O
que se sabe do Gorro Académico? Qual a sua vigência, origem e diegese?
Muito
daquilo que sobre ele se sabe, acaba, contudo, por nem sempre aprofundar a
questão.
O amigo João Baeta desde logo se mostrou diligente em trazer à liça alguns dados bibliográficos sobre o assunto, e desde já aqui reproduzimos o conteúdo:
«GORRO - Cobertura da cabeça, feita de pano
preto e de forma cónica, usada pelos estudantes de Coimbra, com a capa e
batina, desde que, em 1674, foi proibido o uso do chapéu. Geralmente, caia até
ao ombro, como pode ver-se numa fotografia do capigorrão Antônio Nobre. Alguns
estudantes usavam-no para guardar sebentas e outro material escolar.
Em
1824, o Reitor da Universidade, Diogo Furtado de Mendonça, fez publicar um
edital mandando acrescentar as batinas, que eram muito curtas, e proibir o uso
da gravata e colarinhos (batinas fechadas). O, então, estudante de Medicina,
Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara escreveu a propósito, o seguinte soneto:
Que cobre o rabistel aos
estudantes!
Agora, sim senhor! Batinas dantes
Eram saiotes feitos a
sarina...
Deve ser festejada com
descantes .
Em Coimbra, Paris, Londres e
Nantes
Na Arábia, Pérsia, Argel,
Meca e Medina.
Supri-los era bom, em
cabeleiras
Que fazem uma vista
formosíssima!
Eu quero uma regforma
reverendíssima
Em um grande chapéu d´abrir
fileiras!...
Mais
tarde, quando o movimento de usar a batina aberta, se tornou irresistível, o
Reitor D. João de Alarcão Osório determinou que o uso da capa e batina se
mantivesse, porém, era obrigatório gravata e colete pretos. Na cabeça só podia
ser usado o gorro.
O gorro contribuía para a valorização estética
estudantil, como o demonstra a seguinte quadra do folclore coimbrão:
A beleza do estudante
E tal que, por ela, morro!
Gorro e capa, capa e livro,
Livro e capa, capa e gorro.[1]»
«A
indumentária própria do estudante de Coimbra iniciou-se no século XVI. Capa e
longa carapuça que veio até aos meus tempos. Corre um retrato de António Nobre
com a longa gorra negra a descer sobre os ombros. Os mestres a usaram até
tarde, às vezes servindo de saco de livros.
É
facto averiguado que os estudantes do principio do século XVI eram denominados
capigorros. A gente mal-humorada da cidade e arredores chamava-lhes
capigorrões, talvez por menos simpatia devida à sua conduta nem sempre exemplar.[2]»
CAPIGORÃO – Estudante que ainda usava
gorro quando já a maioria o não usava. O gorro deixou de ser usado à volta de
1920. António Nobre foi um deles.[4]
Adendamos
o que os especialistas Félix O. Martin Sarraga e Rafael Asencio Gonzaléz nos
dizem na sua obra, “Diccionário Histórico
de Vocábulos de Tunas Y Estudiantinas, Así Como de Escolares del Antíguo
Régimen"[5], nas
páginas 46 e 111, respectivamente:
CAPIGORRISTA: Aunque ya en 1604 Jean Palet[6] lo tiene como sinónimo de “capigorrón – Valet
d’écolier (servente de escolar)”, su primera definición la aporta César Oudin[7] em 167 diciendo “capigorrista ou capigorrón,
Vn écolier qui porte le manteau et le bonet, et non pas la robbe longue, valet
d’écolier ». No
obstante es más tardia la primera vez que aparece este vocablo en el
Diccionario de Autoridades es en 1726 dice « es voz vulgar, lo mismo que
capigorrón”.
Supone
el escalón más humilde de toda la família estudiantil y se halla compuesta por
una heterogénea bolsa de criados, como fâmulos o familiares de los Colegios o
en lujosas vivendas com servidumbre que tenían los estudantes “generosos”,
recebendo entonces el nombre de “amadrigados y devotos de la sopa
conventual”,razón por la cual recebían también el nombre de sopistas,
brodistas, caldistas y estudiantones, que sobrevivían realizando algún oficio o
trabajo esporádico y de otros recursos menos honestos, como la mendicidade y
pequeños actos dilectivos. También conocidos como capigorristas, sopalandas o
lameplatos [lambe pratos] (despectivo en Valladolid). Es importante recordar
que las constituciones salmantinas [Salamanca] de 1538 prohibían a los
estudantes usar gorras o caperuzas pero, em atención a su pobreza, se
exceptuaba a “los que sirvieren a outro”.
Desde
1561 capigorrones y gramáticos podían llevar hábitos seglares [seculares],
capas y gorras. Posteriormente la Cédula Real de agosto de 1608 permitió a
todos los estudantes de Salamanca, Valladolid y Alcalá acompañarse de cuantos
criados estudantes quisieren, pero ordenando que éstos no llevaran sotna y
manteo sino ferreruelos, sotanillas largas y cuellos bajos. Tampoco los
Estatutos de la Universidad vallisoletana del siglo XVI e olvidan de la
existência de universitarios humildes de escasos recursos, para éstos se dice
“…permitimos que los estudantes muy pobres y los que sirvieren, com licencia
del Rector, puedan traer caperuza o gorra o capa, y no de outra manera”.
GORRA DE FUELLE: Sombrero usado pro
estudantes de mediados del siglo XIX que el Diccionario de Autoridades definió
por primera vez en 1734, como “gorra” diciendo que es “cierto de cobertura de
la cabeza hecha de seda o paño, llena de pliegues de arriba abaxo para
ajustarla a la cabeza”.
GORRÓN:
El Diccionario de Autoridades de 1734 lo define por primera vez como
“estudiante que en las Universidades anda de gorra y de esta suerte se
entremete a comer sin hacer gasto”. La misma fuente también aporta que así se
llama al “hombre perdido y vicioso que trata com las gorronas y mujeres de mal
vivir”. Ver Sopista.”
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“Não
era raro que os filhos das famílias mais abastadas levassem jovens no seu
séquito, sensivelmente da mesma idade, que lhes servissem simultaneamente de
companheiros, criados, guarda-costas, moços de recados... O pagamento
consistia, muitas vezes, apenas no custeamento das propinas dos jovens,
oferecendo se lhes, assim, uma oportunidade de melhorarem as suas condições de
vida e ascenderem na escala social. Importa não esquecer que, numa sociedade
profundamente iletrada, a posse de alguns conhecimentos, ainda que rudimentares
(em especial no âmbito do Direito) eram uma fortíssima mais-valia no acesso a
cargos na administração pública. Não raramente, os próprios jovens chegavam
a oferecer se para servirem de criados a troco de alojamento e comida,
contraprestando pequenos serviços, como o transporte dos livros, a marcação do
lugar nas aulas, a compra de mantimentos, o registo de apontamentos, etc. Acontecia,
ainda, que alguns manteístas menos previdentes ou mais gastadores se viam na
necessidade de entrar ao serviço de outros estudantes mais abastados em troca
de comida ou roupa, passando, ainda que temporariamente, a capigorrones. Estes
distinguem se dos seus congéneres dos colégios por estarem ao serviço de apenas
um estudante, ao passo que os familiares estavam ao serviço de toda a
comunidade colegial.
Dissemos
que, regra geral, o pagamento era o valor das propinas, mas não o do hábito
(traje). Sendo o manteo o hábito mais comum do escolar, ficava fora das
possibilidades dos menos favorecidos, pelo elevado custo de confecção. Por
autorização dos reitores, estes alunos eram admitidos aos gerais ou às aulas
com um hábito ligeiramente diferente: o ferreruelo (em vez do manteo), uma capa
de tecido menos nobre e mais curta; e a gorra, em vez do bonete: capa y gorra –
capigorrista. Assistindo às aulas lado a lado com os respectivos «amos»,
tiravam apontamentos e copiavam livros e lições (fazendo lembrar o sebenteiro
de Coimbra). Era frequente os capigorrones obterem melhor aproveitamento do
que aqueles a quem serviam, chegando, inclusivamente, a dar lhes explicações.
Mais de um destes foi convidado a ficar a leccionar na universidade.
A
propósito desta diferenciação no hábito e das funções do gorrón, na peça El
Mágico Prodigioso, na primeira didascália, Calderón de la Barca escreve:
“Entram Cipriano, vestido de
estudante, e Clarín e Moscón, de gorrones, com alguns livros.
Natalia
Fernández, na edição comentada da peça, explica:
“Os gorrones eram os
criados que assistiam gratuitamente às aulas com os seus amos, distinguindo se pela
capa e gorra.[9]
“.
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Rudolf
Schultze, no artigo Die Universitat Coimbra (1865), diz que os estudantes
“…andam em cabelo e o gorro que quase sempre trazem na mão e que era
antigamente um saco, serve-lhes de chapéu, quando faz muito calor”[12];
Wihelm Wattembachi, na obra Eine Ferienreise nach Spanien und Portugal (Berlim,
1869), refere que os estudantes têm – em vez de chapéu, um saco de setim preto,
semelhante ao gorro catalão.
Acha
que se eles andam em cabelo, é porque o tal saco os incomoda[13];
Catharina Carlota, Lady Jackson, em Fair Lusitania (London, 1874), informa-nos
que – os estudantes têm uma espécie de carapuça que lhes cobre as cabeças, á
semelhança das nossas opas azúis (blue coat boys)[14]
.
No
tempo de Trindade Coelho (1880-1885), “o gorro era já raro pelas costas abaixo,
ou caído em cima da orelha. A maior parte andava em cabelo; alguns traziam um
pequeno boné preto como os de viagem”[15].
Para
L. Passarge, em Aus dem Neu tingen Spanien und Portugal (1884), os académicos –
andam quase sempre em cabelo, não mão a carapuça em forma de saco, e que foi
originalmente uma sacola de mendigo[16].
Joaquim
Martins de Carvalho, n’O Conimbricense, de 15 de Outubro de 1898, escreveu que
enquanto uns estudantes “usam gorro comprido, como o regulamento recomenda,
outros trazem gorro curto, e ainda outros bóinas, sendo algumas azúis”.
O
gorro, que quase desapareceu, “viria a ressurgir pelos anos 50 muito reduzido,
tombando também para cima das orelhas”.
Pelo
Código da Praxe Académica de Coimbra (1957), o uso do gorro da praxe é
facultativo, o qual não tem borla nem termina em bico”.
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Mas
nada como reproduzir o que a este propósito nos diz o Professor Doutor António
M. Nunes (historiador), ele que é o maior especialista em matéria de trajes e
protocolo académicos, e cuja recente obra[17]
deveria ser de leitura obrigatória (sobretudo para certos praxistas que gostam
de inventar origens e significados para gorro, traje, insígnias e afins – com
que estrumam a formação dos caloiros em matéria de praxe e Tradições
Académicas).
Adendaremos
algumas imagens (e suas legendas), resgatadas do blogue Virtual Memories[18],
entre outras que também fomos recolhendo.
O GORRO
ACADÉMICO
“Introdução
(…)
As questões apresentadas são directamente influenciadas por uma visão da
indumentária corporativa conforme com as regras de descrição, hierarquização e
detalhe próprias da uniformologia militar. Anteriormente ao século XIX, a
indumentária consagrada pelas ordens religiosas monásticas, irmandades,
confrarias, universidades e Igreja Católica referenciavam as peças ou
conjuntos, distinguiam os contextos de uso, indicavam algumas proibições, mas
não descreviam com o pormenor próprio dos regulamentos dos séculos XIX e XX,
não indicavam as dimensões, não apresentavam os desenhos de apoio à tomada de
medidas e confecção e as referências ao aspecto morfológico eram muito
genéricas.
Pode
dizer-se que são as grandes reformas políticas europeias que na sua vontade de
refrear o poder detido pelas instituições católicas conduzem à abolição dos
antigos trajes académicos na Europa (França) e na América, à sua reforma total
ou parcial, ou à sua substituição por indumentária próxima de modelos militares
(caso das grandes escolas politécnicas francesas) e judiciários (escolas
superiores italianas brasileiras e espanholas).
Dois
séculos antes das revoluções liberais, a reforma católica nos territórios
ingleses e germânicos já tinha provocado alterações na indumentária académica.
A reforma anglicana ficará associada ao boné académico professoral conhecido
por “Tudor Bonnet”, e nas universidades germânicas e suíças assistiu-se a uma
generalização da toga e da gorra luteranas. No caso de Coimbra, nenhum dos
antigos chapéus dos estudantes foi oficialmente abolido (conquanto D. João III
tenha proibido sem sucesso os sombreiros). Os barretes redondos e quadrados
coexistiram com o gorro de pano e com os chapeirões de feltro das ordens
monásticas que tinham na cidade os seus colégios). Toda esta variedade acaba em
1834, com a extinção das ordens religiosas, prevalecendo doravante o gorro,
peça com presença pública visual desde ca. meados do século XVIII, que por seu
turno começará a rarear na década de 1880. Quando o porte obrigatório diário do
traje académico foi abolido pelo governo central, em 1910, os estudantes e
lentes de Coimbra sabiam que o gorro fazia parte do conjunto, mesmo que tal não
se tenha escrito.
I-Breve panorama ocidental
Em
grande parte das universidades e escolas superiores politécnicas europeias os
estudantes usam coberturas de cabeça associadas à sua identidade e às tradições
nacionais, independentemente deste tipo de chapelaria estar associado à
existência de indumentária corporativa.
Nas
escolas superiores da Suíça, Áustria, Alemanha, Lituânia, Dinamarca, Finlândia,
Noruega e Suécia (Studentmossa), Polónia a cobertura de cabeça unissexo mais
usada nos grandes momentos do calendário festivo estudantil é o boné de pala,
oriundo da tradição militar oitocentista (Ver AQUI e AQUI )
As
goliardias masculinas de tradição germânica costumam participar nos grandes
desfiles com uniforme à cadete, o qual inclui uma barretina de pano, redonda,
ornamentada e agaloada (Ver Uniforms andtraditions of german students fraternities).
Esta
barretina, de modelo oitocentista, ainda hoje é usada pelos alunos portugueses
do Colégio Militar, e entre as décadas de 1890-1920 teve algum uso entre os
estudantes liceais portugueses, especialmente em Lisboa e em Évora. Na gíria, o
pillbox hat é conhecido por tacho ou tachinho.
Em
Itália, os estudantes preferem o chapéu à Robin Hood, de design neo-gótico (La
Feluca Goliardica), generalizado por alturas do oitavo centenário da
Universidade de Bolonha.
Em
algumas universidades inglesas, caso de Oxford, a toga ordinária dos estudantes
do sexo masculino é usada com o barrete preto de copa quadrangular e borla
franjada (Mortar Board). Em inícios do século XX foi criado um gorro de pano
mole para as estudantes (Oxford Ladies Cap). Tem design neo-renascentista, com
quatro pontas abertas sobre o crânio e uma virola pregada na zona do pescoço.
Nas
universidades espanholas não há conhecimento do uso de chapelaria estudantil. O
porte obrigatório do traje académico multissecular foi oficialmente abolido na
década de 1830, estando documentado que desde os últimos anos do século XVIII
os estudantes tinham substituído o antigo bonete de quatro picos pelo sombreiro
chambergo, um bicórnio napoleónico com os bicos salientes sobre as orelhas. Os
membros das tunas/estudantinas usam desde o século XIX um bicórnio de feltro
preto de tipo napoleónico, generalizado desde os anos da guerra peninsular.
Hoje em dia é raríssimo ver algum tuno espanhol com este chapéu. Muito
raramente, poderemos observar nalguns tunos de tradição hispânica presenças
pontuais do bicórnio com colher e garfo e do bonete de picos, caso da Tuna da
Universidad Mayor Nacional de San Marcos/Peru (Ver AQUI).
Presidente e Vice-presidente da Estudiantina Española que esteve em Paris en 1878. (Fonte: Ilustración Española Y Americana Ano XXII, nº XII, de 30 Março 1878, p213) |
II-Estabelecimentos de
ensino superior portugueses
A
partir de finais década de 1980, comissões de estudantes de diversas
universidades e institutos superiores politécnicos aprovaram trajes
corporativos com ou sem chapelaria associada. Estão registadas situações em que
a cobertura de cabeça está associada a um traje de estudantes (Universidade do
Minho, Universidade da Beira Interior, Universidade do Algarve, Instituto
Politécnico de Leiria, Instituto Politécnico de Viseu, Instituto Politécnico de
Tomar, Instituto Politécnico de Santarém, Instituto Politécnico de Castelo
Branco, Escola Superior Agrária de Coimbra) ou funciona como adereço de tuna
(cartola, Universidade de Aveiro; chapéu bolonhês, Infantuna, Viseu).
Nas
universidades e escolas superiores portuguesas onde prevalece o uso da capa e
batina, os estudantes de ambos os sexos andam em mais de 97% das situações
conhecidas sem qualquer cobertura de cabeça. E a Universidade de Coimbra não
constitui excepção. Ali, o antigo gorro de pano preto poderá ocasionalmente ser
avistado no inverno, em noites friorentas, mas o mais certo é os seus/suas
raros(as) detentores (as) não o tiraram do bolso. Sem exagero, pode
considerar-se uma peça do enxoval académico praticamente caída em desuso,
ergonomicamente pouco sedutora, quase inexistente no arsenal de fotografias
disponíveis na internet (onde prevalece despoticamente o anglo-saxónico
“Students Icon”) e invisível nos catálogos das casas do pronto-a-vestir.
III-Gorro e gorra
O
gorro é uma cobertura de cabeça, de radicação masculina, militar e civil,
confeccionada em forma de saco ou manga, de comprimento variável, em pano ou
croché. Em Portugal, o gorro popular é mais conhecido por barrete ou garruço
nos meios campesinos, piscatórios e tauromáquicos. Foi uma cobertura de cabeça
amplamente generalizado no século XIX e no primeiro quartel do século XX entre
agricultores, cavadores, campinos, lenhadores e pescadores da orla litoral[19].
O modelo popular era confeccionado em pano preto, verde ou vermelho, com uma
orla em torno do crânio e remate de borla. Na tradição popular espanhola, o
gorro é conhecido por barretina, com dobra preta e corpo vermelho, sem borla.
Os gorros ibéricos eram expressivamente longos nos séculos XVIII e XIX, tendo
encurtado na passagem para o século XX. Usavam-se tombados pelas costas,
lançados para o lado direito ou esquerdo ou com a ponta na direcção da testa.
Dado a ter em conta, nas figurinhas populares dos presépios montados nos finais
do século XVIII, o gorro masculino é por assim dizer inexistente.
Na
Catalunha, o gorro popular ficou associado à ideologia republicana e à luta
contra o centralismo de Madrid, tendo sido comparado com o simbolismo do
barrete frígio.
A gorra pode ter as formas de boina, de boné e de carapuça. No geral possui copa
afeiçoada ao crânio, podendo comportar palas, rebuços, virolas e borlas.
Estas
coberturas de cabeça obedeciam às regras de etiqueta das demais coberturas de
cabeça masculinas quanto à forma de descobrir-se, cumprimentar, entrar em
determinados recintos e estar presente em determinadas cerimónias.
Quatro maneiras de usar o gorro/barretina em Espanha |
IV-Chapelaria estudantil
ibérica estatutária
Nas
universidades da Península Ibérica, bem como nas universidades católicas
integradas nos territórios coloniais (México, Lima, Manilla) foram consagrados
nos estatutos dos séculos XV-XVII-XVIII dois tipos de coberturas de cabeça. O
piléus quadradus ou barrete/bonete armado de quatro arestas/picos e o pileus
rotundus ou barrete/bonete redondo. O primeiro tinha base circular, era armado
em cartão e forrado de tecido. A copa ostentava quatro arestas que podiam ser
pontiagudas, três cristas e uma borla central. O segundo tinha base circular,
ilharga cilíndrica e copa igualmente circular, podendo ser rematado com quatro
cristas e borla central. Estes barretes não tinham uma conotação religiosa
católica específica. Eram chapelaria de uso comum entre estudantes
universitários, professores, juízes, advogados, padres e alunos dos seminários
católicos. Salvo determinação em contrário eram estofados e forrados a preto,
pois as cores só eram admitidas a partir do momento em que se tomavam os graus
académicos.
O
barrete/bonete quadrado tem abundantíssima iconografia desde o século XVI, não
havendo dúvidas quanto à evolução da sua morfologia, confecção e ornamentação.
Apenas dizer, que os chapeleiros franceses dos séculos XVIII e XIX inventaram
uma variante deste barrete que se podia fechar, até ficar totalmente espalmado,
que com um ligeiro toque de mão se voltava a abrir.
Uma
variante destes dois barretes é o modelo poligonal de seis e de oito faces,
mantido nas universidades espanholas, que era também o barrete dos advogados
portugueses, espanhóis e franceses, bem como de algumas comunidades judaicas.
Era a cobertura dos professores da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, que passou
em parte para a Universidade do Porto, estando ao presente caído em desuso.
Fora
dos contextos cerimoniais requeridos pela etiqueta palaciana, os estudantes
estavam autorizados a usar gorras de pano dentro de casa e chapéus de aba larga
nos passeios, caçadas e viagens.
Estudantes
de condição social elevada e bolsa desafogada podiam instalar-se com cavalos,
carruagem, criados, usando padrões de seda e loba com mantéu grande e chapéus
armados. Estudantes civis de humilde condição ou em situação económica
vulnerável usavam hábito talar de lã, em vez do mantéu grande um meio mantéu e
no lugar do barrete o gorro. Em Espanha, os capigorristas/capigorrones ficaram
associados a uma condição pouco prestigiada de serviçais dos estudantes
afortunados e a andarilhanças pelas portarias dos mosteiros à hora da
distribuição da sopa.
Por
conseguinte, entre os estudantes civis, havia-os de loba/mantéu/barrete e
havia-os de loba/capa/gorro.
Percorrendo
os estatutos e regulamentos que regeram a UC, constatamos:
·
nos Estatutos Manuelinos, fala-se apenas na interdição de capuzes e
barretes de cores amarelas e vermelhas.
·
pela Provisão de 1539, o rei D. João III dispõe que os estudantes “Nem
poderão trazer barretes doutra feição senão redondos.
·
Nos Estatutos de 1597, com matéria inalterada nos de 1653, os
estudantes podem trazer “os chapéus e barretes forrados”. “Não poderão trazer
barretes de outra feição, senão redondos ou de cantos; nem carapuças, senão as
que trouxerem em tempo de dó [luto], no tempo limitado (…)”.
-Os
Estatutos de 1772, 1901, 1911, 1918, 1926, 1930 e 1988, não integram
disposições sobre o modo de vestir dos estudantes.
Estudante da UC no séc. XVIII. |
Na
segunda metade do século XVIII, o gorro de pano seria a cobertura de cabeça
mais usada pelos estudantes e docentes civis, sendo embora de ressalvar que não
era fácil de meter o gorro nas cabeleiras postiças. O Palito Métrico regista
estudantes com vestes de baeta preta “cui longa cabeças/ Carapuça cobrit,
touticique passans/Pendurata retro per costas andat abaixo”. O texto não
poderia ser mais claro quanto ao porte generalizado do gorro comprido, cuja
manga pendia pelas costas. Quase um século mais tarde, Borges de Figueiredo
indica que “A batina e a capa, e ainda o gorro, são o traje obrigatório do
estudante” (Coimbra antiga e moderna, 1886). Porém, à semelhança de todos os
demais cronistas, nada pormenoriza sobre a morfologia desta peça de vestuário,
dimensões e índices de uso quotidiano.
Para
a mesma década, o antigo estudante de Direito José Trindade Coelho (In illo
tempore) indica que a maioria dos alunos universitários da sua geração andava
em cabelo, quer dizer, na década de 1880 tinha-se generalizado na Academia de
Coimbra a moda de andar com a cabeça descoberta. Esta moda, com alguma demora,
foi passando aos liceus onde também começara a ser usada a capa e batina, casos
de Santarém e de Évora.
Estudantina de Coimbra em 1888, na qual figura vários tunos com gorro. |
O
gorro académico cai em desuso. A criação do traje académico feminino nos
liceus, nos anos da Grande Guerra, conquanto seja um importante sinal de
feminização, não apresenta coberturas de cabeça.
É
à margem dos álbuns oficiais que vamos encontrar nalguns liceus e na
Universidade de Coimbra o recurso a coberturas de cabeça não autorizadas para o
conjunto capa e batina. Nos finais da década de 1880 (1888), o jovem caloiro de
Direito António Nobre causa sensação por aparecer trajado com um longo gorro e farfalhudo
laçarote. Os seus amigos do grupo litérario Boémia Nova aparecem com o tachinho
(Alberto de Oliveira) e com o fez (António Homem de Melo), provocando tórridos
rumores. Tachinho que também se vê no liceu de Lisboa e no liceu de Évora.
V-Descrição
O
porte do gorro académico de tipo conimbricense está referenciado em fontes
escritas desde o século XVIII e em fontes iconográficas e textuais (século
XIX). Foi usado por estudantes e lentes e após a feminização do ensino superior
deve ser considerado um adereço unissexo[20].
É tradicionalmente confeccionado em pano preto de lã de bom padrão. O modelo
antigo era costurado em forma de cilindro, com uma costura lateral. No
interior, era forrado com uma tira de tecido preto com cerca de dois dedos de
altura. Quanto ao comprimento, comparando as gravuras e fotografias do século
XIX com o regulamento do traje académico publicado pela reitoria do liceu de
Santarém, pode indicar-se com elevado grau de rigor uns bem contados 50cm. A extremidade
era rematada de forma arredondada e sem aplique de borla. Em torno do crânio
levava uma virola sem galão.
VI-Função
Até
à década de 1870 o gorro académico foi considerado em Coimbra uma cobertura de
cabeça socialmente distinta e um saco escolar de guarda e transporte de
objectos pessoais como livros, armas, comida, tabaco e materiais de escrita.
Na
actualidade os chapéus e gorras dos estudantes europeus são amplamente usados e
estão associados a um intenso comércio de fitas, emblemas, crachás e pins. Nada
disto acontece com o gorro académico de tipo conimbricense, de além de muito
difícil de ser visto, não é dado a conhecer aos estudantes Erasmus nem aos
alunos dos cursos de férias.
Embora
não seja correto escrever que o gorro esteve completamente extinto na UC entre
1880-1940, a verdade é que caiu em desuso e contar-se-iam pelos dedos da mão os
estudantes que o terão usado nestas décadas. Contudo, o cinema faria
ressuscitar o gorro. Em maio de 1943 o realizador António Lopes Ribeiro filmou
cenas de estudantes em Coimbra para integração no filme Amor de Perdição.
Pretendia-se reconstituir imagens e indumentária da época em que o herói
camiliano Simão Botelho teria cursado Leis na Universidade de Coimbra. O
ensaiador do TEUC, Paulo Quintela, e alguns estudantes aconselharam Lopes
Ribeiro e alguns alunos participaram como figurantes nessas filmagens. Foi
estão reconstituído um traje e um gorro com pouco rigor morfológico (muito
aceitável, se comparado com a fantasia que são o meirinho e os archeiros da
Universidade), e o sucesso de bilheteira do filme influenciou decisivamente a
ressurreição do gorro académico entre alguns estudantes de Coimbra (minutos 12
a 14, ver AQUI)
.
É esse modelo “amor de perdição”
que ainda hoje se confeciona e vende."
Sugerimos, igualmente, uma visita ao Museo Internacional del Estudiante, cuja colecção é riquíssima, dedicando uma parte do seu vasto cervo à indumentária estudantil (AQUI)
[1] Fernando
Falcão Machado, 1986:42/43.
[2] Egas Moniz, 1950:15.
[3] Grande Diccionario Portuguez (1873) Domingos Vieira, Volume II - p. 92.
[4] Fernando
Falcão Machado, 1986:19.
[5] SARRAGA,
Félix e ASENCIO, Rafael - Diccionário
Histórico de Vocábulos de Tunas Y Estudiantinas, Así Como de Escolares del
Antíguo Régimen, TVNAE MVNDI, Gráficas Minerva de Córdoba S.L., España,
2014.
[6] PALET, Jean – Dictionnaire Copieux de la Langue Espagnole et Française. Mathieu
Guillermot. Paris, 1604, pp. 66.
[7] OUDIN, César – Thrésor des deux
langues française et espagnole. Marc Orry. Paris, 1607, pp. 112.
[8] QVID TVNAE? A Tuna Estudantil em Portugal,
de Eduardo Coelho, Jean-Pierre Silva, João Paulo Sousa e Ricardo Tavares.
Euedito, 2011, pp. 50-51.
[9] CALDERÓN
– El Mágico Prodigioso. Ed. e notas de Natalia Fernández, p. 69.
[10] LAMY,
Alberto Sousa – A Academia de Coimbra,
1537-1990. Lisboa, Rei dos Livros, 2ª Edição, 1990, pp. 657-658.
[11] In Memórias do Mata-Carochas, 36-37.
[12] João
Jardim de Vilhena, ob. Cit., vol. II, pág. 46.
[13] Idem,
vol. II, pág. 165.
[14] Idem,
Vol. I, pág. 64.
[15] In Illo Tempore, 7ª edição, 239.
[16] João
Jardim de Vilhena, ob. Cit., vol. II, pág. 125.
[17] NUNES,
António Manuel - Identidade(s) e moda,
Percursos Contemporâneos da capa e batina e das insígnias dos conimbricenses.
Bubok Publishing Ldª, 2013
[18] Também
do António M. Nunes.
[19] Impossível,
por isso, colocar a origem do gorro académico nas vestes dos campónios, como
alguns pretendem insensatamente fazer crer, dado que o gorro estudantil é
anterior.
[20] Aqui,
descordaremos parcialmente, se atentarmos que a etiqueta e toilette feminina
nunca contemplou qualquer tipo de chapelaria com traje (e nem mesmo quando o
traje feminino é finalmente oficializado pelo CV da UC, o gorro não é peça
referenciada) e muito menos gorros. São, aliás, raras e pontuais as fotos com
mulheres trajadas e cobertura na cabeça. As excepções são fotos de estúdio de
cariz mais fantasioso do que a reprodução de uma situação corrente e
espontânea). Concordaremos que a democratização do ensino deve permitir
igualdade de sexos no que toca à indumentária, contudo o traje está
historicamente definido para homens e mulheres, pelo que a preservação da
cultura e tradição vestimentária apontará mais para que o gorro continue a ser uma
peça mais versada para o traje dos rapazes, embora nada impeça o seu uso pelas
mulheres.
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