Na maré de disparates que se têm dito no
debate actual sobre a Praxe Académica, impõe-se uma reflexão mais ou menos
séria sobre os princípios sobre os quais assenta a Praxe.
Importa fazer desde já uma ressalva. Na
presente reflexão, entraremos em linha
de conta apenas com a noção de Praxe Académica tal como foi cristalizada pela
vivência académica em Coimbra, tendo sido posteriormente transmitida ao Porto
e, em certa medida, a Lisboa (até aos anos 1930), a partir da formação de
institutos e escolas de ensino médio e superior nestas duas cidades.
É o que designaremos, para efeitos da
presente reflexão, por "praxe de matriz coimbrã" ou simplesmente
"Praxe".
No presente artigo, "Praxe" será sempre usada no sentido de "conjunto de normas que regulamentam as relações entre estudantes" - nunca "gozo ao caloiro" ou "sanção".
CRÍTICAS À PRAXE
A crítica à Praxe assenta essencialmente no
seguinte:
- a Praxe promove a desigualdade entre os estudantes;
- a Praxe assenta numa hierarquia rígida que privilegia o número de matrículas (a burrice) em detrimento do mérito;
- a Praxe promove a violência e a coacção.
Para sermos isentos, temos de admitir que o
discurso e a prática dos praxistas autorizam estas observações.
Lamentavelmente, a maioria dos críticos e um número demasiadamente grande de praxistas
estão convencidos de que assim é, ignorando quer os contextos históricos e
sociais, quer a evolução e os mecanismos de consolidação e cristalização de
práticas quotidianas em tradições. Não só ignoram como desprezam olimpicamente
qualquer reflexão sobre o passado.
Quando abordamos a Praxe, é importante
fugir das definições de dicionários e pseudo-dicionários, e analisar não só o conteúdo
dos códigos de Praxe, mas, e acima de tudo, os relatos de antigos
estudantes (como o Palito Métrico, o In Illo Tempore ou O Livro do Doutor Assis).
É igualmente importante ter em conta a
massa humana que nos tempos mais recuados frequentava a Universidade. É preciso
ter ainda em conta o ordenamento jurídico nacional até pelo menos meados do
século XIX.
Comecemos por este último ponto.
Até às grandes reformas jurídicas
promovidas pelo Liberalismo vintista, com Mouzinho da Silveira à cabeça, ao
longo do chamado Antigo Regime, havia leis diferenciadas, de acordo com o
estatuto social (ou Estado) a que os cidadãos pertenciam. Eram os chamados
"foros". Podemos afirmar, sem risco de estarmos muito errados, que
havia uma lei para ricos e outra para pobres. Se nos nossos dias existe essa
percepção, em tempos passados era uma realidade.
A população universitária era constituída essencialmente por aqueles que tivessem posses para pagar as propinas: filhos de nobres,
filhos de mercadores ricos ou filhos de lavradores abastados, para além de
membros das ordens religiosas e militares.
Encontravam-se, assim, reunidos num mesmo
espaço jovens oriundos de diferentes Estados ou Ordens sociais: Clero, Nobreza
e Povo, cada qual sujeito a (ou usufruindo de) foros especiais.
Na rígida hierarquia social vigente, os diferentes
elementos teriam de tratar-se de acordo com fórmulas extremamente elaboradas -
de "Vossa Senhoria" a "tu", de acordo com o "degrau
social" em que se encontrassem.
Os regulamentos universitários encontraram
formas de esbatimento destas diferenças. Uma delas foi a introdução de um
uniforme académico, que acabou por ter uma dupla função: por um lado, distinguir os
universitários face à população em geral, permitindo a identificação dos que
usufruíam do Foro Académico; esta intenção teve um outro efeito: produzir uma igualdade
a nível horizontal, entre os estudantes, uma vez que as diferenças de
nascimento e condição não se faziam sentir por via da forma de vestir.
Para além dos regulamentos institucionais e paralelamente a estes, os estudantes desenvolveram eles mesmos
formas de nivelamento entre si.
Ao chegar à universidade, o estudante era
"Novato", não o filho do sr. Conde ou o sobrinho do pároco. No 2.º ano, era um pé-de-banco; no 3.º, um candeeiro - e por aí adiante.
Sujeitos
à mesma lei comum, os estudantes desenvolveram e vivenciaram, muito antes da lei civil, o
princípio democrático da isonomia: a igualdade perante a lei.
Assim, em épocas
de profundas desigualdades, os estudantes cultivaram e mantiveram uma tradição
democrática e - no contexto do Antigo Regime - revolucionária.
Na "micro-sociedade" académica,
todos eram iguais perante essa lei. O estudante era sujeito, por assim dizer, a
um "banho" de democracia e igualdade pelo menos durante o tempo que
frequentava Coimbra. Assim se compreende que a Praxe só tenha validade dentro
dos limites da cidade (tal como previsto no Código da Praxe de Coimbra e no Projecto
de Código da Praxe Académica do Porto de 1983): havia a consciência de que as
regras aplicáveis no meio universitário eram diferentes das que se aplicavam
fora.
É, portanto, falso que, na sua essência e
origem, a Praxe seja anti-democrática e promova desigualdades. Muito pelo
contrário. As práticas e costumes que estão na base daquilo a que actualmente se dá o nome de Praxe foram precursores na aplicação do princípio da isonomia, que, criado na democracia ateniense e enunciado pelos teóricos da Revolução Francesa, haveria de demorar mais de um
século a entrar na ordem jurídica portuguesa. Repare-se, por exemplo, na atitude provocatória
dos antigos estudantes ao darem o nome de "república" - em tempos de
monarquia - às suas casa comuns.
É um facto que a Praxe impõe uma hierarquia
rígida entre os estudantes: os do 2.º ano têm mais direitos que os do 1.º; os
do 3.º mais direitos do que os do 2.º - e por aí adiante. Além disso, quem tem
mais matrículas tem um grau mais alto na hierarquia.
Os detractores da Praxe dizem que esta
hierarquização promove os que menos estudam - os "mais burros",
portanto.
Têm, de certa forma, razão - e mais uma vez
foram os praxistas quem lhes deu razão.
No entanto, estão redondamente enganados -
eles e quem lhes deu razão.
Nas últimas décadas, assistiu-se à
valorização do número de matrículas como critério absoluto e que se sobrepõe a
qualquer outro na "mobilidade social" académica.
Na verdade, os "direitos" em
Praxe vão-se conquistando à medida que se progride no curso, não com a simples
acumulação de matrículas. Este critério só serve de factor de desempate e critério de precedência entre
estudantes que se encontram no mesmo ano curricular.
Segundo a Praxe, só se atinge o grau de
Veterano quando se usou o grelo. Isto significa que se passou de metade do
curso. Por mais matrículas que tenha, um aluno a quem não tenha sido imposto o
grelo não pode ser veterano. E mesmo que um aluno grelado seja veterano, não
está acima de um aluno fitado que o não seja - por exemplo, num tribunal de
Praxe.
O número de matrículas não é, por si só, um
"mérito": acima disto está o progresso escolar do aluno.
É falso, por isso, que a Praxe promova a
incompetência e a burrice. A Praxe é, na
sua essência, meritocrática.
O abuso de certas "habilidades"
(como a dos veteranos por mérito académico) perverteu a lógica do sistema. De
facto - e contra a própria história e tradição - a prática actual acaba por
promover a incompetência, a repressão e a subordinação acriterial.
Os costumes que se vieram a condensar em "Praxe Académica", têm, por isso, fundamento em valores de
democraticidade, igualitarismo e meritocracia.
Lamentavelmente, aquilo a que actualmente
se assiste em muitos casos constitui uma inversão dos valores basilares: uma
hierarquia imposta e mantida em nome de uma ignorância e prepotência gratuitas,
ao arrepio da própria tradição que tantas vezes - e até com boas intenções - se
pretende defender.
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