham, genuinamente, o desejo de serem solidárias, e organizem iniciativas nesse sentido (especialmente para ajudar colegas com dificuldades – poismuitas vezes se apoiam pessoas que desconhecemos, tendo mais perto de si quem precisa), mas devem propor isso como tal, e não anunciarem a coisa como sendo praxe. Muito menos apresentarem tal como de participação obrigatória aos caloiros, porque se os caloiros participam, devem fazê-lo na base de um convite, de uma proposta a que se adere livre e espontaneamente, e nunca como se fosse praxe – até para que o que eles façam seja efectivamente dar, e não fazer que dão.
E digo tal porque, nas redes sociais, já temos uns quantos a reclamar por que razão as televisões não dão cobertura a essas actividades em vez de preferirem noticiar casos de abusos nas praxes.
Lá está: quando tal reclamação se faz ouvir, apenas reforça o sentimento de que, para muitos, as ditas “praxes solidárias” visam mais o mediatismo do que em fazer o bem de forma desinteressada; visam mais a publicidade do acto do que na gratuidade do mesmo.
 
A defesa da Praxe (e falo disso, porque há quem veja nestes actos solidários uma forma de limpar a imagem ou se demarcar das más práticas praxísticas) não passa por operações benévolas a mascarar ou desviar as atenções. O maior bem que se pode fazer na defesa da Praxe é acabar com os abusos e exageros que ocorrem nas mesmas, e não fazer uma iniciativa (em si louvável e merecedora de elogios) que, depois de realizada, deixa tudo como está no que concerne às más práticas.
Não que a colocação de vídeos seja mau, até porque, de certa forma, ajudará a chegar a mais gente e consciencializar as pessoas para os problemas de que o mundo padece, mas como apelo, e não como narcisita exibição de virtudes só para inglês ver. As novas tecnologias usam uma linguagem mais actual, mais próxima da sociedade tecnológica em que vivemos, mas não podemos é cair no erro de trocar a ordem das coisas e perder-se o motivo em detrimento da forma, em que se lançam desafios que depois valem por si, em que o colocar o “like” e o aceitar o “challenge” se sobrepõe, efectivamente, à intenção inicial e fundamental ou serve para anunciar “urbi et orbi” que se é um tipo muito generoso.
Aliás, deixo o seguinte para reflexão:
 
 “…Não estou a contestar os vídeos. Eles são uma excelente ideia de se transmitir uma mensagem forte e de se pedir ajuda. Com tantos gritos de ajuda espalhados pelo mundo inteiro, as pessoas só nos vão ouvir se gritarmos de uma forma diferente. E foi o que esta associação fez. O problema é que em muito sítio já se perdeu o verdadeiro significado, a mensagem que era para ser transmitida.
Muita gente fica sentada em casa e sente-se bastante solidária com o mundo porque põe uns "likes" em imagens que aparecem de cães abandonados ou de pessoas que vivem em condições deploráveis: «Coloca um like e estarás a doar com 1 euro.»... Ainda não percebi bem como estas coisas funcionam, aliás, duvido muito que funcionem. Gostava de saber quantas destas pessoas já deram uma moeda ou uma refeição ao sem abrigo que vive debaixo do prédio delas, se alguma vez se dignaram a dar os bons dias.[2]
 
Dito isto, obviamente que nos alegra e satisfaz mais ver este tipo de iniciativa do que assistirmos a certas brincadeiras e exageros. Quanto a essa questão, não restam dúvidas. Mas uma vez mais, é algo a fazer-se em substituição de praxes e não como programa de Praxe ou algo que lhe é inerente.
 
Uma vigília de oração, sei lá, em favor de um preso político por exemplo, organizada por um organismo de praxe, não faz nem da vigília nem da oração assunto de praxe; como aliás uma Missa de Finalistas não é Praxe, mas um acto religioso, inserido numa Tradição Académica (ver artigo sobre a Bênção dasPastas).
 
Venham muitas iniciativas solidárias, que tão precisas são, mas feitas como tal, e com verdadeira generosidade, e não tendo por fim a publicitação no youtube e redes sociais, para conferir à praxe uma imagem de “coisa fixe” e, pior ainda, passar a ideia de que na Praxe cabe tudo só porque se diz que cabe.

Que é óptimo ver nas notícias que os alunos universitários são abnegados e se preocupam com o bem comum, sem dúvida que sim.
Que é óptimo que os alunos promovam iniciativas que visem ajudar quem precisa, pois sem dúvida que sim e aplaudimos de pé.
Mas que tudo isso seja verdadeiramente dádiva, porque a dádiva, a solidariedade, a compaixão por quem sofre não precisa de rótulos, muito menos o da praxe.
Precisa, sim, é de gente que dá, sem ostentar bandeiras, sem megafones e sem esperar fazê-lo para as câmaras...... para que seja realmente gratuito e generoso.


Solidariedade não se mede em shares ou likes.
 
 
 
 


[1] In blogue “Fio de Prumo”, http://hsacaduracabral.blogspot.pt/2014/09/a-solidariedade-e-banhos-gelados.html [em linha], consultado a 30 de Setembro de 2014.
[2] In blogue “Indigo”, http://peacheswhish.blogspot.pt/2014/08/falsa-solidariedade.html [em linha], consultado a 30 de Setembro de 2014.

quinta-feira, setembro 25, 2014

Notas à Bênção das Pastas (Origens e história)

Nota prévia: este artigo vem substituir dois outros dedicados à Bênção das Pastas de Lisboa e Porto, os quais ficam, agora, incorporados neste novo texto.



A Benção das Pastas é, de há largos anos a esta parte, um dos momentos altos dos festejos das Queimas das Fitas (também denominadas de Semana Académica) um pouco por todo o país.
Trata-se de uma cerimónia religiosa inicialmente promovida e destinada a finalistas católicos a quem, com o passar do tempo, a simbologia e prestígio do acto, se foram associando os demais estudantes finalistas, fossem, ou não, crentes.
Tem-se a ideia errada de ser a Benção das Pastas uma cerimónia praxística ou costume da Praxe, quando não o é, nem nunca foi sequer.
A verdade é que a solenidade desse evento cedo cativou os estudantes, mormente a sua maior ou menor afinidade com o catolicismo, a sua maior ou menor fé, a sua relação mais ou menos próxima com a Igreja.
 A Bênção das Pastas gira em torno da Eucaristia de Acção de Graças, pelo sucesso escolar alcançado, e de súplica esperançosa num futuro profissional risonho.
Mas não foi esse lado mais religioso que despertou o interesse de muitos dos estudantes que elevaram este acto a costume e tradição académica, mas, sim, o rito de consagração, em primeiro lugar, e, depois, a bênção, propriamente dita, dentro da pompa e solenidade que, nos festejos da Queima, não existia, de facto, para assinalar o fim dos estudos – algo que nem a entrega de diplomas conseguia oferecer.
Foi, por isso, com naturalidade, que uma cada vez maior adesão se foi registando, tendo, como resposta, por parte da Igreja e associações de finalistas católicos (entidades promotoras e organizadoras), uma abertura “ecuménica” que possibilitou, com o passar dos anos, que fosse o momento especialmente acarinhado pela academia e transformado num dos pontos altos (e o de maior solenidade) dos festejos e tradições académicas.
Com efeito, a Benção das Pastas, continuando a ser uma cerimónia religiosa católica, abre-se paulatinamente a toda a academia, a todos finalistas (crentes convictos, ocasionais ou mesmo não crentes) onde os menos dados à religiosidade sentem, contudo, ser importante participar pelo simbolismo que tal acto adquirira, já, no seio da academia.
 
COIMBRA
 
O primeiro registo de tal cerimónia remonta ao ano de 1930, em Coimbra, como disso nos dá conta Alberto Lamy:
 
“Na capela da Universidade efectuavam-se a Consagração dos Quintanistas ao Sagrado Coração de Jesus (pela 1ª vez, na Sé Velha, a 25 de Maio de 1930, em cerimónia promovida pelos estudantes do CADC) e a Bênção das Pastas.
Havia missa celebrada pelo Bispo-Conde, com presença do reitor e de muitos professores.
Ante o Santíssimo exposto, um dos quintanistas, em nome dos colegas presentes, lia a fórmula de consagração.
Os quintanistas apresentavam as pastas ao Bispo-Conde que dava a bênção geral, começando depois a desfilar perante ele, ajoelhando-se a seus pés. Logo que o quintanista recebia a bênção, deixava o seu nome no Livro de Ouro das consagrações que estava no centro da Capela e se guardava no CADC.
Finalmente, o Bispo-Conde dava a Bênção do Santíssimo.
Terminadas as cerimónias, os quintanistas, com as individualidades presentes, tiravam a fotografia da praxe na escadaria central da Via Latina.
“A Bênção das Pastas é, para o estudante católico, a cerimónia mais solene do seu curso académico. Na hora da partida, depois de váriso anos de trabalho a preparar o dia de amanhã, os finalistas abeiram-se do altar, numa manifestação viril e espontânea de fé, para consagrar a Deus a sua vida e receber dele uma bênção especial para a Pasta em cujas fitas se escrevem os nomes mais queridos[1]”. [2]

 

O N&M, fiel ao seu propósito, procurou algo que documentalmente reforçasse o que o insigne investigador acima mencionava na sua obra, tendo descoberto o seguinte artigo, precisamente a dar conta da 1ª Bênção das Pastas em Coimbra (porventura a 1ª em Portugal).
 
(Gazeta de Coimbra, Ano 19º, Nº 2496,  de 27 Maio 1930, p.2)
 
Igualmente interessante é perceber que, nos primórdios desse acto solene, existia claramente uma separação entre esta cerimónia e demais festejos da Queima, sendo a participação restrita a estudantes católicos, a maioria deles ligados e inscritos nas várias associações do género (algumas delas com uma intervenção social e associativa, peso e prestígio, ao nível da associações académicas).
 Disso podemos dar conta, através do que nos relata António José Sares:

“Festa dos Quintanistas
Os quintanistas católicos celebraram a sua festa de consagração ao S.C. de Jesus, fotografando-se em seguida.
Os quintanistas não católicos também se fotografaram em grupo”.[3]

 

Ao que tudo indica, a abertura à comunidade em geral fica definitivamente reforçada a partir dos anos 60, em razão dos ventos de mudança que sopram do Concílio Vaticano II[4], passando a  Bênção das Pastas  a ser aceite e considerada como uma cerimónia integrante da tradição estudantil, a par com as demais, a qual, por exemplo no Porto, já era comumente aceite como acto que iniciava a própria Queima, como o atestam os títulos de O Comércio do Porto de 1953 e 1955 respectivamente:
"Com a benção das pastas e um sarau para proclamação dos vencedores dos «Jogos Florais» começaram ontem as festas da «Queima das Fitas» dos estudantes universitários do Porto " (1953-05-04)
 "Com a benção das pastas e um sarau artístico para distribuição dos prémios dos «Jogos Florais», iniciaram-se ontem as festas da «Queima das Fitas» dos estudantes universitários desta cidade" (1955-05-09)

 O amigo Zé Veloso adenda ainda o seguinte, comprovando que a inserção da Missa nos festejos da Queima é bastante recente e que passaram mais de 3 décadas até se cristalizar como Tradição Académica em Coimbra:

"Acrescento às considerações do autor do artigo que, no tempo de Gonçalo dos Reis Torgal - 1959 - a cerimónia ainda estava, de facto, fora das festas da Queima. Nesse ano, diz ele que a Benção foi a 4 de Maio e o programa da Queima começou uns 10 dias depois."


 
Benção das Pastas em Coimbra (Sé Nova) na actualidade.
 
 
 
 

LISBOA

 

No que concerne a Lisboa, António Nunes (2013) diz-nos que a 1ª ocorrência de uma Missa de Finalistas teve lugar em Lisboa, em 1926 - o que significaria que a tradição da Bênção das Patas teria origem na capital,  mas não conseguimos, até agora, uma foto de tal ou quaisquer documentos que o comprovem.

Bênção das Pastas dos Quintanistas da FDL,
Diário de Notícias de 3 de Março de 1931

 
Parece-nos, pois, que o cliché acima apresentamos será o primeiro documento fotográfico sobre a Benção das Pastas na capital, a qual se realizou em 1931 (na Igreja dos Mártires), para os "quintanistas de direito"-

A seguir, outro cliché para a bênção dos "finalistas de Direito e Medicina", no ano de 1933, precisamente o mesmo ano em que existe a 1ª referência a esta cerimónia no Porto.
 


(Ilustração, 8º Ano, Nº 6 (174), de 16 Março 1933, p.10 - Hemeroteca Municipal de Lisboa)
 

Segue-se um segundo cliché, datado de 1934, com os quintanistas de Direito.

 


(Ilustração, 9º Ano, Nº 198 , de 16 Março de 1934, p.33 - Hemeroteca Municipal de Lisboa)
 

Na foto de 1936, que abaixo apresentamos (esta, tirada no interior da Igreja), a respectiva legenda já não especifica os cursos envolvidos (porventura porque já os teria congregado a todos), mas apenas que os estudantes são católicos. De notar o número considerável de mulheres que, embora não envergando traje, se apresentam de pasta e fitas.

 
(Ilustração, 11º Ano, Nº 251 , de 01 Junho de 1936, p.26 - Hemeroteca Municipal de Lisboa)


Apresentamos, também, mais 2 imagens da década de 1950, confirmando que esta cerimónia, a par com demais festividades da Queima das Fitas, estavam bem vivas na capital, embora apenas a Missa de Bênção das Pastas reunisse, ao que tudo indica, todos os estudantes (sendo as demais festividades organizadas no seio de cada faculdade).
 
 
Queima das Fitas FDL - Diário Popular,N.º 4523 de 10 de Maio de 1955, p.8.

Benção das Pastas de Lisboa - Diário Popular,N.º 4885 de 13 de Maio de 1956, p.6.
 

Na actualidade, a Missa de Bênção das Pastas, como sucede um pouco por todo lado, é momento de grande celebração, por vezes notícia de telejornais. Lamentavelmente, nomeadamente em Lisboa, é também um verdadeiro circo, com pouco respeito pelo momento, para além do desrespeito à praxis própria.



 

Benção das Pastas em Lisboa (Terreiro do Paço) na actualidade
(com o então Cardeal Patriarca, D. José Policarpo)



PORTO

 
Tal como sucede em Lisboa, sabemos que, na Invicta, esta cerimónia tem  lugar desde, pelo menos, 1933 (e não 1944 como inicialmente se pensava) e que, nos anos 50, se torna parte integrante do programa da Queima das Fitas portuense.
 Relata o artigo abaixo, datado de 1933, que esta cerimónia foi organizada por iniciativa da Associação dos Estudantes Católicos do Porto (em Lisboa, cremos passar-se o mesmo) e que as pastas estavam "...amontoadas numa ampla mesa, ao lado da Epístola".

Depois de abençoadas as pastas, estas foram entregues aos alunos pelos lentes da Universidade.

 


(O Comércio do Porto, de 04 Maio, de 1933, - ref. do Arquivo da UP - AN2-N83-P74)

 
Seguem-se mais 2 clichés, também referentes à Bênção das Pastas do Porto; o primeiro de 1938 e o segundo de 1939, recentemente descobertos pelo N&M.
Note-se que o uso da capa e batina ainda não é, aqui, tido como obrigatório, dado que a etiqueta académica não contemplava, ainda, este tipo de cerimonial.

 


(Ilustração, 13º Ano, Nº 298, de 16 Maio de 1938, p.10 - Hemeroteca Municipal de Lisboa)


(Ilustração, 14º Ano, Nº 322, de 16 Maio de 1939, p.7 - Hemeroteca Municipal de Lisboa)
 

As imagens que se seguem, obtidas no Arquivo Digital da UP, vêm reforçar o que já expusemos, ou seja que a cerimónia da Bênção das Pastas ainda era, de certa forma, algo "à parte", só para alguns, sendo explícitas as referências a "Finalistas Católicos", menções que irão tendencialmente desaparecer, à medida que a cerimónia se abre a toda a academia (e esta a adopta igualmente como o momento mais solene dos festejos de fim de ano).

 
(O Comércio do Porto de 14 de Maio de 1945 - Ref. do Arquivo da UP - AN2-N261-P278)
 



(O Comércio do Porto, de 7 de Maio de 1951 - Ref. do Arquivo da UP - AN2-N618-P480)


(O Comércio do Porto de 10 de Maio de 1958 - Ref. do Arquivo da UP - AN2-N447-P400)
 


Benção das Pastas no Porto (Av. dos Aliados, com a Câmara Municipal ao fundo), na actualidade.
 
A Benção das Pastas é, actualmente, uma cerimónia que envolve milhares de pessoas, o que obrigou a que, em muitas cidades, a mesma ocorresse fora dos locais de culto, tornando "missa campal".
A esta cerimónia está associada a etiqueta da praxis que determina que o estudante se apresente rigorosamente trajado e com a sua pasta fitada (pasta da praxe com 8 fitas).
Um dos costumes que está igualmente associado a esta cerimónia é a de os pais(ou muitas vezes a “cara metade”) oferecerem ao finalista, no fim da Eucaristia, um aramo de flores, preferencialmente com as cores do curso/faculdade.
Mantém-se a bênção por parte do prelado, mas já não existe a apresentação individual dos finalistas ao bispo (ajoelhando-se para receber a bênção), nem a consagração, tal como não existe o registo (assinatura) dos finalistas em livro próprio (o tal “livro de ouro”).
Com efeito, em virtude da massificação, e tendo em conta, também, uma feição “ecuménica” (muitos vão lá, mas sem fé sequer, apenas e só pela cerimónia – a lembrar alguns casamentos de véu e grinalda), a cerimónia aligeirou-se, continuando, ainda assim, a ter a Eucaristia por centro e cerne do acto.


 
Benção das Pastas em Viseu (largo da Sé) presidida por D. António Marto
(actualmente bispo de Leiria-Fátima)

 




Poderá interessar ao leitor o seguinte artigo (AQUI) dedicado à ocorrência da Benção dasBastas nas Escolas do Magistério Primário (tradição iniciada nos anos 50) e que, no caso de Lisboa, explicam o porquê dessa "peregrina" tonteria de usar pastas com dezenas de fitas (em vez das 8, como manda a tradição) e as mesmas apresentarem desenhos e monogramas.



 



[1] Estudos. Juklho de 1948, Ano XXVI (facs. VI-VII), nº 268-269, pág. 390-391.
[2] LAMY, Alberto Sousa – A Academia de Coimbra, 1537-1990. Lisboa, Rei dos Livros, 2ª Edição, 1990, pp. 671-672
[3] SOARES, António José – Saudades de Coimbra, 1917-1933 (Tomo III). Almedina. Coimbra, 1985, p. 5 do ano de 1932.
[4] O Concílio Vaticano II (CVII), XXI Concílio Ecumênico da Igreja Católica, foi convocado no dia 25 de Dezembro de 1961, através da bula papal "Humanae salutis", pelo Papa João XXIII, que o inaugurou no dia 11 de outubro de 1962. O Concílio só terminou no dia 8 de dezembro de 1965, já sob o papado de Paulo VI.

quarta-feira, setembro 17, 2014

Notas ao GORRO ACADÉMICO - dos capigorros ao gorro da praxe.


O que se sabe do Gorro Académico? Qual a sua vigência, origem e diegese?

Muito daquilo que sobre ele se sabe, acaba, contudo, por nem sempre aprofundar a questão.
O amigo João Baeta desde logo se mostrou diligente em trazer à liça alguns dados bibliográficos sobre o assunto, e desde já aqui reproduzimos o conteúdo:

 «GORRO - Cobertura da cabeça, feita de pano preto e de forma cónica, usada pelos estudantes de Coimbra, com a capa e batina, desde que, em 1674, foi proibido o uso do chapéu. Geralmente, caia até ao ombro, como pode ver-se numa fotografia do capigorrão Antônio Nobre. Alguns estudantes usavam-no para guardar sebentas e outro material escolar.
Em 1824, o Reitor da Universidade, Diogo Furtado de Mendonça, fez publicar um edital mandando acrescentar as batinas, que eram muito curtas, e proibir o uso da gravata e colarinhos (batinas fechadas). O, então, estudante de Medicina, Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara escreveu a propósito, o seguinte soneto:

 Agora, sim senhor, viva a batina
Que cobre o rabistel aos estudantes!
Agora, sim senhor! Batinas dantes
Eram saiotes feitos a sarina...

 Te Deum laudamus, sim! Lei tão divina
Deve ser festejada com descantes .
Em Coimbra, Paris, Londres e Nantes
Na Arábia, Pérsia, Argel, Meca e Medina.

 Os cabelos também, à inglesíssima
Supri-los era bom, em cabeleiras
Que fazem uma vista formosíssima!

 Para o gorro também, saco de asneiras
Eu quero uma regforma reverendíssima
Em um grande chapéu d´abrir fileiras!...

Mais tarde, quando o movimento de usar a batina aberta, se tornou irresistível, o Reitor D. João de Alarcão Osório determinou que o uso da capa e batina se mantivesse, porém, era obrigatório gravata e colete pretos. Na cabeça só podia ser usado o gorro.
O gorro contribuía para a valorização estética estudantil, como o demonstra a seguinte quadra do folclore coimbrão:

 
A beleza do estudante
E tal que, por ela, morro!
Gorro e capa, capa e livro,
Livro e capa, capa e gorro.[1]»

 
«A indumentária própria do estudante de Coimbra iniciou-se no século XVI. Capa e longa carapuça que veio até aos meus tempos. Corre um retrato de António Nobre com a longa gorra negra a descer sobre os ombros. Os mestres a usaram até tarde, às vezes servindo de saco de livros.
É facto averiguado que os estudantes do principio do século XVI eram denominados capigorros. A gente mal-humorada da cidade e arredores chamava-lhes capigorrões, talvez por menos simpatia devida à sua conduta nem sempre exemplar.[2]»

 Algumas definições a ter em conta.

 CAPIGORRÃO, s. m. (De capa, e gorrão, augmentativo de gorro). Estudante minorista que usa mantéo e barrete.[3]
CAPIGORÃO – Estudante que ainda usava gorro quando já a maioria o não usava. O gorro deixou de ser usado à volta de 1920. António Nobre foi um deles.[4]

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Adendamos o que os especialistas Félix O. Martin Sarraga e Rafael Asencio Gonzaléz nos dizem na sua obra, “Diccionário Histórico de Vocábulos de Tunas Y Estudiantinas, Así Como de Escolares del Antíguo Régimen"[5], nas páginas 46 e 111, respectivamente:

 
CAPIGORRISTA: Aunque ya en 1604 Jean Palet[6]  lo tiene como sinónimo de “capigorrón – Valet d’écolier (servente de escolar)”, su primera definición la aporta César Oudin[7]  em 167 diciendo “capigorrista ou capigorrón, Vn écolier qui porte le manteau et le bonet, et non pas la robbe longue, valet d’écolier ». No obstante es más tardia la primera vez que aparece este vocablo en el Diccionario de Autoridades es en 1726 dice « es voz vulgar, lo mismo que capigorrón”.

 CAPIGORRÓN: Aunque antes era utilizado este vocablo como sinónimo de capigorrista por Jean Palet (1604) y César Oudin (1607), no es hasta 1729 cuando el Diccionario de Autoridades la define por primera vez, diciendo “el que anda de capa y gorra para poder más facilmente vivir libre y ocioso. Dícese más comúnmente de los estudantes que andan en este trage pegando petardos y vivendo licenciosamente. Es voz vulgar compuesta d elas palabras capa y gorra”.

Supone el escalón más humilde de toda la família estudiantil y se halla compuesta por una heterogénea bolsa de criados, como fâmulos o familiares de los Colegios o en lujosas vivendas com servidumbre que tenían los estudantes “generosos”, recebendo entonces el nombre de “amadrigados y devotos de la sopa conventual”,razón por la cual recebían también el nombre de sopistas, brodistas, caldistas y estudiantones, que sobrevivían realizando algún oficio o trabajo esporádico y de otros recursos menos honestos, como la mendicidade y pequeños actos dilectivos. También conocidos como capigorristas, sopalandas o lameplatos [lambe pratos] (despectivo en Valladolid). Es importante recordar que las constituciones salmantinas [Salamanca] de 1538 prohibían a los estudantes usar gorras o caperuzas pero, em atención a su pobreza, se exceptuaba a “los que sirvieren a outro”.

Desde 1561 capigorrones y gramáticos podían llevar hábitos seglares [seculares], capas y gorras. Posteriormente la Cédula Real de agosto de 1608 permitió a todos los estudantes de Salamanca, Valladolid y Alcalá acompañarse de cuantos criados estudantes quisieren, pero ordenando que éstos no llevaran sotna y manteo sino ferreruelos, sotanillas largas y cuellos bajos. Tampoco los Estatutos de la Universidad vallisoletana del siglo XVI e olvidan de la existência de universitarios humildes de escasos recursos, para éstos se dice “…permitimos que los estudantes muy pobres y los que sirvieren, com licencia del Rector, puedan traer caperuza o gorra o capa, y no de outra manera”.

 GORRA: 1 Metaforicamente significa “el entrometimiento de alguna persona a fin de ser llamada a comer y beber a algún festín o cosa semejante”; el Diccionário de Autoridades de 1734n dice que esto es lo que se dice “entrarle de gorra

GORRA DE FUELLE: Sombrero usado pro estudantes de mediados del siglo XIX que el Diccionario de Autoridades definió por primera vez en 1734, como “gorra” diciendo que es “cierto de cobertura de la cabeza hecha de seda o paño, llena de pliegues de arriba abaxo para ajustarla a la cabeza”.

GORRÓN: El Diccionario de Autoridades de 1734 lo define por primera vez como “estudiante que en las Universidades anda de gorra y de esta suerte se entremete a comer sin hacer gasto”. La misma fuente también aporta que así se llama al “hombre perdido y vicioso que trata com las gorronas y mujeres de mal vivir”. Ver Sopista.”

 
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 Para melhor perceber esta questão dos capigorristas e capigorrones, espreitemos em QVID TVNAE[8]:

 
“Não era raro que os filhos das famílias mais abastadas levassem jovens no seu séquito, sensivelmente da mesma idade, que lhes servissem simultaneamente de companheiros, criados, guarda-costas, moços de recados... O pagamento consistia, muitas vezes, apenas no custeamento das propinas dos jovens, oferecendo se lhes, assim, uma oportunidade de melhorarem as suas condições de vida e ascenderem na escala social. Importa não esquecer que, numa sociedade profundamente iletrada, a posse de alguns conhecimentos, ainda que rudimentares (em especial no âmbito do Direito) eram uma fortíssima mais-valia no acesso a cargos na administração pública. Não raramente, os próprios jovens chegavam a oferecer se para servirem de criados a troco de alojamento e comida, contraprestando pequenos serviços, como o transporte dos livros, a marcação do lugar nas aulas, a compra de mantimentos, o registo de apontamentos, etc. Acontecia, ainda, que alguns manteístas menos previdentes ou mais gastadores se viam na necessidade de entrar ao serviço de outros estudantes mais abastados em troca de comida ou roupa, passando, ainda que temporariamente, a capigorrones. Estes distinguem se dos seus congéneres dos colégios por estarem ao serviço de apenas um estudante, ao passo que os familiares estavam ao serviço de toda a comunidade colegial.

Dissemos que, regra geral, o pagamento era o valor das propinas, mas não o do hábito (traje). Sendo o manteo o hábito mais comum do escolar, ficava fora das possibilidades dos menos favorecidos, pelo elevado custo de confecção. Por autorização dos reitores, estes alunos eram admitidos aos gerais ou às aulas com um hábito ligeiramente diferente: o ferreruelo (em vez do manteo), uma capa de tecido menos nobre e mais curta; e a gorra, em vez do bonete: capa y gorra – capigorrista. Assistindo às aulas lado a lado com os respectivos «amos», tiravam apontamentos e copiavam livros e lições (fazendo lembrar o sebenteiro de Coimbra). Era frequente os capigorrones obterem melhor aproveitamento do que aqueles a quem serviam, chegando, inclusivamente, a dar lhes explicações. Mais de um destes foi convidado a ficar a leccionar na universidade.

A propósito desta diferenciação no hábito e das funções do gorrón, na peça El Mágico Prodigioso, na primeira didascália, Calderón de la Barca escreve:
“Entram Cipriano, vestido de estudante, e Clarín e Moscón, de gorrones, com alguns livros.

Natalia Fernández, na edição comentada da peça, explica:
Os gorrones eram os criados que assistiam gratuitamente às aulas com os seus amos, distinguindo se pela capa e gorra.[9] “.

 
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 Já Alberto Lamy[10] dedica na sua obra um pequeno capítulo ao Gorro (“O Gorro no séc. XIX”) e dele diz:

 “No tempo do Dr. Antão de Vasconcelos (1860-1865), “anda-se de cabelo, apesar de fazer parte do uniforme o gorro, saco preto, que posto na cabeça  cai pelas costas. Empregavam-no em carregar livros, frutas e outros misteres”[11].

Rudolf Schultze, no artigo Die Universitat Coimbra (1865), diz que os estudantes “…andam em cabelo e o gorro que quase sempre trazem na mão e que era antigamente um saco, serve-lhes de chapéu, quando faz muito calor”[12]; Wihelm Wattembachi, na obra Eine Ferienreise nach Spanien und Portugal (Berlim, 1869), refere que os estudantes têm – em vez de chapéu, um saco de setim preto, semelhante ao gorro catalão.

Acha que se eles andam em cabelo, é porque o tal saco os incomoda[13]; Catharina Carlota, Lady Jackson, em Fair Lusitania (London, 1874), informa-nos que – os estudantes têm uma espécie de carapuça que lhes cobre as cabeças, á semelhança das nossas opas azúis (blue coat boys)[14] .

No tempo de Trindade Coelho (1880-1885), “o gorro era já raro pelas costas abaixo, ou caído em cima da orelha. A maior parte andava em cabelo; alguns traziam um pequeno boné preto como os de viagem”[15].

Para L. Passarge, em Aus dem Neu tingen Spanien und Portugal (1884), os académicos – andam quase sempre em cabelo, não mão a carapuça em forma de saco, e que foi originalmente uma sacola de mendigo[16].

Joaquim Martins de Carvalho, n’O Conimbricense, de 15 de Outubro de 1898, escreveu que enquanto uns estudantes “usam gorro comprido, como o regulamento recomenda, outros trazem gorro curto, e ainda outros bóinas, sendo algumas azúis”.
 
Fotografia retirada da revista brasileira Lusitania ("revista illustrada de approximação Luso-Brasileira e de propaganda de Portugal"), n.º 36, de 16 de Julho de 1930. A fotografia aparece inserida numa reportagem fotográfica, por José Mesquita, sobre uma iniciativa de caridade realizada no Porto, a "Venda da Flor". Aí vêem-se dois estudantes de capa e batina: em 1º plano usando boina e em 2º um estudante com a capa no ombro direito. Na respectiva legenda lê-se "Maria Thereza, odorifero cravo dos jardins do Porto, “cravando” um pobre academico".
(Fonte: João Caramalho Domingues, In blogue Porto Académico, artigo de 26 de Julho de 2013)

Manuel de St Aubyn, à direita, no liceu, Coimbra anos 30.
Note-se o uso de boina (neste caso enfiada completamente na cabeça, como gorro pequeno)
(Fonte: acervo de Marinela St Aubyn. Foto publicada no grupo de FB "Pendo d@ Saudade").
 

O gorro, que quase desapareceu, “viria a ressurgir pelos anos 50 muito reduzido, tombando também para cima das orelhas”.
Pelo Código da Praxe Académica de Coimbra (1957), o uso do gorro da praxe é facultativo, o qual não tem borla nem termina em bico”.

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Mas nada como reproduzir o que a este propósito nos diz o Professor Doutor António M. Nunes (historiador), ele que é o maior especialista em matéria de trajes e protocolo académicos, e cuja recente obra[17] deveria ser de leitura obrigatória (sobretudo para certos praxistas que gostam de inventar origens e significados para gorro, traje, insígnias e afins – com que estrumam a formação dos caloiros em matéria de praxe e Tradições Académicas).

Adendaremos algumas imagens (e suas legendas), resgatadas do blogue Virtual Memories[18], entre outras que também fomos recolhendo.

 Desde já, o N&M agradece mais esta preciosa colaboração.

 

O GORRO ACADÉMICO
 

“Introdução

(…) As questões apresentadas são directamente influenciadas por uma visão da indumentária corporativa conforme com as regras de descrição, hierarquização e detalhe próprias da uniformologia militar. Anteriormente ao século XIX, a indumentária consagrada pelas ordens religiosas monásticas, irmandades, confrarias, universidades e Igreja Católica referenciavam as peças ou conjuntos, distinguiam os contextos de uso, indicavam algumas proibições, mas não descreviam com o pormenor próprio dos regulamentos dos séculos XIX e XX, não indicavam as dimensões, não apresentavam os desenhos de apoio à tomada de medidas e confecção e as referências ao aspecto morfológico eram muito genéricas.

Pode dizer-se que são as grandes reformas políticas europeias que na sua vontade de refrear o poder detido pelas instituições católicas conduzem à abolição dos antigos trajes académicos na Europa (França) e na América, à sua reforma total ou parcial, ou à sua substituição por indumentária próxima de modelos militares (caso das grandes escolas politécnicas francesas) e judiciários (escolas superiores italianas brasileiras e espanholas).
 
Escolares (estudantes ou lentes) de Coimbra, naquilo que constituirá o único documento iconográfico sobre o traje académico de Coimbra no século XVI, figurando numa gravura holandesa (de George Braun& Franz Hogenborg) de 1572. In CORREIA, António - “Subsídios para o estudo do trajo dos estudantes de Coimbra”, Rua Larga, n.º 5, Coimbra, 1957, pág. 133.

 

Dois séculos antes das revoluções liberais, a reforma católica nos territórios ingleses e germânicos já tinha provocado alterações na indumentária académica. A reforma anglicana ficará associada ao boné académico professoral conhecido por “Tudor Bonnet”, e nas universidades germânicas e suíças assistiu-se a uma generalização da toga e da gorra luteranas. No caso de Coimbra, nenhum dos antigos chapéus dos estudantes foi oficialmente abolido (conquanto D. João III tenha proibido sem sucesso os sombreiros). Os barretes redondos e quadrados coexistiram com o gorro de pano e com os chapeirões de feltro das ordens monásticas que tinham na cidade os seus colégios). Toda esta variedade acaba em 1834, com a extinção das ordens religiosas, prevalecendo doravante o gorro, peça com presença pública visual desde ca. meados do século XVIII, que por seu turno começará a rarear na década de 1880. Quando o porte obrigatório diário do traje académico foi abolido pelo governo central, em 1910, os estudantes e lentes de Coimbra sabiam que o gorro fazia parte do conjunto, mesmo que tal não se tenha escrito.

 
I-Breve panorama ocidental

 
Em grande parte das universidades e escolas superiores politécnicas europeias os estudantes usam coberturas de cabeça associadas à sua identidade e às tradições nacionais, independentemente deste tipo de chapelaria estar associado à existência de indumentária corporativa.

Nas escolas superiores da Suíça, Áustria, Alemanha, Lituânia, Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia (Studentmossa), Polónia a cobertura de cabeça unissexo mais usada nos grandes momentos do calendário festivo estudantil é o boné de pala, oriundo da tradição militar oitocentista (Ver AQUI e AQUI )

 
As goliardias masculinas de tradição germânica costumam participar nos grandes desfiles com uniforme à cadete, o qual inclui uma barretina de pano, redonda, ornamentada e agaloada (Ver Uniforms andtraditions of german students fraternities).

Esta barretina, de modelo oitocentista, ainda hoje é usada pelos alunos portugueses do Colégio Militar, e entre as décadas de 1890-1920 teve algum uso entre os estudantes liceais portugueses, especialmente em Lisboa e em Évora. Na gíria, o pillbox hat é conhecido por tacho ou tachinho.

 Nas universidades da Bélgica (Ver AQUI), a chapelaria dos estudantes varia entre o boné de pala gigante (La Penne, em Liège) e a barretina de pele de cordeiro semelhante ao pillbox hat, fez islâmico, kippa judaica: La Calotte, na Católica de Louvaina).

 Nas universidades francesas usa-se desde 1888 a gorra preta de veludo (La Faluche), trazida de Bolonha pela legação francesa que esteve presente nas comemorações da fundação da Universidade de Bolonha (Ver AQUI) .

 
Em Itália, os estudantes preferem o chapéu à Robin Hood, de design neo-gótico (La Feluca Goliardica), generalizado por alturas do oitavo centenário da Universidade de Bolonha.

Em algumas universidades inglesas, caso de Oxford, a toga ordinária dos estudantes do sexo masculino é usada com o barrete preto de copa quadrangular e borla franjada (Mortar Board). Em inícios do século XX foi criado um gorro de pano mole para as estudantes (Oxford Ladies Cap). Tem design neo-renascentista, com quatro pontas abertas sobre o crânio e uma virola pregada na zona do pescoço.

 




"Exemplo do Barrete Redondo (Coimbra), ou "Bonete Redondo de Cuatro Picos" (Salamanca, Valladolid) usado por estudantes e lentes das universidades históricas da Península Ibérica, referido em estatutos universitários, literatura académica vária e iconografia, pelo menos desde o século XVI.
Este barrete deixou de usar-se em Coimbra desde o reinado de D. João V, tendo os estudantes abandonado o chapéu de alguidar (sombrero), o barrete redondo e o barrete quadrado em favor do vulgar gorro de pano dos estudantes sopistas e manteístas (num período em que se asseverava praticamente impossível conciliar o gorro em forma de manga com as cabeleiras postiças)."
(Fonte: A. Nunes, in Virtual Memories, artigo de 6-12-2007.)

 
Nas universidades espanholas não há conhecimento do uso de chapelaria estudantil. O porte obrigatório do traje académico multissecular foi oficialmente abolido na década de 1830, estando documentado que desde os últimos anos do século XVIII os estudantes tinham substituído o antigo bonete de quatro picos pelo sombreiro chambergo, um bicórnio napoleónico com os bicos salientes sobre as orelhas. Os membros das tunas/estudantinas usam desde o século XIX um bicórnio de feltro preto de tipo napoleónico, generalizado desde os anos da guerra peninsular. Hoje em dia é raríssimo ver algum tuno espanhol com este chapéu. Muito raramente, poderemos observar nalguns tunos de tradição hispânica presenças pontuais do bicórnio com colher e garfo e do bonete de picos, caso da Tuna da Universidad Mayor Nacional de San Marcos/Peru (Ver AQUI).

 




Presidente e Vice-presidente da Estudiantina Española que esteve em Paris en 1878.
(Fonte: Ilustración Española Y Americana Ano XXII, nº XII, de 30 Março 1878, p213)

 
II-Estabelecimentos de ensino superior portugueses

 
A partir de finais década de 1980, comissões de estudantes de diversas universidades e institutos superiores politécnicos aprovaram trajes corporativos com ou sem chapelaria associada. Estão registadas situações em que a cobertura de cabeça está associada a um traje de estudantes (Universidade do Minho, Universidade da Beira Interior, Universidade do Algarve, Instituto Politécnico de Leiria, Instituto Politécnico de Viseu, Instituto Politécnico de Tomar, Instituto Politécnico de Santarém, Instituto Politécnico de Castelo Branco, Escola Superior Agrária de Coimbra) ou funciona como adereço de tuna (cartola, Universidade de Aveiro; chapéu bolonhês, Infantuna, Viseu).

Nas universidades e escolas superiores portuguesas onde prevalece o uso da capa e batina, os estudantes de ambos os sexos andam em mais de 97% das situações conhecidas sem qualquer cobertura de cabeça. E a Universidade de Coimbra não constitui excepção. Ali, o antigo gorro de pano preto poderá ocasionalmente ser avistado no inverno, em noites friorentas, mas o mais certo é os seus/suas raros(as) detentores (as) não o tiraram do bolso. Sem exagero, pode considerar-se uma peça do enxoval académico praticamente caída em desuso, ergonomicamente pouco sedutora, quase inexistente no arsenal de fotografias disponíveis na internet (onde prevalece despoticamente o anglo-saxónico “Students Icon”) e invisível nos catálogos das casas do pronto-a-vestir.

 
III-Gorro e gorra


O gorro é uma cobertura de cabeça, de radicação masculina, militar e civil, confeccionada em forma de saco ou manga, de comprimento variável, em pano ou croché. Em Portugal, o gorro popular é mais conhecido por barrete ou garruço nos meios campesinos, piscatórios e tauromáquicos. Foi uma cobertura de cabeça amplamente generalizado no século XIX e no primeiro quartel do século XX entre agricultores, cavadores, campinos, lenhadores e pescadores da orla litoral[19]. O modelo popular era confeccionado em pano preto, verde ou vermelho, com uma orla em torno do crânio e remate de borla. Na tradição popular espanhola, o gorro é conhecido por barretina, com dobra preta e corpo vermelho, sem borla. Os gorros ibéricos eram expressivamente longos nos séculos XVIII e XIX, tendo encurtado na passagem para o século XX. Usavam-se tombados pelas costas, lançados para o lado direito ou esquerdo ou com a ponta na direcção da testa. Dado a ter em conta, nas figurinhas populares dos presépios montados nos finais do século XVIII, o gorro masculino é por assim dizer inexistente.

Na Catalunha, o gorro popular ficou associado à ideologia republicana e à luta contra o centralismo de Madrid, tendo sido comparado com o simbolismo do barrete frígio.

 
A gorra pode ter as formas de boina, de boné e de carapuça. No geral possui copa afeiçoada ao crânio, podendo comportar palas, rebuços, virolas e borlas.

Estas coberturas de cabeça obedeciam às regras de etiqueta das demais coberturas de cabeça masculinas quanto à forma de descobrir-se, cumprimentar, entrar em determinados recintos e estar presente em determinadas cerimónias.
 

"Estudante da Universidade de Coimbra com traje preto de abatina, capa e gorro. Mangas acanhoadas, muito estreitas.
Aguarelas coloridas da década de 1830, acervo do Arquivo Municipal de Coimbra.
(Fonte: A. Nunes, in Virtual Memories, artigo de 05-05-2013.)"

"Estudante da Universidade de Coimbra, tinta e china e aguarela sobre papel evelhecido
Esta gravura foi reproduzida na década de 1950 e editada nas páginas da revista Rua Larga (1957 e ss.), num artigo do Dr. António Correia dedicado aos percursos do traje estudantil coimbrão.
Erradamente atribuído como sendo do séc. XVIII, é, na verdade, um trabalho realizado entre finais da década de 1840 e o meado do decénio de 1850. O gorro académico apresenta ainda a antiga virola que se há-de manter pelo menos até à geração de Antero de Quental/Eça de Queirós. A abatina, de 19 botõezinhos de crina, é de um só corpo, muito cintada, efeito realçado com umas tiras de pano que se apertavam atrás das costas com uma fivela. As meias altas e calções estão praticamente ocultos pelas polainas de baeta pretas que tapam o peito dos sapatos e prendem por baixo das solas. O calçado é de morfologia oitocentista. A capa, de tipo grande mantéu ibérico, ainda acusa a presença do cordão de borlas"
(Fonte: A. Nunes, in Virtual Memories, artigo de 11-06-2014.)

"Escolares de Coimbra com a abatina tradicionalizada na década de 1870, litografia da casa Palhares. Os gorros, que também eram usados pelos lentes, demoram compridos, atingindo bons 50cms. Bizarro? Bem, o gorro tanto cobria a cabeça como servia de mochila, levando livros, folhas, sebentas e materiais de escrita e até um revolverzito se fosse preciso."
(Fonte: A. Nunes, in Virtual Memories, artigo de 11-12-2010.)
Quatro maneiras de usar o gorro/barretina em Espanha
 
O estudante quintanista da Universidade de Coimbra Diogo Bettencourt, oriundo da ilha Terceira (?), Açores com traje de abatina, capa e gorro. Foto do álbum de curso, ano letivo de 1868-1869.
(...)
Gorro de pano muito singelo, comportando ainda a clássica virola que Deus tenha, e fundo arredondado, mas sempre sem borla. A ponta do gorro está deitada para a frente, tal como a usavam os camponeses espanhóis. Calças compridas invisíveis. O Dr. António José Soares achava que os estudantes desta época se faziam fotografar sentados para não mostrar as calças compridas pois a foto de fim de curso era uma foto de grande gala e as calças compridas eram um acessório vulgar que não gozava do estatuto de rigor atribuído aos calções.
(Fonte: A. Nunes, in Virtual Memories, artigo de 27-03-2013).
 

IV-Chapelaria estudantil ibérica estatutária

 
Nas universidades da Península Ibérica, bem como nas universidades católicas integradas nos territórios coloniais (México, Lima, Manilla) foram consagrados nos estatutos dos séculos XV-XVII-XVIII dois tipos de coberturas de cabeça. O piléus quadradus ou barrete/bonete armado de quatro arestas/picos e o pileus rotundus ou barrete/bonete redondo. O primeiro tinha base circular, era armado em cartão e forrado de tecido. A copa ostentava quatro arestas que podiam ser pontiagudas, três cristas e uma borla central. O segundo tinha base circular, ilharga cilíndrica e copa igualmente circular, podendo ser rematado com quatro cristas e borla central. Estes barretes não tinham uma conotação religiosa católica específica. Eram chapelaria de uso comum entre estudantes universitários, professores, juízes, advogados, padres e alunos dos seminários católicos. Salvo determinação em contrário eram estofados e forrados a preto, pois as cores só eram admitidas a partir do momento em que se tomavam os graus académicos.

 
O barrete/bonete quadrado tem abundantíssima iconografia desde o século XVI, não havendo dúvidas quanto à evolução da sua morfologia, confecção e ornamentação. Apenas dizer, que os chapeleiros franceses dos séculos XVIII e XIX inventaram uma variante deste barrete que se podia fechar, até ficar totalmente espalmado, que com um ligeiro toque de mão se voltava a abrir.

 Quanto ao barrete/bonete redondo, as coisas são um bocadinho mais complicadas. A iconografia é muito escassa, embora tenham sobrevivido variantes deste modelo na Universidade de Lisboa, nalgumas comunidades judaicas e entre alguns pastores luteranos. Temos avistado barretes em que a base é mais estreita do que a copa, com e sem cristas superiores, com e sem borla, forrados de lã, veludo e seda.

Uma variante destes dois barretes é o modelo poligonal de seis e de oito faces, mantido nas universidades espanholas, que era também o barrete dos advogados portugueses, espanhóis e franceses, bem como de algumas comunidades judaicas. Era a cobertura dos professores da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, que passou em parte para a Universidade do Porto, estando ao presente caído em desuso.

Fora dos contextos cerimoniais requeridos pela etiqueta palaciana, os estudantes estavam autorizados a usar gorras de pano dentro de casa e chapéus de aba larga nos passeios, caçadas e viagens.

 George Braun e Franz Hogenborg, na sua vista da cidade de Coimbra, de 1572 (Ilustris civitas Conimbriae in Lusitannia ad flumen Mundam effigies vulgo Mondego), registam dois estudantes, um com o clássico barrete quadrado, outro com o sombreiro conhecido na tradição oral por chapéu de alguidar, em tela forrada de tecido ou em feltro preto. Este traje vem referenciado com muita fantasia no filme Camões (1946), de Leitão de Barros (Ver AQUI).

 Coberturas de cabeça praticamente idênticas encontramo-las na Universidade de Salamanca entre finais do século XVI e a primeira metade do século XVII. Martín de Cervera, num conjunto de pinturas assinadas nas portas da biblioteca da USAL (1614) regista as indumentárias então usadas pelos estudantes civis e pelos estudantes afiliados em congregações religiosas, bem com as coberturas de cabeça. Confirma-se os barretes quadrados e os sombreiros pretos de aba larga numa altura em que era autorizado na Alma Mater Salmanticensis entrar nos gerais e assistir às lições com a cabeça coberta. Contudo, no caso da Alma Mater Conimbrigensis, uma provisão régia joanina determinava que “os estudantes dessa universidade não estejam daqui em diante nas escolas ao tempo das lições nem nos atos públicos com sombreiros” (1546).

 Nem todos os colégios obrigavam ao porte de chapelaria. Por exemplo, no colégio dos Órfãos da Conceição, na USAL, os estudantes andavam de loba branca, com beca azul pendente e cabeça descoberta. Contrariamente ao que se tem escrito desde o liberalismo oitocentista, os trajes e insígnias não tinham como objectivo promover a igualdade entre os alunos. Havia notórias diferenças de condição social, fortuna, códigos de vestir, formas de tratamento e estilo de vida entre os estudantes em toda a Europa e nas escolas superiores coloniais.

 
Estudantes de condição social elevada e bolsa desafogada podiam instalar-se com cavalos, carruagem, criados, usando padrões de seda e loba com mantéu grande e chapéus armados. Estudantes civis de humilde condição ou em situação económica vulnerável usavam hábito talar de lã, em vez do mantéu grande um meio mantéu e no lugar do barrete o gorro. Em Espanha, os capigorristas/capigorrones ficaram associados a uma condição pouco prestigiada de serviçais dos estudantes afortunados e a andarilhanças pelas portarias dos mosteiros à hora da distribuição da sopa.

 
Por conseguinte, entre os estudantes civis, havia-os de loba/mantéu/barrete e havia-os de loba/capa/gorro.

 As aulas começavam ordinariamente no dia de São Lucas, a 19 de outubro, e findavam pelo São João, a 24 de junho. Ainda antes do começo das aulas, era obrigatório nas universidades ibéricas e britânicas ir fazer a matrícula e o juramento em hábito talar. Durante o período de aulas, o porte do hábito talar era obrigatório para todos os alunos matriculados.

 No que respeita à UC, o traje ordinário dos estudantes civis era o de loba e mantéu com barrete, praticamente idêntico ao salmanticense, com as variantes loba aberta e loba fechada.

 Haverá que distinguir aqui os estudantes que pertenciam a congregações religiosas masculinas, os quais vestiam os hábitos das suas casas, bem com os chapéus em uso. Na tradição universitária europeia, os hábitos talares religiosos de alunos e docentes eram e são para todos os efeitos equivalentes aos académicos, mesmo que por omissão ou desconhecimento não figurem em estatutos, regulamentos e códigos de praxe.

Percorrendo os estatutos e regulamentos que regeram a UC, constatamos:


·        nos Estatutos Manuelinos, fala-se apenas na interdição de capuzes e barretes de cores amarelas e vermelhas.
·        pela Provisão de 1539, o rei D. João III dispõe que os estudantes “Nem poderão trazer barretes doutra feição senão redondos.
·        Nos Estatutos de 1597, com matéria inalterada nos de 1653, os estudantes podem trazer “os chapéus e barretes forrados”. “Não poderão trazer barretes de outra feição, senão redondos ou de cantos; nem carapuças, senão as que trouxerem em tempo de dó [luto], no tempo limitado (…)”.

 
-Os Estatutos de 1772, 1901, 1911, 1918, 1926, 1930 e 1988, não integram disposições sobre o modo de vestir dos estudantes.

 Não se conhece regulamento escrito que tenha determinado a substituição das antigas coberturas de cabeça e a sua substituição pelo gorro, nem tal situação seria admissível pois os estudantes eclesiásticos tinham direito ao porte dos chapéus autorizados pelo seu estatuto e congregação.


Estudante da UC no séc. XVIII.

 
Na segunda metade do século XVIII, o gorro de pano seria a cobertura de cabeça mais usada pelos estudantes e docentes civis, sendo embora de ressalvar que não era fácil de meter o gorro nas cabeleiras postiças. O Palito Métrico regista estudantes com vestes de baeta preta “cui longa cabeças/ Carapuça cobrit, touticique passans/Pendurata retro per costas andat abaixo”. O texto não poderia ser mais claro quanto ao porte generalizado do gorro comprido, cuja manga pendia pelas costas. Quase um século mais tarde, Borges de Figueiredo indica que “A batina e a capa, e ainda o gorro, são o traje obrigatório do estudante” (Coimbra antiga e moderna, 1886). Porém, à semelhança de todos os demais cronistas, nada pormenoriza sobre a morfologia desta peça de vestuário, dimensões e índices de uso quotidiano.
 

"Uma boa cartada", quadro de Manuel Maria Bordalo Pinheiro levado à Exposição Universal de Paris de 1878. Estudante com o antigo traje masculino usado na Universidade de Coimbra até 1863: batina curta, calções, meias altas, sapatos de fivela, capa talar, gorro.
In O Occidente n.º 22, de 15.11.1878"
(Fonte: A. Nunes, in Virtual Memories, artigo de 07-11-2011.)
 
 
Para a mesma década, o antigo estudante de Direito José Trindade Coelho (In illo tempore) indica que a maioria dos alunos universitários da sua geração andava em cabelo, quer dizer, na década de 1880 tinha-se generalizado na Academia de Coimbra a moda de andar com a cabeça descoberta. Esta moda, com alguma demora, foi passando aos liceus onde também começara a ser usada a capa e batina, casos de Santarém e de Évora.

 Os registos fotográficos de finais do século XIX e dos anos da 1.ª República falam por si. Nos álbuns fotográficos de curso, o gorro mal aparece. Nas fotografias do primeiro Orfeon Académico (1880-1881) apenas um aluno do grupo ostenta gorro. Na primeira fotografia da Estudantina de Coimbra (1888) constam-se apenas uns seis estudantes de gorro. Numa prospecção que efectuei nos acervos fotográficos da Biblioteca Geral da UC, no Arquivo do Seminário de Coimbra e no Museu Académico de Coimbra, é inegável a moda do andar em cabelo na década de 1880 (A Alma Mater Conimbrigensis na fotografia antiga, 1990).

Estudantina de Coimbra em 1888, na qual figura vários tunos com gorro.

 
O gorro académico cai em desuso. A criação do traje académico feminino nos liceus, nos anos da Grande Guerra, conquanto seja um importante sinal de feminização, não apresenta coberturas de cabeça.

 
É à margem dos álbuns oficiais que vamos encontrar nalguns liceus e na Universidade de Coimbra o recurso a coberturas de cabeça não autorizadas para o conjunto capa e batina. Nos finais da década de 1880 (1888), o jovem caloiro de Direito António Nobre causa sensação por aparecer trajado com um longo gorro e farfalhudo laçarote. Os seus amigos do grupo litérario Boémia Nova aparecem com o tachinho (Alberto de Oliveira) e com o fez (António Homem de Melo), provocando tórridos rumores. Tachinho que também se vê no liceu de Lisboa e no liceu de Évora.

 




"Aluna do Liceu Alexandre Herculano.
Fotografia da aluna Eugénia Soeiro, matriculada no Liceu Alexandre Herculano, do Porto, em 1925. O tailleur preto, está sintonizado com as opções correntes em colégios britânicos, norte-americanos e japoneses da época. "
(Fonte: A. Nunes, in Virtual Memories, artigo de 31-10-2008.)

Foto representando um conjunto de coristas de Revista, encenando estudantes trajadas e usando o "tachinho".
Faz parte da capa da partitura do "Fado Serenata Da Revista",
comercializado por Sassetti & Cª, 54 Rua do Carmo, 58 - Lisboa.
(acervo de Jean-Pierre Silva)


V-Descrição

 
O porte do gorro académico de tipo conimbricense está referenciado em fontes escritas desde o século XVIII e em fontes iconográficas e textuais (século XIX). Foi usado por estudantes e lentes e após a feminização do ensino superior deve ser considerado um adereço unissexo[20]. É tradicionalmente confeccionado em pano preto de lã de bom padrão. O modelo antigo era costurado em forma de cilindro, com uma costura lateral. No interior, era forrado com uma tira de tecido preto com cerca de dois dedos de altura. Quanto ao comprimento, comparando as gravuras e fotografias do século XIX com o regulamento do traje académico publicado pela reitoria do liceu de Santarém, pode indicar-se com elevado grau de rigor uns bem contados 50cm. A extremidade era rematada de forma arredondada e sem aplique de borla. Em torno do crânio levava uma virola sem galão.






"Braacamp Freire como jovem estudante da Universidade de Coimbra, 1867, com sapatos pretos vulgares, calça comprida civil de alçapão, casaca ainda com a carcela de carreira de botõezinhos, colete, camisa branca, plastron e gorro tubular deitado para a nuca ..."
(Fonte: A. Nunes, in Virtual Memories, artigo de 06-11-2010.)

"Estudantes do Liceu de Évora , em 1948,com capa talar, batina e gorro no centro histórico da cidade de Évora. Quadro do pintor granadino José María López Mesquita (1883-1954)."
(Fonte: A. Nunes, in Virtual Memories, artigo de 24-10-2010.)


VI-Função

 
Até à década de 1870 o gorro académico foi considerado em Coimbra uma cobertura de cabeça socialmente distinta e um saco escolar de guarda e transporte de objectos pessoais como livros, armas, comida, tabaco e materiais de escrita.

Na actualidade os chapéus e gorras dos estudantes europeus são amplamente usados e estão associados a um intenso comércio de fitas, emblemas, crachás e pins. Nada disto acontece com o gorro académico de tipo conimbricense, de além de muito difícil de ser visto, não é dado a conhecer aos estudantes Erasmus nem aos alunos dos cursos de férias.

 
VII-Modelo actual

 
Embora não seja correto escrever que o gorro esteve completamente extinto na UC entre 1880-1940, a verdade é que caiu em desuso e contar-se-iam pelos dedos da mão os estudantes que o terão usado nestas décadas. Contudo, o cinema faria ressuscitar o gorro. Em maio de 1943 o realizador António Lopes Ribeiro filmou cenas de estudantes em Coimbra para integração no filme Amor de Perdição. Pretendia-se reconstituir imagens e indumentária da época em que o herói camiliano Simão Botelho teria cursado Leis na Universidade de Coimbra. O ensaiador do TEUC, Paulo Quintela, e alguns estudantes aconselharam Lopes Ribeiro e alguns alunos participaram como figurantes nessas filmagens. Foi estão reconstituído um traje e um gorro com pouco rigor morfológico (muito aceitável, se comparado com a fantasia que são o meirinho e os archeiros da Universidade), e o sucesso de bilheteira do filme influenciou decisivamente a ressurreição do gorro académico entre alguns estudantes de Coimbra (minutos 12 a 14, ver AQUI) .
É esse modelo “amor de perdição” que ainda hoje se confeciona e vende."
 
 
Sugerimos, igualmente, uma visita ao Museo Internacional del Estudiante, cuja colecção é riquíssima, dedicando uma parte do seu vasto cervo à indumentária estudantil (AQUI)

 


[1] Fernando Falcão Machado, 1986:42/43.
[2] Egas Moniz, 1950:15.
[3] Grande Diccionario Portuguez (1873) Domingos Vieira, Volume II - p. 92.
[4] Fernando Falcão Machado, 1986:19.
[5] SARRAGA, Félix e ASENCIO, Rafael - Diccionário Histórico de Vocábulos de Tunas Y Estudiantinas, Así Como de Escolares del Antíguo Régimen, TVNAE MVNDI, Gráficas Minerva de Córdoba S.L., España, 2014.
[6] PALET, Jean – Dictionnaire Copieux de la Langue Espagnole et Française. Mathieu Guillermot. Paris, 1604, pp. 66.
[7] OUDIN, César – Thrésor des deux langues française et espagnole. Marc Orry. Paris, 1607, pp. 112.
[8] QVID TVNAE? A Tuna Estudantil em Portugal, de Eduardo Coelho, Jean-Pierre Silva, João Paulo Sousa e Ricardo Tavares. Euedito, 2011, pp. 50-51.
[9] CALDERÓN – El Mágico Prodigioso. Ed. e notas de Natalia Fernández, p. 69.
[10] LAMY, Alberto Sousa – A Academia de Coimbra, 1537-1990. Lisboa, Rei dos Livros, 2ª Edição, 1990, pp. 657-658.
[11] In Memórias do Mata-Carochas, 36-37.
[12] João Jardim de Vilhena, ob. Cit., vol. II, pág. 46.
[13] Idem, vol. II, pág. 165.
[14] Idem, Vol. I, pág. 64.
[15] In Illo Tempore, 7ª edição, 239.
[16] João Jardim de Vilhena, ob. Cit., vol. II, pág. 125.
[17] NUNES, António Manuel - Identidade(s) e moda, Percursos Contemporâneos da capa e batina e das insígnias dos conimbricenses. Bubok Publishing Ldª, 2013
[18] Também do António M. Nunes.
[19] Impossível, por isso, colocar a origem do gorro académico nas vestes dos campónios, como alguns pretendem insensatamente fazer crer, dado que o gorro estudantil é anterior.
[20] Aqui, descordaremos parcialmente, se atentarmos que a etiqueta e toilette feminina nunca contemplou qualquer tipo de chapelaria com traje (e nem mesmo quando o traje feminino é finalmente oficializado pelo CV da UC, o gorro não é peça referenciada) e muito menos gorros. São, aliás, raras e pontuais as fotos com mulheres trajadas e cobertura na cabeça. As excepções são fotos de estúdio de cariz mais fantasioso do que a reprodução de uma situação corrente e espontânea). Concordaremos que a democratização do ensino deve permitir igualdade de sexos no que toca à indumentária, contudo o traje está historicamente definido para homens e mulheres, pelo que a preservação da cultura e tradição vestimentária apontará mais para que o gorro continue a ser uma peça mais versada para o traje dos rapazes, embora nada impeça o seu uso pelas mulheres.