"DAS LATADAS À FESTA DAS LATAS
(Parte I)
As latadas do final do ano lectivo. A emancipação dos caloiros
Daqui a pouco, quando passar da meia-noite de quarta
para quinta, começará no largo da Sé Nova a serenata que irá marcar o início da
Festa das Latas, cujo ponto alto coincidirá com o corteja da Latada, na próxima
terça-feira. Nos próximos dias o Queimódromo
encher-se-á de malta para assistir aos concertos de um cartaz que, venha quem
vier, será sempre um bom pretexto para manter a animação durante esta espécie de
mini-Queima de Outono.
Quem tenha passado por Coimbra nas décadas de 50/60 e
não mais tenha tido contacto com a vida académica da cidade, deverá abrir uma
boca de espanto perante a notícia que acabo de dar: – Festa das Latas em
lugar de Latada? Serenata? Noites no Queimódromo? Cortejo único? Fará depois
um encolher de ombros e dirá que «a tradição já não é o que era». Nada de mais
errado! As praxes académicas de Coimbra sempre evoluíram ao longo dos séculos, o
que me leva antes a dizer que «a tradição nunca foi o que
foi»!
Aliás, é esta capacidade de adaptação a novas
realidades – Bolonha, aumento do número de Faculdades, presença maioritária das
raparigas, novos contextos socioculturais… – que tem permitido às praxes
manter-se vivas, já que são vivenciadas e não apenas representadas. Custa-me ver
alterações gratuitas da tradição, sem causa que as justifique que não seja a
ignorância. Mas quando as adaptações aos novos tempos são feitas de forma
inteligente e no respeito pelo passado… só tenho de aplaudir.
As Latadas – ou Festas das Latas, como agora são
chamadas, retomando uma terminologia já antes utilizada por Trindade Coelho –
são, porventura, dentro das diversas manifestações praxísticas de Coimbra, as
que mais transformações sofreram, tanto na forma, como no significado/objectivo.
Vamos a isso:
Trindade Coelho (In Illo Tempore, 1902) conta
que, no seu tempo (1880-1885), as coisas se passavam assim: … as aulas de
Direito fechavam-se nesse dia, e à noite, como era da tradição, a rapaziada
tinha de sair pelas ruas de Coimbra – naquela extraordinária inferneira chamada
a Festa das Latas, em que cada um, incluindo os novatos (equivalente aos
caloiros de hoje), que nesse dia ficam “emancipados” e já podem sair de noite
sem protecção, arrasta atrás de si as latas que pôde ir juntando durante o ano,
ou as que comprou na «feira das latas» aos garotos, que vendem uma banheira
velha por um pataco e três cântaros de «folha» por um
vintém!
Essa é a tremenda noite de Coimbra, em que ninguém
prega olho – troça aos estudantes das outras Faculdades, que ainda têm aulas no
dia seguinte –, e que uma vez obrigou a fugir não sei que inglês «touriste», que
berrava de mala na mão, a correr para o caminho-de-ferro, – Doidos! Doidos!
Doidos varridos!
A descrição de Trindade Coelho é consistente
com outras da mesma época. As latadas do Séc XIX – só Trindade Coelho lhes chama
«Festa das Latas» – estavam ligadas ao facto de nem todas as Faculdades terem o
mesmo dia do ponto (último dia de aulas), o que levava os alunos já libertos das
aulas a caçoar dos restantes, através de cortejos barulhentos que os não
deixassem estudar ou dormir em paz. Para além disso, os caloiros que iam tendo o
seu dia de ponto emancipavam-se nessa mesma noite.
Mas a tradição das latadas poderá ter vindo mais de trás e ter alguma relação com as «Soiças» (cortejos trapalhões e barulhentos que foram proibidos em 1541, em face dos desacatos que provocavam). Esta relação é estabelecida tanto por Hipólito Raposo (Coimbra Doutora, 1910) como por Teófilo Braga (História da Universidade de Coimbra… Tomo I, 1982), sendo que este último atribui às latadas igualmente a denominação «Tocar das Latas».
Mas a tradição das latadas poderá ter vindo mais de trás e ter alguma relação com as «Soiças» (cortejos trapalhões e barulhentos que foram proibidos em 1541, em face dos desacatos que provocavam). Esta relação é estabelecida tanto por Hipólito Raposo (Coimbra Doutora, 1910) como por Teófilo Braga (História da Universidade de Coimbra… Tomo I, 1982), sendo que este último atribui às latadas igualmente a denominação «Tocar das Latas».
Com a Reforma de 1901 todos os cursos passaram a
terminar as aulas ao mesmo tempo, deixando de haver razão para a troça. Mas as
latadas continuaram, centradas agora na emancipação dos caloiros, ainda que com
intermitências que, segundo Reis Torgal (Boémia da Saudade, Tomo II,
2003) se ficaram a dever a diversas convulsões políticas e académicas, à I
Grande Guerra e à pneumónica. Sobre este período, há uns quantos depoimentos
publicados em livro, deles se percebendo que, para além de variantes várias,
nunca o essencial se alterou: caloiros a correr por Coimbra afora que nem
loucos, debaixo de um barulho infernal, protegidos da praxe por tudo quanto
fosse elemento metálico barulhento, atado por barbantes ou arames aos
tornozelos, à cintura ou aos pulsos, em busca de uma emancipação que chegaria no
final da corrida. Pelo caminho – fosse ele da Porta Férrea à Portagem ou de
Santa Clara até à Porta Férrea – lá estavam os doutores de piquete, munidos de
bengalas e mocas, tentando fazer soltar as latas, na expectativa de uma imediata
rapadela daqueles que perdessem o seu «escudo protector». Como em todas as
estórias com final feliz, há notícias de confraternizações e abraços entre uns e
outros no final da refrega.
As latadas foram a dada altura transferidas para 27
de Maio e integradas nos festejos da Queima
das Fitas. Branquinho da Fonseca, formado em 1930, conta-nos (Porta de
Minerva, 1947) que havia no seu tempo duas formas de um caloiro obter a
alforria: ou submeter-se à latada ou seguir no cortejo, no carro de um
quartanista. Não é de estranhar: somos um país onde sempre houve duas vias para
tudo…
Por artes que nunca ninguém me conseguiu explicar,
mas que poderão ter a ver com a barbaridade do ritual e a sua progressiva
desadequação à evolução da sociedade, as latadas emancipadoras dos caloiros
desapareceram de cena por volta de 1935 e os caloiros passaram a emancipar-se de
forma menos selvática, tal como eu o fiz em 1963: chegado o cortejo da Queima à
Portagem, pedi a uma madrinha que me tirasse com jeitinho os adesivos da testa,
onde as marcas de mercurocromo deixavam antever as supostas cicatrizes da
recente amputação de um valente par de cornos.
Terminada a época das latadas do final do ano
lectivo, emancipadoras dos caloiros, iniciou-se, uma década mais tarde, a época
das latadas do início do ano lectivo, ligadas à imposição de insígnias. Mas essa
estória fica para o próximo «post»."
Zé Veloso, artigo de 26 Outubro 2011, in http://penedosaudade.blogspot.com/2011/10/das-latadas-festa-das-latas-parte-i.html
Meu nabo, meu grelo
Sinto prazer em tê-lo
Que não há nada mais belo
Que o grelo do nabo
Que o nabo do grelo
Zé Veloso, artigo de 26 Outubro 2011, in http://penedosaudade.blogspot.com/2011/10/das-latadas-festa-das-latas-parte-i.html
"(Parte II)
As latadas do início do ano lectivo. A imposição de insígnias
Vimos na
Parte I deste tema que as latadas do final do ano lectivo, coincidentes com a
emancipação dos caloiros, terminaram por volta de
1935.
Mas como lata
faz barulho e barulho é sinal de festa, as latadas voltaram no final da década
de 40, continuando pelos anos 50 e 60. Só que, desta vez, aconteciam no início
do ano lectivo e estavam ligadas à imposição de insígnias: aos quartanistas que,
a partir desse dia, poderiam colocar na pasta o grelo que tinham posto na lapela
na Queima
do ano anterior; e aos quintanistas que, tendo posto fitas na Queima anterior,
podiam agora exibi-las até à Queima seguinte.
As latadas
eram 5, uma por cada Faculdade de então – Medicina, Direito, Ciências, Letras e
Farmácia – e aconteciam, não necessariamente por esta ordem, às quartas e
sábados, depois de terminados os exames de Outubro.
Para os
quartanistas grelados, os jovens lobos que iriam iniciar o seu ano de glória, a
manhã começava muito cedo, com a visita ao mercado D. Pedro V. Era o reencontro
entre os estudantes e as vendedeiras de hortaliça, a pretexto da compra de um
nabo de rama farfalhuda que se metia na pasta onde o grelo florescia pela
primeira vez. Dali saíamos a cantar uma lenga-lenga já caída no esquecimento da
Academia de hoje,
Meu nabo, meu grelo
Sinto prazer em tê-lo
Que não há nada mais belo
Que o grelo do nabo
Que o nabo do grelo
enquanto, pela cidade, se ouvia já ao barulho dos
Zés Pereiras e do foguetório.
Estes ritos
eram automáticos e ninguém se questionava. Mas eu coloco a questão agora: Por
que carga de água se chamará «grelo» à fita estreita? E que relação intrigante
era esta, entre estudantes e vendedeiras de hortaliça, que levava os primeiros,
no ano que representava o zénite da sua passagem por Coimbra, a ter como
primeiro acto, após a imposição do grelo, uma visita ao Mercado D. Pedro
V?
António
Rodrigues Lopes (A Sociedade Tradicional Académica Coimbrã, 1982) parece
trazer-me a resposta em quatro escassas linhas: O “grelo” seria a
reminiscência de um molho de bróculos que floresceu de uma greve de
hortaliceiras que a academia, solicitada, secundou. Surgiu deste modo, como
símbolo heráldico de reivindicação contra a truculência da Câmara Municipal (in
“À Porta Férrea”, de Serrão Faria).
A greve a
que se refere ARL ficou conhecida pela «Revolta do Grelo». Foi uma insurreição
muito séria, que durou vários dias e chegou a envolver 10.000 manifestantes,
juntando estudantes e futricas
do mesmo lado da barricada. Vamos aos factos: Em 11 de Março de 1903,
insurgindo-se contra o aumento do imposto do selo, as vendedeiras de hortaliça
do Mercado D. Pedro V entraram em greve, no que foram secundadas pelo comércio e
operariado da cidade, ficando Coimbra sem abastecimentos por alguns dias.
Seguiram-se tumultos vários e a intervenção das forças da ordem, vindas de fora,
a qual se saldou por quatro mortos e vários feridos entre os populares e um
morto entre os soldados. A Academia reuniu, declarou-se incondicionalmente ao
lado do povo de Coimbra e organizou uma recolha de fundos para auxiliar as
famílias das vítimas. O Governo encerrou a Universidade a 14 de Março e
determinou que todos os estudantes não residentes saíssem de Coimbra, mas poucos
arredaram pé. As aulas só reabririam a 20 de Abril.
Será que a ida
ao mercado era o ritual inconsciente de um encontro que se repetia, por uma
aliança forjada sessenta anos atrás entre os estudantes e as vendedeiras de
hortaliça? E será que a denominação de «grelo» é alheia a tudo
isso?
À tarde tinha
lugar a latada propriamente dita. Era um cortejo trapalhão, com alguns zabumbas
à mistura, que seguia o mesmo trajecto do cortejo da Queima. Para além dos
grelados e fitados, de capa
e batina e insígnias, desfilavam os caloiros que tivessem sido mobilizados,
razoavelmente mascarados, tipicamente de pijama ou com o casaco do dia-a-dia
vestido do avesso e as calças arregaçadas. Poucas latas havia, para além duns
quantos penicos de esmalte, baixela indispensável das praxes coimbrãs. As
greladas e fitadas seguiam na latada mas as caloiras não eram mobilizáveis. Os
caloiros, que podiam pertencer a qualquer curso, ou seguiam ao serviço de um
doutor que fizesse questão de levar o seu animal de estimação – eu levei um
caloiro que me chegava um penico para aparar a cinza do cigarro e me estendia
uma passadeira de cada vez que decidia ir cumprimentar um conhecido na
assistência – ou faziam parte da legião de porta cartazes, a função mais chata
mas também mais digna, já que os cartazes eram o prato forte da latada; e uma
latada se dizia boa ou má consoante a piada, a classe e o atrevimento dos seus
cartazes.
Em época de
censura, tudo era dito por meias palavras, por frases cândidas que escondiam
malandrice, por frases banais cujo arranjo gráfico poderia sugerir muito mais do
que uma banalidade: Numa altura em que a palavra «Salazar» logo levantaria
suspeitas, poderia o «sal» estar no início da frase e o «azar» no final dela mas
escritos com uma cor que os realçasse. Aí, a censura, ou não entendia de todo ou
não encontrava forma de cortar, fazendo-se, então,
desentendida.
À noite a
festa terminava no Tetro Avenida, já que os seus proprietários deixavam entrar
de borla grelados, fitados e caloiros mobilizados, numa balbúrdia tremenda, um
autêntico salve-se quem puder na busca de um lugar. O Avenida ficava cheio que
nem um ovo, do galinheiro às coxias. Enquanto decorriam os documentários, ainda
os porteiros tentavam controlar as entradas. Mas mal rugia o leão da Metro, a
malta que ainda estava cá fora, como que galvanizada pelo ronco do bicho, logo
fazia saltar os porteiros do lugar antes que fossem as portas a saltar dos
gonzos.
O filme era
quase sempre mauzinho, ainda que, na minha latada, tenha sido o West Side Story,
que nos deixou mudos de espanto. Claro está que mal o Richard Beymer (Tony)
começou a cantar «Maria,
Maria, Maria…», logo do galinheiro alguém pediu uma bolachinha e estalou a
gargalhada geral… Ai, aquele galinheiro! Empoleirados junto ao tecto, mal
enxergavam o ecrã! Mas quando aparecia um decote mais generoso, logo gritavam
para a plateia que dali é que se via tudo.
E hoje em dia
como é? Acabadas as Latadas, aí temos a Festa das Latas, com algumas diferenças
importantes mas não diferindo no essencial, ou seja: uma festa que acontece no
início do ano lectivo e que está associada à imposição de insígnias dos novos
grelados e fitados. Aliás, a denominação oficial da festa deste ano é «Festa das
Latas e Imposição de Insígnias 2011». No entanto, ela serve também para mostrar
os caloiros à cidade e promover o seu baptismo.
Mas o que há,
então, de diferente?
Desde logo, um
cortejo único. Se assim não fora, com o actual número de Faculdades (8) mais os
Politécnicos e outras escolas de ensino superior (mais 8) teríamos latadas até
ao Natal. Mas se o cortejo é único, o grosso da festa prolonga-se por quase uma
semana, fora os preliminares, uma série de «inventos» que a malta organiza,
desde concursos literários e fotográficos a torneios desportivos e peddy-papers,
passando por uma caça ao tesouro em Conímbriga e por umas olimpíadas do
conhecimento sobre Coimbra e a vida académica. São «inventos» que têm para o
caloiro que chega uma função integradora muito mais eficaz do que as mais que
estafadas praxadelas do tipo brincadeiras bobas no meio da
rua.
A abertura
oficial das Festas é marcada por uma serenata que tem lugar às zero horas de
quarta para quinta, sem local fixo mas que se pretende não seja na Sé Velha. Já
foi no Largo da Sé Nova, à Porta Férrea e na Praça Velha. Gosto da ideia de
abrir as festas com uma serenata, acarinhando e perpetuando os fados e
guitarradas e Coimbra. Mas agradar-me-ia mais que a serenata fosse sempre na
Alta, já que é lá o seu espaço natural, por ser na Alta
que reside a fonte de todas as tradições académicas. Mas se até o Hilário
cantava no Choupal, conforme reza o fado que tem o seu nome, quem sou eu para
condenar uma serenata na Baixa?
Como sucedâneo
de luxo dos filmes no Teatro Avenida temos as noites no Queimódromo / Praça da
Canção, com um cartaz de «show business» à escala dos nossos dias, do poder de
compra dos estudantes de hoje e dos interesses comerciais que se movem em torno
das festas académicas, onde cada vez a cerveja mais escorre e o INEM mais
acorre.
Mas é no
cortejo de terça-feira – cerne praxístico das festas – que eu encontro mais
novidades: qualquer estudante universitário pode desfilar – não apenas os novos
grelados e fitados – incluindo as caloiras, que podem agora ser mobilizadas
pelas doutoras. Aliás, penso que a entrada
da mulher em peso naUniversidade terá sido a mola impulsionadora da mudança.
Embora mantendo ainda um cunho reivindicativo e crítico, o cortejo ganhou uma
alegria que não tinha no meu tempo, mais se assemelhando a um desfile
carnavalesco, onde cada curso canta o seus hinos e faz as suas coreografias, com
os caloiros e caloiras vestidos com fantasias de cores garridas.
Para além
disso, existem dois conceitos completamente novos, cuja origem desconheço: o
baptismo de caloiro e o morder do nabo. Quanto a este último, os caloiros,
durante o cortejo, têm de ir mordendo os nabos dos semis, cuja rama é mais tarde
atirada ao Mondego. Quanto ao baptismo, cada caloiro/caloira escolhe, entre os
doutores, um padrinho/madrinha de baptismo (ver Nota no final). Chegados
ao largo da Portagem, a turba dirige-se para essa enorme pia baptismal que dá
pelo nome de Mondego e, fazendo-se uso dos penicos que cada caloiro transportou
consigo durante o cortejo (conjuntamente com uma chupeta), vai de mandar pela
cabeça da caloirada abaixo – «in nomen solenissima praxis caloiro(a)
baptizado(a) est»! – um chapadão de água do rio que, embora não me constando
que seja benta, tem a propriedade de curar na hora uma boa parte das
borracheiras em que o cortejo é fértil. Tudo previsto!
Deixei para o
fim a visita ao mercado D. Pedro V, onde se introduziu, há já mais de uma
década, a triste ideia de que a tradição impunha que o nabo fosse roubado e não
comprado. Em 1/11/2000 li no Diário de Coimbra uma exortação do Conselho de
Veteranos, lembrando que o nabo é para ser comprado e não roubado. Mas, sete
dias mais tarde, o mesmo jornal anunciava, como fazendo parte do programa
oficial da latada, o «Roubo do nabo»…
Estive em
Coimbra há poucos dias e falei com várias vendedeiras do mercado que me disseram
que já se rouba menos… mas ainda se rouba! É uma pena. E é indigno de um
estudante, que assim se diverte no que é o trabalho dos
outros.
Faço votos
para que este estúpido costume – o roubo do nabo – caia rapidamente em desuso.
Seria uma pena que, por brincadeiras inconscientes, fosse posta em causa uma
aliança tão bonita e tão antiga. É que os estudantes de Coimbra aprenderam a ir
ao mercado abraçar as vendedeiras muito antes dos políticos. E não o fizeram
para caçar votos, mas sim por solidariedade.
Nota: A
escolha de um padrinho pode ser inspirada nas descrições do Palito
Métrico, que nos transmitem que era frequente os caloiros colocarem-se sob a
protecção de um veterano “lá da terra” ou que lhes tivesse sido recomendado. "
Zé Veloso, artigo de 03 de Novembro 2011, in http://penedosaudade.blogspot.com/2011/11/das-latadas-festa-das-latas-parte-ii.html
Zé Veloso, artigo de 03 de Novembro 2011, in http://penedosaudade.blogspot.com/2011/11/das-latadas-festa-das-latas-parte-ii.html
7 comentários:
Excelente post, caro Pierre.
A explicação dada para o grelo, se não é verdadeira, é bela e nobre. Só por isso, fica, para mim, por certa - que nestes tristes tempos de prosa é bem precisa alguma poesia.
Posto isto, há também evidentes conotações sexuais nas palavras "grelo" e "nabo". Naturalmente, a música a que o autor dos artigos alude terá certamente aproveitado estas conotações.
Quanto à latada assinalar a emancipação dos caloiros, segundo o que tenho lido, parte a meu ver de um equívoco. Trindade Coelho reproduz no artigo "A Festa das Latas" o célebre programa escrito pelo "Pássaro" (Aux Lates Citoyens). Nele se lê, nos considerandos
"Considerando que estamos emancipados da tutela dos maçudos alfarrábios dos praxistas".
Esta expressão tem sido interpretada da seguinte forma: «os alfarrábios dos praxistas» é o Código de Praxe; portanto, os estudantes - e, por isso, os caloiros - estão emancipados da praxe.
Mas não é assim.
Lembremos: no tempo de Trindade Coelho, "Praxistas" eram os professores, não os alunos. No tempo dele não existia ainda o conceito de "Praxe" que nós temos - e muito menos existia um código de praxe.
O que ele quer dizer é o seguinte: estamos livres da tirania dos chatos calhamaços dos professores: isto é, não temos de estudar mais.
Recorde-se que o curso de Direito terminava as aulas e fazia o ponto - isto é, o exame oral - antes dos outros, pelo que tinham ainda alguns dias para "meter nojo" aos que ainda se viam nos apertos dos exames - Medicina, Teologia, Matemáticas, etc.
No "Palito Métrico" lá se fala da data de 15 de Maio como assinalando o fim das aulas:
«Se os quinze de Maio à porta vires
Tendo feito escritura de teu nome,
Não durmas, não sossegues nem suspires,
Sem que poder em ti a pátria tome»
Imagino que por essa altura estivessem todos muito mais preocupados com os exames do que com chatear caloiros e que, de alguma forma, essa data assinalasse o "fim das hostilidades" - muito embora um soneto no mesmo "Palito Métrico" advirta os caloiros que "até ao lavar dos cestos é vindima", pelo que nenhum se gabasse de não ter sido rapado durante o ano.
Abraço!
Caro Eduardo,
Enquanto autor do artigo DAS LATADAS À FESTA DAS LATAS transcrito pelo Notas & Melodias, quero agradecer-lhe o seu simpático comentário mas, de igual modo, comentar também algumas das opiniões que nele são expressas.
Sobre a verdade que esteja por detrás da hipótese de explicação para o «grelo», também eu digo “era bonito que assim fosse». Mas, por enquanto, mais não sei dizer. O antropólogo e etnólogo que escreveu a «Sociedade Tradicional Académica Coimbrã - Introdução ao Estudo Etnoantropológico» escuda-se atrás do «À Porta Férrea» de Serrão de Faria, livro que não consegui consultar. Porém, um comentário ontem chegado ao «Penedo d@ Saudade» diz-me que Serrão de Faria, que enquanto estudante foi contemporâneo da Revolta do Grelo, não adianta explicações detalhadas para a hipótese que coloca no seu livro de memórias, escrito 42 anos depois daquela insurreição. Aguardemos; como diz o povo, quem muito procura sem encontrar há-de um dia encontrar sem procurar.
Concordo inteiramente com as conotações sexuais que existem entre o nabo e o grelo, sendo que, na citada canção, há ainda um outro jogo de palavras, já que a rama do nabo pode ser confundida, ela própria, com o grelo.
Onde estou bastante em desacordo consigo é quando põe em dúvida que a emancipação dos caloiros estivesse ligada às latadas do final do ano lectivo (Séc. XIX e até aos anos 30 do Séc. XX). E isto porque:
- é o próprio Trindade Coelho que escreve no intróito que faz ao programa do Pássaro: « … as aulas de Direito fechavam-se nesse dia, e à noite, como era da tradição, a rapaziada tinha de sair pelas ruas de Coimbra – naquela extraordinária inferneira chamada a Festa das Latas, em que cada um, incluindo os novatos, que nesse dia ficam “emancipados” e já podem sair de noite sem protecção, arrasta atrás de si as latas…» A emancipação era precisamente isso: poder, finalmente, sair à noite sem protecção, sem estar sujeito a ser rapado!
- eu julgo que esta ligação entre a emancipação dos caloiros e as latadas fosse bastante forte, uma vez que, quando em 1901 todas as Faculdades passaram a ter ponto no mesmo dia, deixando de ter sustentação a razão que primeiramente lhes terá dado origem, as latadas continuaram, e continuaram totalmente centradas naquela emancipação, como nos relatam, entre outros, vários livros de memórias de estudantes daquele tempo: «À Porta Férrea» (Serrão Faria), «Costumes Académicos de Antanho» (Diamantino Calisto) e «Porta de Minerva» (Branquinho da Fonseca).
Um abraço, Zé Veloso
Caro Zé Veloso:
tem inteira razão no que afirma relativamente à emancipação dos caloiros: confesso que tresli essa parte do artigo de Trindade Coelho, mantendo, no entanto, a interpretação que faço daquele considerando do delicioso programa do "Pássaro".
Obrigado pelo reparo e mais uma vez parabéns pelo artigo.
Forte abraço,
Eduardo
Caro Eduardo,
Você mantém a interpretação que faz do considerando do Pássaro, ou seja, que “os praxistas que tutelam os maçudos alfarrábios são os professores”. E eu dou-lhe toda a razão… este dichote só pode estar dirigido aos professores. Acho muito bem observado! É a primeira vez que vejo um tal epíteto atribuído aos lentes (e admito que não fosse usual) mas a interpretação não pode ser outra. E faz muito sentido, se nos lembramos das praxes (costumes, tradições) académicas que eram mantidas pela instituição Universidade, das quais os lentes, em conjunto com o reitor e os verdiais, capitaneados pelo seu meirinho, eram os guardiões: toques da cabra, uso e feitio da capa e batina, proibição dos novatos sairem à noite, orações por tudo e por nada, cerimoniais nas aulas e nos exames, etc..
No entanto, tendo procurado em vários livros de memórias de estudantes que cursaram em Coimbra entre os finais do séc XIX e os inícios do séc. XX, logo, da época de Trindade Coelho, concluí que já nessa altura o termo «praxista» era utilizado para apelidar aqueles que mais se empenhavam na aplicação das praxes típicas de então: canelão, pastada, trupes, investidas, touradas aos caloiros, latadas,…
Quer isto dizer que não é por o Pássaro ter chamado «praxistas» aos lentes que se poderá concluir que a palavra «praxista» se não aplicasse também nessa época (e, no meu entender, sobretudo) aos estudantes.
Aproveito para informar que consegui deitar a mão, finalmente, ao “À Porta Férrea” e que uma primeira leitura – a necessitar ainda de confrontação com outras fontes – dá crédito à teoria sobre a correlação entre o “grelo” e a “revolta do grelo”.
Um abraço
Zé Veloso
Caro Zé Veloso:
no "In Illo Tempore" não aparece uma só vez a palavra "praxe" associada às práticas "repressivas" de estudantes sobre estudantes - tanto quanto me lembro...
A palavra "praxista" só aparece nessa mesma obra duas vezes e referindo-se de amabas vezes a professores: uma é no programa do pássaro; outra é numa nota de rodapé referindo-se a um professor que tinha o costume de cumprir à risca os tempos determinados para as aulas pelo regimento universitário (meia hora de chamada à lição, uma hora de prelecção e mais meia hora de qualquer coisa que já não recordo - nem sei se os tempos seriam estes). Nessa nota, e cito de memória, Trindade Coelho diz que "era o maior praxista que lá havia".
Não tenho memória de outras ocorrências de "praxista" - e muito menos no sentido que a palavra hoje tem. Mesmo quando refere costumes, direitos de protecção (no caso do Saraiva), nunca refere "praxe". Às trupes, chama "a brincadeira das trupes era muito estúpida", por exemplo. Aos direitos de protecção, chama "foros", etc.
Vou procurar localizar as referências exactas para lhas indicar.
Penso - mera conjectura, claro - que o título de "praxistas" passou para os alunos porque, ao "castigar" os caloiros, o veterano estava a "ensinar-lhes" os costumes académicos - eram professores, portanto...
Aliás, nas representações mais antigas dos "símbolos" da "praxe", em vez de colheres de pau aparecem palmatórias...
Enfim, são, como digo e assumo, conjecturas, a necessitar de mais aprofundamento. Peço-lhe que releve eventuais inexactidões nas citações, pois são feitas de memória.
Abraço,
Eduardo
Caro Eduardo,
Nestas coisas do estudo das antigas praxes temos sempre de recorrer a várias fontes, sob pena de ficarmos com uma visão distorcida, por parcial. Vou procurar responder a todos os seus pontos, com o máximo de informação.
1. Sobre se, na época de Trindade Coelho e seu In Illo Tempore - que relata factos que vão de 1880 até, pelo menos, 1899 (Centenário da Sebenta) - já existia e eram usadas as palavras «praxe» e «praxista» com o significado que elas têm hoje e, nomeadamente, associadas às práticas "repressivas" de estudantes sobre estudantes:
- O próprio In Illo Tempore refere no primeiro rodapé do cap. “Baltazar, o Letárgico”: «No meu tempo, ainda a praxe de não passar novato algum à Porta Férrea sem ir protegido …»
- Serrão de Faria (1900-1904), in À Porta Férrea, pág. 2: «aqui estou despido à Porta Férrea … disposto, como velho moço de forcado, a pegar de caras ou cernelha qualquer exalmo praxista que venha de viez ou se encoste às tábuas dando pastada e canelão.”
- Diamantino Calisto (1898-1905), in “Costumes Académicos de Antanho”, escrevendo na forma de um avô que conta a sua história ao neto: pág. 28, depois de explicar a origem das trupes, relacionando-a com o fim das rondas da Polícia Académica, «Ora aqui tens tu, meu maçador, como nasceu a praxe»; pág. 76, depois de descrever ao neto as latadas e as rapadelas que lhes estavam associadas, exclama o neto: «- Mas isso era uma selvageria sem nome!», responde o avô «- Pois era, mas… era a praxe».
- Maria Eduarda Cruzeiro in “Costumes estudantis de Coimbra no século XIX: tradição e conservação institucional”, trabalho de investigação que encontrará facilmente na internet, opina que encontrou a palavra «praxe» em textos académicos pela primeira vez em 1863 e cita um documento de 1872, donde extraio «O Periódico dos Pobres por vezes se ocupou dessas praxes selváticas de à força tonsurar os cabelos, pintar o rosto, romper os vestidos, obrigar a acções ofensivas do decoro e da moral pública».
2. Sobre os direitos de protecção:
- As protecções, bem como as trupes, estão afloradas em mais do que um capítulo do “In Illo Tempore” mas este livro é mais rico nas questões de pândega que nas questões praxísticas, sendo, até, algo fraco quanto à caracterização destas últimas. Para conhecer mais a fundo as praxes do final do séc. XIX / início do séc.XX, incluindo trupes, limitações de andar na rua para os diversos graus da hierarquia e protecções que lhes estavam associadas, recomendo-lhe o livro “Costumes Académicos de Antanho”, que já referi acima. É muito completo e bem ilustrado.
- O grito de «- Está protegido!» aparece já nas “Memórias do Mata-Carochas” de Antão de Vasconcelos, o qual cursou de 1850 a 1855, altura em que às praxes ainda se não chamava praxe.
- Quando diz que Trindade Coelho “aos direitos de protecção chamava foros”, penso que estará equivocado. Admito que a confusão venha da referência que TC faz a propósito dos «foros» (ou seja, dos direitos) que o Saraiva das Forças tomava para si ao proteger quem muito bem entendia sem que tal lhe competisse.
3. Quando à sua conjectura de «que o título de "praxistas" passou para os alunos porque, ao "castigar" os caloiros, o veterano estava a "ensinar-lhes" os costumes académicos - eram professores, portanto...», receio dizer-lhe que, ao que conheço, não tem qualquer suporte documental. Todos os estudos sérios que conheço sobre as origens da praxe académica – o de Maria Eduarda Cruzeiro é apenas um exemplo - apontam noutras direcções.
4. Surpreendeu-me a afirmação «Aliás, nas representações mais antigas dos "símbolos" da "praxe", em vez de colheres de pau aparecem palmatórias...», por nunca a ter encontrado anteriormente. Se me puder indicar as fontes em que se baseia agradeço-lhe bastante.
Um abraço,
Zé Veloso
Excelente post! Adorei!
Acho que só está aí um ponto errado, os Caloiros mordem os nabos dos Candeeiros, não dos Semis, pois são estes que o transportam na sua pasta que, no fim de atirarem a rama ao Mondego se tornam Candeeiros Grelados!
Adorei a história sobre o Grelo, adorava que fizesse um post sobre a origem do nabo e de morder o nabo e seu significado!
Como sempre, parabéns pelo blog! :)
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