sábado, março 15, 2014

Notas ao Apadrinhamento do Caloiro (das origens à actualidade)


Muitas são as perguntas que, volta e meia, são colocadas na tentativa de perceber de onde vem a tradição do apadrinhamento na Praxe.

 Vamos tentar fazer alguma luz sobre o assunto.

O Apadrinhamento é uma prática já bem antiga que consistia, grosso modo, no recomendar do novato e algum estudante mais velho, lá da terra, para que este último tomasse conta, orientasse e protegesse o “miúdo” de todas as partidas, usuras e vícios.

Como os estudantes se organizavam em residências (cuja administração era por eles assegurada), era nesse meio fechado e altamente hierarquizado que tudo se jogava.

Na hidalga Espanha, onde temos os registos mais antigos dessa prática, as ditas residências eram conhecidas por “colégios” e, para além do novato ter deveres (faxinas várias), gozava igualmente de direitos, pois os veteranos, por imposição das leis universitárias, tinham de garantir determinadas condições aos alunos mais novos, sendo uma delas o apoio ao estudo[1].

Façamos a viagem ao interior da história, por mão do “QVID TVNAE? A Tuna Estudantil em Portugal”, que claramente nos explica tal fenómeno

 “Havia uma modalidade bastante difundida até meados do séc. xvi: a pupilaje. E entram em cena os famosos bachilleres de pupilos, que tanta tinta têm feito correr, desde os tempos da literatura picaresca aos bits e bytes (e muitos «bitaites»...) da cibernética.
Os bachilleres eram estudantes que, possuindo o grau de bacharel (bachiller), alojavam em suas casas outros alunos menos adiantados nos estudos. Regra geral, o bachiller era aspirante ao grau de doutor ou ao ensino na universidade. A possibilidade de receberem hóspedes, que lhes era oferecida pelas autoridades académicas, constituía uma fonte de rendimentos para o prosseguimento de estudos. Num paralelo com o «Processo de Bolonha», diríamos que haviam concluído a licenciatura e pagavam, assim, o mestrado. Além disso, como a nomeação para uma cátedra se fazia por votação, os pupilos representavam mais uns votos na eleição.
Contudo, esta benesse impunha um conjunto de obrigações: orientar o estudo, organizar a vida em comunidade, vigiar o bom comportamento e incutir bons costumes nos pupilos, fornecer alimentação devidamente regulamentada pelos estatutos da universidade, fazer cumprir as horas de recolher, etc. O pupilero (aquele que alojava os pupilos) foi sobejamente retratado de forma satírica na novela picaresca (Guzmán de Alfarache, La Vida del Buscón) como um avarento que gastava o menos possível das mesadas que os pais dos pupilos lhes enviavam, servindo a pior comida e a mais barata em quantidades irrisórias, equipando os quartos com mobília de péssima qualidade – enfim, transformando a pupilaje num negócio sórdido e rentável.
Os estatutos universitários determinavam ainda que cada bachiller recebesse apenas alunos do mesmo curso ou de cursos afins, para assim estimular o estudo por via das afinidades electivas e intelectuais dos seus pupilos.”[2]



Fica um retrato das origens.
Em Portugal, as residências governadas por universitários (sucedâneas das existentes sob tutela de ordens religiosas – os colégios[3]) ficarão conhecidas, no séc. XIX, por Repúblicas[4].

As repúblicas que surgem em Portugal resultam da necessidade dos estudantes arranjarem uma nova forma de alojamento, após a extinção dos colégios universitários de Coimbra (que criou uma enorme falta de locais para albergar tanto estudante), quando, em 1834, é abolido o Foro Académico. São posteriores, pois, à revolução vintista e consequência da implementação do decreto de Joaquim António de Aguiar, em 28 de Maio de 1834, que extingue congregações, mosteiros, conventos, hospícios, etc.

"República" em razão do governo da residência ser semelhante aos governos dos estados republicanos. Amílcar Castro define-as como “casas onde vivem estudantes por conta própria”[5], dado que era constituída por estudantes e uma ou duas criadas (para lavar a roupa, cozinhar...), devendo prestar contas no fim do mês ao senhorio, controlar as despesas e dívidas dos moradores e a alternância na chefia da residência (às vezes semanal, mensal ou, então, anual).

 Mas voltemos ao fio da história.

Em Portugal, as relações de usura e exploração de novatos por parte dos veteranos era prática também comum à da vizinha Espanha (e outros países com urbes universitárias).

Recorremos, mais uma vez, à obra acima referida, a qual designa o conjunto literário que versa sobre esses costumes e vivências de antanho por “Picaresca Portuguesa”:

 “A mais antiga fonte documental oriunda do meio académico e respeitante à forma de vida dos estudantes é uma colectânea de textos publicados por estudantes de Coimbra, entre 1746 e 1790, e que dá pelo nome genérico de Palito Métrico. Nela se encontra vividamente retratada em primeiríssima‑mão a vida da classe estudantil: as investidas aos caloiros, as artimanhas engendradas pelos mais velhos (e velhacos) para viverem à custa dos outros, os expedientes para suprir a falta de mesadas, os costumes, as modas, a exploração comercial e os logros infligidos aos estudantes pelos habitantes da cidade, a fome, o frio...
Todos os textos pretendem fornecer utilíssimos conselhos aos novatos para que não caiam nos logros dos veteranos, chegando os seus autores ao descaramento de afirmar que um dos logros é justamente a publicação de livros que previnem contra os logros!...
(…)

Ao folhearmos as deliciosas páginas deste «Apontoado de versos macarrónicos latino‑portugueses, que alguns poetas de bom humor destilaram do alambique da cachimónia para desterro da melancolia», vamos compondo um retrato da vida académica não muito diferente daquele que os congéneres espanhóis foram deixando. São as mesmas partidas feitas aos novatos, são os mesmos expedientes de sobrevivência, os mesmos conflitos com as autoridades.
(…)
Num outro texto da autoria de um tal António Castanha Neto Rua, um suposto recém‑licenciado por Coimbra encontra‑se de visita ao pároco de uma remota aldeia. Sabendo que um sobrinho do bom velho padre pretende frequentar a Universidade, oferece‑se o bacharel para aconselhar o mancebo sobre como poupar dinheiro, evitando despesas desnecessárias e burlas de amas, lavadeiras, criados e veteranos – queixas comuns aos dois lados da fronteira.”[6]

O apadrinhamento de hoje sofreu evoluções, nem sempre no sentido correcto, muitas vezes visto como uma forma de relacionamento, ou posse, de um indivíduo como objecto para praxe pessoal.

 O que sabemos é que ele tem por base a convivência em comunidade: as Repúblicas, onde se criavam afinidades (fosse com alguém da mesma terra, fosse por viverem debaixo do mesmo tecto). Recordemos que muitas emancipações (cartas de alforria)[7], ocorriam no seio das Repúblicas:

 “- Tu, e esticou o dedo na direcção de outro, pega nesta espingarda (era uma vassoura velha), põe-na ao ombro e vai fazer guarda, à porta da República. E não te esqueças:- sempre que passar uma gaja boa, grita “às armas”, para nós irmos admirar a bela Dulcineia.
O caloiro destacado, para fazer a guarda, desceu as escadas e foi postar-se à porta, de vassoura ao ombro. De vez em quando fazia ronda, como na tropa, andando de um lado para o outro, mas sempre em frente da República.
De repente, ouvimo-lo gritar:
- Às armas!
Todos corremos para as janelas. E lá ia, na verdade, a passar uma beldade de se lhe tirar o chapéu. (…)
Nesse momento, saía a D. Maria [criada da República], para ir às compras ao mercado.
Consciente da sua responsabilidade, a sentinela apressou-se a apresentar-lhe armas, no mais puro estilo marcial, o que lhe valeu um louvor de todos os presentes. Voltámos para dentro, mas, um ou dois minutos depois, voltou a gritar:
- Às armas!
Todos corremos de novo para as janelas, mas, desta feita, era uma pobre velha, alquebrada ao peso dos anos, que, muito custosamente, subia a calçada.
- Às armas, gritou outra vez o caloiro.
E porque, nesse momento, ela fosse a passar na sua frente, apresentou novamente armas.
- Ah” sua animália, você não vê bem, pro causa do cabresto ou perdeu os óculos?
No entanto, acharam que o caloiro se tinha portado por forma a merecer um segundo louvor e que a piada era, na verdade, de registar, o que lhe valeu ser imediatamente desmobilizado, para se sentar à mesa, com os “doutores”, a tomar o pequeno almoço.[8]

Também pululam invencionismos sem nexo, com doutores a exigirem que os caloiros peçam apadrinhamento por escrito ou outras formas descabidas, em detrimento do pedido pessoal e simples à pessoa. Um “altar” de ridículo no qual se colocam certos praxistas que redobram de presunção, na falta de algum pingo de senso, e humildade.


O Baptismo

 O apadrinhamento tem a sua formalização no “baptismo” (nas festividades da Latada/semana do Caloiro), acto em que o doutor se compromete a orientar e ajudar o novo aluno na sua integração na vida universitária (que não propriamente nas praxes). O caloiro, por sua vez, compromete-se a respeitar e acatar os conselhos daquele que escolheu livremente (a escolha é exclusiva do caloiro), sem que isso implique aceitar formalmente quaisquer abusos ou práticas que atentem à sua integridade.

O baptismo marca, igualmente, o reconhecimento simbólico e jocoso do caloiro como "inter pares", ou seja como académico, como colega, cessando, com o baptismo, a fase de recepção ao caloiro e as praxes ao mesmo.
Apadrinhamento de um Caloiro (à direita).
Pintura de Varela dos Reis, feita na
República dos Paxás, anos 50.
O caloiro não ganha nenhuma designação nova (não existem graus hierarquicos dentro da noção de caloiro: aluno que frequenta o Ensino Superior pela 1ª vez), antes o reconhecimento académico dos colegas mais velhos e a formalização do seu caminho de integração, com a entrada, na sua vida, do seu padrinho ou da sua madrinha.

Praxis do Baptismo

Sendo o “baptismo” um acto solene, copiado ou inspirado das práticas religiosas, implicaria que os doutores estivessem de capa descaída pelos ombros, ao invés de traçada, do mesmo modo que se deveria usar da colher ou, quando muito, o penico, evitando exageros na quantidade de água (daí serem descabidos os duches a que alguns sujeitam os caloiros ou os banhos em lagos, no mar e afins).
O acto solene do baptismo (inicialmente à beira rio, Mondego, mas também em fontenários) será normalmente conduzido por quem tem o ministério da Praxe (indicado para liderar a cerimónia) para aquele acto (o Dux ou outro responsável), cabendo ao padrinho/madrinha, ficar ao lado (e não, como se faz em alguns sítios, baptizar o próprio afilhado - embora neles possa ser delegado, em razão do número elevado de caloiros).

É derramado um pouco e água sobre a cabeça do caloiro, com recurso à colher de pau ou, eventualmente, a um penico, proferindo uma fórmula em latim macarrónico, que poderá andar à volta de algo como "In nomine solenissimae praxis, caloirum (nome) baptizatum est".


Quem pode ser padrinho ou madrinha?


Em rigor, qualquer estudante com possibilidade de também proteger (exercer protecções), ou seja com pelo menos 3 matrículas. Nada na tradição impede que possa ser alguém com menos matrículas, embora seja mais comum a escolha de um estudante já mais avançado nos estudos, em razão da sua maior experiência.



Quantos afilhados se pode ter?

Na prática, e com senso, diremos que não mais de 1a 2 por ano (o que dará cerca de 5 a 10 afilhados apadrinhados no fim do curso (o que já é muito).
Isto porque, como acima deixámos claro, o apadrinhamento é, da parte de quem apadrinha, uma responsabilidade; o dever de acompanhar e orientar, ou seja estar presente e atento.
Seguindo a antiga tradição dos estudantes que recebiam a incumbência de zelar por ouros mais novos, conforme acima mencionámos, citando a obra "Qvid Tvnae", cada aluno que apadrinha deve ter em conta que acompanhar um colega mais novo implica uma dedicação que não se compadece com legiões de afilhados como quem mete dezenas de pins e emblemas "para inglês ver".
Ser padrinho não é uma afirmação de popularidade, mas um serviço que se deve prestar em verdadeira solidariedade académica.
Tal não se consegue apadrinhando às carradas, só para parecer um tipo fixe e popular.
Lá diz o ditado que "quem toca muitos burros, algum deixa para trás". Ser padrinho não é colecionar afilhados.


Pedidos de apadrinhamento

Uma das coisas mais ridículas que temos assistido em algumas "casas" é o facto de ser exigido aos caloiros que o pedido de apadrinhamento se faça através de carta, de um documento escrito ou outra qualquer forma criativa.
Depois variam os tipos, de acordo com a tonteria dos veteranos. Ora é numa língua quem nem eles dominam, ora exigindo que a carta seja escrita de baixo para cima e da direita para a esquerda, ora assim ora assado.

Como forma de gozar o caloiro, em tom de brincadeira, tudo bem. É como mandar o caloiro ir à farmácia buscar pregos.
Mas levar isso a sério, ou seja como procedimento "administrativo" obrigatório, apenas evidencia a estupidez de quem se faz difícil e exige esse tipo de coisa sem nexo.
O pedido faz-se pessoalmente, cara a cara, perante o qual só duas respostas são possíveis: "sim" ou "não".

Não é preciso, porque nem é Praxe (nem de gente equilibrada), andar a inventar "démarches" e papeladas para algo tão simples como responder a uma pergunta/pedido.
Quem deve sentir-se honrado é o padrinho ou a madrinha, em ser escolhido(a) para orientar alguém cuja escolha demonstra reconhecimento pelas qualidades humanas e académicas.
O caloiro, ao escolher alguém, está implicitamente e reconhecer e honrar uma pessoa que vê como exemplo e como capaz de ajudar a ser melhor.
Não se percebe, pois, que os doutores se coloquem num pedestal de presunção bacôca a colocarem obstáculos e provas para que o caloiro se rebaixe q.b. para conseguir algo que se quer simples e sem folclores.
Doutor que se arma em difícil para aceitar um pedido de apadrinhamento está desde logo a falhar como doutor, desde logo por não perceber o apadrinhamento nem respeitar o caloiro na sua escolha livre e sincera. Em certos casos, obrigar alguém a fazer pedidos originais (e de facto reconhecemos a criatividade de muitos deles) chega a ser falta de educação para com quem faz o pedido.

Resumindo: não é Praxe exigir a um caloiro que apresente o seu pedido desta ou daquela maneira. Também não é lícito induzir os caloiros, sugerir-lhes, dar-lhes a entender que os pedidos se fazem mediante apresentação de algo criativo, deixando-lhes a ideia que é da praxe fazer-se desse modo.


 
Protecções

No que toca a protecções, as mesmas são tradicionalmente para com as trupes, pois a partir do baptismo cessam os ritos de recepção e as praxes.
Por vezes sucede que antes do baptismo o caloiro já tenha padrinho (ainda não oficializado, apenas um apadrinhamento "de facto", tal como as uniões). Nada muda com isso.
O padrinho ou madrinha, querendo proteger pode fazê-lo,
 conquanto a protecção se faça segundo a Tradição[9], sabendo-se que as mesmas seguem uma hierarquia de quem pode proteger, como e em que condições isso ocorre.

A ter em conta:


Temos vindo a observar que, em alguns locais, se municiam conceitos algo estranhos, como os de "família de Praxe", estabelecendo, por via dos apadrinhamentos, como que uma relação de parentesco, usando-se designações como "avó" ou "avô" para designar, por exemplo, o padrinho do padrinho (ou madrinha da madrinha).
Tal é totalmente descabido e pernicioso. De Praxe nada tem, e seria importante travar quanto antes essa moda, porque é precisamente assim, a partir de coisas que parecem inofensivas, que se deturpa a Tradição. E como em tantos casos conhecidos, só se está a alimentar que, de futuro, tal venha também a ser propalado como sendo Praxe (e pior ainda, poder vir a integrar alguns códigos).
Evitem-se esse papismos e verdadeiros non-sense.
O Padrinho ou madrinha não é um laço de parentesco, pelo que não se percebe que se queira estabelecer tal relação na Praxe, quando dela isso nunca fez parte.
Haja discernimento, mesmo para com aquilo que parece inofensivo.

Ficam estes dados que, esperamos, possam esclarecer e ajudar.



[1] Um estudo que, em alguns casos, ganha tal qualidade e reconhecimento que alguns colégios serão integrados na própria Universidade, como foi o caso do Colégio Fonseca, em Santigado de Compostela, ou mesmo do colégio da Sorbonne – que dará o seu nome à actual Universidade de Paris. Em Coimbra, isso sucederá com o Colégio Pontifício de S. Pedro, por exemplo.
[2] COELHO, Eduardo; SILVA, Jean-Pierre; SOUSA, João Paulo e TAVARES, Ricardo – QVIDTVNAE? A Tuna Estudantil em Portugal. -  Euedito, Porto, 2011, pp.49-50
[3] Em Coimbra, no séc. XVI, foram fundados 2 colégios: uma para os nobres, o de S. Miguel; e outro para os estudantes “honrados pobres”, conhecido como o “de Todos os Santos”
[4] RIBEIRO, Artur – Repúblicas de Coimbra, Edição do Diário de Coimbra. Coimbra,
[5] CASTRO, Amílcar Ferreira de – A Gíria dos Estudantes de Coimbra – Coimbra: Fac. De Letras, 1947 (suplemento de Biblos), pp.99-100.
[6] Op. Cit, pp. 57-58
[7] A emancipação, por via oral ou registo documental (carta de alforria) determinava que o caloiro ficava isento de quaisquer futuras praxes, pois tinha, em razão da sua graça, de algum feito ou comportamento tido como meritório, sido isento, gozando de total imunidade praxística, embora continuando caloiro.
[8] ABRUNHOSA, Octávio – Coimbra…ontem. Memórias de um estudante (1945-1951). Almedina, Coimbra, 2001, pp. 13-14
[9] No Código de Praxe de Coimbra, de 1957, tais condições estão consagradas no Título XI, artigos 144ª 149.

quinta-feira, março 06, 2014

Notas aos primórdios do Traje Académico Feminino

Mais uma incursão ao blogue do António Manuel Nunes, Virtual Memories,  cujo artigo aqui reproduzimos integralmente, sem mais delongas, apenas sublinhando a destacando os dados que merecem toda a atenção:


"Estudantes do Liceu de Évora com Florbela Espanca (1917)






Grupo de estudantes finalistas do Liceu de Évora, dois alunos de capa e batina, um aluno com farda militar, três alunas com no novo traje académico de capa e tailleur preto criado em 1914-1915.
Esta fotografia vem publicada por Rui Guedes, Fotobiografia [de] Florbela Espanca. Lisboa: Dom Quixote, 1999, p. 107, com identificação dos seguintes elementos: (esquerda para a direita) Francisco da Cunha Marques, Alice Mendes de Morais Sarmento, Florbela Espanca, Lídia Amélia Nogueira, José Rodrigues Candeias, Joaquim da Cruz Margalho. Florbela evocou o seu tempo de estudante no poema "Colegas do passado/Em vossas capas belas/Agoniza o luar das minhas ilusões (...)".

 A fotografia foi tirada em 1917 e deve ser uma das raras que mostra o traje académico feminino na sua formulação primitiva: casaquinho feminino de três quartos, cintado, saia de funil pela meia perna, sapatos pretos, blusa branca, ausência de gravata.

Esta fotografia não vem referenciada por Adília Zacarias e Isilda Mendes, Tuna académica do Liceu de Évora. 100 anos. História e tradições. 2012, nas páginas dedicadas ao traje académico (32-39). Na página 36, escreve-se "Não temos, até à década de [19]30, fotografias em que estejam alunas do Liceu trajadas".
O que a fotografia supra vem demonstrar é que o traje feminino rapidamente se divulgou a partir dos liceus de Lisboa e do Porto aos restantes liceus (1914 e ss.), traduzindo a força de um movimento espontâneo que passou completamente ao lado dos ministros da Instrução Pública e dos reitores dos liceus. Quando o Ministério da Instrução/Educação decide regulamentar o traje estudantil, versão feminina, fá-lo tardiamente, em 1924, e em artigos péssimos que revelam completo desconhecimento da função, importância, características e morfologia dos trajes corporativos.

 Não vemos coberturas de cabeça nesta imagem, mas sabemos que o acessório mais usado nestes anos nos liceus de Lisboa e de Évora foi o tachinho ou barretina de pano preto, igual ao dos alunos do Colégio Militar, que tanto foi usado por alunos como por alunas.

Por último, saliente-se que o processo de criação deste traje liceal (em meados da década de 1940 passará a universitário graças ao Orfeão da UP, quando o seu uso já estava generalizado na maior parte dos liceus portugueses) está perfeitamente inserido no contexto ocidental da época, coincidindo com as fardas desenhadas expressamente para as mulheres que exerceram tarefas colaborativas nas forças militares dos USA, Canadá, Grã-Bretanha e França durante a Grande Guerra (carteiro, enfermeira, condutora de ambulância, Cruz-Vermelha)."

Notas ao Estudo dos Costumes Académicos

Vale a pena trazer à liça o seguinte artigo do nosso muito estimado amigo, António M. Nunes, historiador e consagrado especialista em tradições, protocolo e etiqueta académicas.
Importa em razão da reflexão feita sobre praxes e costumes académicos que, durante tantos anos, foram um "não-tema" na agenda académica.
Hoje, e de há uns quantos anos a esta parte, são já vários, e bons,os estudos e teses sobre estas matérias, permitindo (re)descobrir o património cultural estudantil, de forma mais científica e fundamentada.

Costumes académicos de Coimbra, registados em 1909,
in  Ilustração Portuguesa, Nº 161, de 22 Março 1909, p361

Costumes académicos de Coimbra, registados em 1909,
 in  Ilustração Portuguesa, Nº 161, de 22 Março 1909, p361



"O Leão de Camões

O leão de Camões, inaugurado junto ao Paço das Escolas em 1880. Apontamento de uma fotoreportagem sobre os costumes académicos de Coimbra. Rara figuração do estudante "urso". Por desconhecimento resultante da falta de viagens a outras instituições de ensino superior estrangeiras e de escassa circulação de literatura especializada, as tradições estudantis de Coimbra tendiam a ser vistas nos inícios do século XX como singularidades e casticismos, quando em bom rigor:a) sob diversas formulações e variantes também eram praticadas nas universidades da Alemanha, Suécia, Bélgica e nas faculdades de direito do Brasil;

b) tinham vindo a alastar aos liceus portugueses, ganhando mesmo colorações marcadas pela originalidade (é dificilmente aceitável hoje que nada se soubesse e dissesse sobre as festas Nicolinas dos estudantes do ensino médio/liceal da cidade de Guimarães, ou sobre a popular Festa do Galo das escolas primárias);

c) grande parte dos rituais cíclicos iniciático-punitivos conhecidos em Portugal por praxes, e no Brasil por trotes, eram comuns às escolas militares e quarteis castrenses (ritos iniciáticos, partidas e troças, hierarquias, alcunhas, formas de tratamento, punições);

d) diversas tradições já bem radicadas ou em fase de implementação/invenção em inícios do século XX eram semelhantes às festividades cíclicas realizadas pelas comunidades tradicionais de Portugal, Espanha, Brasil, Bélgica, Itália (caso dos corsos carnavalescos, batalhas de flores em carruagens floridas, queimas e enterros os mais variados).

Nos últimos anos, no Brasil, as faculdades de psicologia e ciências da educação promoveram importantes estudos sobre as vivências estudantis e os trotes (praxes) associadas a processos de afirmação dos matriculandos da classe média e à construção de identidade(s). Indêntico interesse ocorre em França, conquanto colocando a tónica nas relações de poder, nos mecanismos de controle social, nas relações de género e na sempre difícil equação integrar/não integrar, respeitar os direitos humanos/violentar os direitos humanos.
No tempo em que frequentei a Universidade de Coimbra, o professorado rejeitava ostensivamente qualquer hipótese de inclusão destes temas na agenda académica. Havia excepções, é claro, como o saudoso Prof. Joaquim Ferreira Gomes que estudou as instituições de ensino superior, os laboratórios de investigação, os equipamentos científico-laboratoriais, a feminilização do ensino superior e orientou a tese de doutoramento de Manuel Carvalho Prata sobre a academia de Coimbra entre finais do século XIX e os anos inaugurais do século XX. Hoje em dia, esta visão primária e preconceituosa começa a desaparecer. Assimilada a lição bourdieuana, nos últimos vinte anos a sociologia interessou-se pelo estudo dos costumes estudantis. Os investigadores das ciências da educação começaram a explorar os manuais de civilidade e não tarda passarão aos trajes académicos, ritos, festividades, códigos de praxe e instrumentos de construção da identidade do homus academicus. É o que parece anunciar o IX Congresso Luso-Brasileiro de história da Educação, Rituais, Espaços e Patrimónios Escolares que terá lugar em 12-15 de Junho 2012 na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa/Instituto de Educação (http://colubhe2012.ie.ul.pt/).
Fonte: Ilustração Portuguesa, n.º 161, de 22.3.1909

Alguns exemplos:
AAVV - A festa. In: Vértice, n.º 28, Junho de 1990, pp. 7 e ss. (diversos artigos sobre festividades e costumes académicos).
ALBUQUERQUE, Carlos Linhares, e MACHADO, Eduardo Paes - O batizado dos recrutas. Trote, socialização académica e resistência ao novo ensino policial brasileiro. in: Capítulo Criminológico, volume 31, n.º 2, Abril-Junho 2003, pp. 101-127, http://revistas.luz.edu.index.php/cc/article/reviewFile/329/314.
AVELAR, Ediana Abreu - O imaginário da formatura. Um estudo sobre o pensamento dos formandos do curso de direito pertencentes à classe média. Petrópolis: Universidade Católica de Petrópolis, 2007 (tese de mestrado), http://www.ucp.br/html/joomlaBR/images/mestrado/ediana%20abreu%20avelar.pdf.
BLANC, Dominique - Du concours au bizutage. Des rites dans les siciétés secularisées. Paris: École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1999, WWW: http://www.dominiqueblanc.com/index.php?id=29.
BRUNO, Sinésio Ferraz - Vida danificada e trote universitário. Marília, 2003. In: educação em Revista, n.º 6, 2005, pp. 37-50, http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/educacaoemrevista/article/viewFile/597/480.
CARDINA, Miguel - Memórias incómodas e rasura do tempo. Movimentos estudantis e praxe académica no declínio do Estado Novo. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 81, junho 2008, pp. 111-131, http://www.ces.uc.pt/rcc/includes/download.php?id=992.
CARREIRO, Teresa - Viver numa república de estudantes de Coimbra. Real República Palácio da Loucura (1960-70). Porto: Campo das Letras, 2004.
CASTRO, Amílcar Ferreira de - A gíria dos estudantes de Coimbra. Coimbra. Coimbra: Faculdade de Letras, 1947 (Biblos, n.º7).
CASTRO, Celso - O trote no Colégio Naval. Uma visão antropológica. The hazing in the brasilian Navy's College. An anthropological approach. In: Antíteses, Volume 2, n.º 4, jul-dez de 2009, pp. 569-595, http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/1839.pdf.
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CORBIERE, Martine- Le bizutage dans les écoles d'ingénieurs. Paris: Harmattan Éditions, 2003.
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NÓVOA, António, e SANTA-CLARA, Ana Teresa (coordenação) - Os liceus em Portugal. Histórias, arquivos, memórias. Porto: Edições ASA, 2003.
NUNES, Henrique Barreto (e outros) - Tradições académicas de Braga. Braga: Associação Académica da Universidade do Minho, 2001.
PRATA, Manuel Alberto Carvalho - Academia de Coimbra (1880-1926). Contributo para a sua história. Coimbra: Imprensa da UC, 2002 (tese de doutoramnto, 1995).
PRATA, Manuel Alberto Carvalho - A praxe na Academia de Coimbra. Das práticas às representações. In: Revista de História das Ideias, n.º 15, 1993, pp. 161-176.
RAFAEL, Berta Maria Maurício - O Liceu de Santarém no espaço local. 1848-1895. Lisboa: ISCTE, 1999 (tese de mestrado).
RIBEIRO, Rita - As lições dos aprendizes. As praxes académicas na Universidade do Minho. Braga: Universidade do Minho/Instituto de Ciências Sociais, 2000 (tese de mestrado), http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/18;http://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/286/1/ritaribeiro.pdf.
RIVIÈRE, Claude - L'excès festif juvénile tempéré par le rite. In: Socio-Anthropologie, n.º 14, 2004, pp. 1-25, http://socio-anthropologie.revues.org/index381.html.
SILVA, Lucinda Monteiro da - O Liceu de Lamego de 1888-1970. A construção da identidade histórica. Braga: Universidade do Minho, 1999. Editado em livro: O Liceu de Lamego. a construção da identidade histórica. Lamego: Edição da Câmara Municipal de Lamego, 2000.
SIQUEIRA, Vera Helena Ferraz de, e ROCHA, Glória Walkyria de Fátima - Género e relações de poder no trote universitário. Implicações para a cidadania. Florianópolis, 25 a 28 de Agosto de 2008, http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST5/Siqueira-Rocha_05.pdf.
SOUZA, André Peixoto - Do discurso jurídico-académico ao discurso político. Elementos para a constituição de um sujeito político no Império Brasileiro. Curitiba: Universidade Federal de Paraná/Setor de Ciências Jurídicas, 2003, http://dspace.c3sl.ufpr.br/despace/bitstream/handle/1884/25173/D%20AOUZA,%20ANDRE%PEIXOTO%20DE.pdf?Sequence=1.
Universidade(s). História, memória, perspectivas. Actas do Congresso História da Universidade no 7.º centenário da sua fundação, Coimbra, 5 a 9 de março de 1990. Coimbra: Comissão Organizadora, 1991 (5 volumes).
VILLAÇA, Fabiana de Mello, e PALÁCIOS, Marisa - Concepções sobre assédio moral. Bullying e trote em uma escola médica. In: Revista Brasileira de Educação Médica, 34(4), 2010, pp. 506-514, http://www.scielo.br/pdf/rbem/v34n4/v34n4a05.pdf.
ZUIN, António Álvaro Soares - Trote na universidade. Passagens de um rito de iniciação. São Paulo: Cortez, 2002."



Nunes, A. M. - O leão de camões, http://virtualandmemories.blogspot.com/, 21.10.2011.

segunda-feira, março 03, 2014

Notas à praxis da Serenata (década de 1910)





A serenata encheu muitas páginas e muito imaginário académico ao longo dos tempos.
Desta feita, recuamos um século, para nos deliciarmos com um relato bastante pormenorizado sobre a forma como a serenata estudantil ocorria na Coimbra de início do séc. XX, sendo possível, pelo mesmo, perceber algumas diferenças de codificação da praxis associada ao acto, nomeadamente no uso da capa ou mesmo na etiqueta convencionada para o papel feminino.

Com efeito, é durante o Estado Novo, e, depois, a partir da década de 1980, que se estiliza e fixa o imaginário da codificação da serenata:


Coimbra, Costumes Académicos - Serenata, 1901

“… o carácter intimista do conteúdo da mesma aconselha e sugere que tal prática ocorra enquadrado pelo silêncio e pelas penumbras da noite. A quietude é, pois, essencial para que a mensagem que se procura transmitir seja clara entre o emissor e o destinatário. Se o «seresteiro» pretende impressionar alguém, pavoneando qualidades que possam impressionar quem o escuta, é mester que nenhuma interferência exista que possa distrair a atenção deste. Além do mais, a noite é propícia a libertar, em recato, os sentimentos provocados pelo apelo sentimental, bem como a esperada reacção por parte de quem a recebe.
A considerar ainda, nesta vertente nocturna, o carácter espontâneo e não publicitado, não consentido, que a serenata típica contém. Em boa parte das situações, o acto não é desejado pelos circunstantes da destinatária, sendo, até, em muitos casos, quando genuína, um feito presumivelmente proibido – quantas vezes revestido de perigos de integridade física, perpetrados por um qualquer pai ou outro familiar mais zeloso e preocupado com a «honra» da visada ou os sequentes «falatórios» que tal ocasião poderá despoletar no meio em que habita.” (1)



Serenata de Estudantes (Coimbra) 1901-05

Na mesma obra, que acabámos de citar, encontramos a fórmula actualmente em vigor para aquilo que se entende ser um Serenata secundum praxis, tanto para grupos mais pequenos, como para Tunas:

“…deve aproximar‑se do local em silêncio, sem se fazer anunciar, colocar‑se em posição adequada, executar as peças escolhidas sem solilóquios, por período não superior a meia hora, certificando‑se apenas de que o destinatário percebeu a sua presença, abandonando imediatamente a seguir o local da mesma forma que chegou.
Por tradição associativa à matriz da serenata académica coimbrã, deve ter a capa traçada, e os seus elementos identificáveis, a coberto das sombras, a não ser um eventual solista vocal ou a pessoa em nome ou a pedido de quem a serenata está a ser feita.
No caso – algo comum – de o destinatário ou algum dos seus circunstantes oferecer uma recordação ou vitualha, a mesma deve ser recolhida por um dos elementos, com agradecimento polido e em voz baixa, retirando‑se imediatamente para o seio do grupo, com imediata dispersão do local. O consumo ou partilha das oferendas, havendo‑as, nunca seria feita no próprio local, mas a recato e já à distância.” (2)

Mas deitemos o olhar sobre o que motiva este artigo, sobre o relato que nos é feito por R. Calado Salinas (estudante na UC entre 1911 e 1917) sobre como eram as Serenatas (pelo menos até aos anos 20):


“Não havia nada mais tipicamente académico e coimbrão, que uma serenata de estudantes.
         Aí por Maio e Junho, em noites quentes, quando as acácias floriam ainda, entre as onze e meia noite, ouvia-se, às vezes, um dedilhar de guitarra intencionalmente forte e sentimental.
Todos chegavam à janela, e ninguém acompanhava o grupo de quatro ou cinco estudantes, de andar vagaroso e solene, e de capas pendentes dos ombros.
Era da Praxe não estorvar e deixar seguir.
Iam a dizer, de paixão nascente, em simples galanteio, de quadras sentimentais entoadas no silêncio complacente da noite, ou amor tímido de algum estudante, em cumprimentos gentil, de simples madrigal.
 Havia rapazes que cantavam muito bem como o António Menano, Zé Anjos, o Agostinho Fontes, o Alexandre Rezende e o meu irmão. E havia, também, tocadores de guitarra magníficos, como o Chico Menano, o João Nepomuceno Pestana Girão, meu condiscípulo, o Duilio e o Paulo Sá.
       
  Serenata com o António Menano a cantar e o João Girão à guitarra, com um bom acompanhador à viola, era um encanto de se ouvir.
Raras vezes o cantador ou tocador eram interessados na “diligência”.
         Era sempre um amigo que, confidenciado o anceio de um grande amor, os levavam ao Peno, ao Bairro de Santa-Cruz, ou a rua discreta, longe do bulício da cidade.
A serenata era um preito discreto, em que não se cantavam mais que três ou quatro quadras, sempre intencionais e sempre lindas.
Um pouco antes da casa visada, os acordes da guitarra subiam, para avisar.
Os estudantes, com ar de quem passava, iam-se aproximando, vagarosamente, e em frente à casa paravam; a seguir, emocionada, lentamente, numa harmonia em que havia muita nitidez e muita ternura, subia a voz do cantador num convite respeitoso e tentador, para que a rapariga manifestasse que ouvia e até compreendia a intenção da homenagem apaixonada.
Não se acendiam luzes nas janelas, e às vezes, numa sempre, casa desejada, uma cortina franzia-se ligeiramente
Como que por acaso, romanticamente, um vulto destaca-se do grupo, para ser visto.
E as mais das vezes não era preciso, porque era adivinhada a sua presença.
Cantavam-se quadras em que o amor-madrigal, o amor-paixão nascente, ou amor-desespero eram o motivo principal da canção.
Noutras, cantava-se o amor-eterno, em palavras de ternura humilde, calmas e graciosas:

                Dizem que ela envelheceu
                  Mas, p’ra mim é sempre linda,
                  Há astros mortos no céu
                  E a gente vé-os ainda.
Serenata de Estudantes (Coimbra) em  1904-05.
Uma ou outra vez, em janela de casa rica, ou modesta, não se franzia a cortina airosa de um determinada janela, e então, tristemente, a serenata, ia passando, e um coração, ancioso, voltava mais triste” (3)


Imagem do documento original.
Scenas de Coimbra - uma Sereneta
 In O Gorro, Jornal dos Alumnos do Lyceu de Coimbra,
1º Anno, 1º número, 14 de Novembro 1909, p.2



Outros tempos.

O que salta logo à vista é, por exemplo, a menor rigidez na etiqueta do uso da capa (não há convenção ou norma que obrigue a traça-la), bem como o modo como a donzela deve comportar-se (do franzir discreto e recatado da cortina, de então, ao acender/apagar da luz décadas mais tarde).
Por outro lado, também percebemos que nem sempre o acto se faria “às escondidas” (segundo a narrativa, várias pessoas se “ajuntam” para assistir), fazendo-se, até, anunciar (com os acordes das guitarras a subirem de volume, um pouco antes de chegar ao local, por contraposição à chegada “de surpresa” que é hoje praticada).
Podemos, igualmente,  estabelecer a diferença da durabilidade do acto:  muitíssimo curto (3 ou 4 quadras, apenas) há 100 anos,  contra os 3 ou 4 temas inteiros, como actualmente, grosso modo, se preconiza.

Na capa do Notícias Ilustrado (ca. 1931-32),
os estudantes em Serenata,já de capa traçada.
in http://www.facebook.com/l.php?u=http%3A%2F%2Fephemerajpp.files.wordpress.com%2F2010%2F04%2Fdocument-1asdfg-18.jpg%3Fw%3D360&h=ZAQHOcC7A (agradecendo o informe a João Caramalho Domingues)

A forma e codificação foram evoluindo, como se constata. Já os sentimentos, a magia e o imaginário romântico da conquista, da adulação e do mistério….tudo isso permanece, com mais ou menos rigor e seriedade.
 
SERENATA MONUMENTAL



Já noutro âmbito, temos as famosas Serenatas Monumentais, as quais obedecem a uma praxis muito simples, embora a mesma já envolta em ficções e papismos exagerados, nomeadamente quanto à obsessão de tapar os "brancos do traje", coisa que, estranhamente, nem mesmo Lamy reporta ou refere, sinal de que tal convenção não existia até há bem poucos anos (excepto o silêncio e ausência de palmas e o ter de se usar capa traçada):

"A Serenata Monumental, ao cimo das escadarias que conduzem à entrada principal da Sé Velha, o altar do Fado de Coimbra, marca o início das festas da Queima das Fitas.
Integrada nas festas da Queima, pela primeira vez em 1949, a Serenata Monumental é a consagração dos guitarristas e cantores que nela actual.
(...)
É praxe, na Serenata Monumental, não se baterem palmas e os assistentes manterem-se em silêncio até ao final. Os estudantes devem ter a capa traçada e as insígnias pessoais recolhidas.
Após a restauração das tradições (1980), voltou a ser praxe a realização, em seguida à Serenata Monumental, da Ceia dos Boémios (actualmente na cava do Departamento de Química)".(4)

Contrariamente ao que em alguns burgos se diz, não é esta actividade tradicional uma actividade de praxe ou praxística.Nunca assim foi considerada pela Tradição, apesar dos esforços de alguns em quererem praxizar todas as expressões universais, e destinadas a todo o contigente académico, estudantis.A Serenata destina-se aos estudantes finalistas, sem qualquer outra condição ou precedência. O mesmo sucede com muitas outras actividades académicas em que a Praxe tem apenas o papel de orientar o estudante trajado na forma como nelas deve trajar e estar.


Nota: Se existe a ideia de tapar os colarinhos brancos, algo que é muitas vezes consequência da capa passar por cima deles, disparate total será, contudo, arregaçar as mangas (a capa traça-se sobre o tronco e não sobre os membros), algo que vai contra a etiqueta e a Praxe, por não se tratar de um momento informal, mas formal da tradição.


(1) COELHO, Eduardo, SILVA, Jean-Pierre, SOUSA, João Paulo e TAVARES, Ricardo – QVID TVNAE? A Tuna Estudantil em Portugal. Euedito. Porto, 2011, pp291-92
(2) Idem, p.300
(3) CALADO, R. Salinas – Memórias de um estudante de Direito, Coimbra Editora Ldª, 1942, pp.57-59
(4) LAMY, Alberto Sousa, A Academia de Coimbra, 1537-1990, História, Praxe, Boémia e Estudo, Partidas e Piadas, Organismos Académicos. Lisboa, Rei dos Livros, 2ª edição, 1990,p. 673